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Projeto de país | Trabalho escravo irrompe na miragem de um “novo” Brasil

Sucessivos escândalos de trabalho análogo a escravidão surgiram nos últimos dias. O que isso diz sobre o atual projeto de país?

Danilo ParisEditor de política nacional e professor de Sociologia

quinta-feira 9 de março de 2023 | Edição do dia

Agora foi a vez da gigante Colombo Agroindústria S/A, produtora do açúcar refinado Caravelas, ser flagrada com 32 trabalhadores em condições análogas à escravidão em um canavial em Pirangi (SP). A Colombo Agroindústria é uma das maiores produtoras de açúcar e etanol do Brasil, com mais de 5100 empregos diretos e um lucro líquido de R$ 251,59 milhões em 2022. Dias antes, mais de 200 pessoas foram resgatadas em situação análoga à escravidão trabalhando nas colheitas de uva das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, no Rio Grande do Sul. Para completar, ainda assistimos cenas grotescas, como o festival de xenofobia e racismo proferido por vereador de Caxias do Sul, e para coroar, uma declaração da entidade patronal das vinícolas, defendendo os empresários que estavam maximizando seus lucros através da hiper-exploração. Não por acaso, esses casos envolvem trabalhadores do campo, expostos a grandes grupos capitalistas que concentram enormes quantidades de terras, em todo um ramo produtivo acostumado a utilizar as formas mais precárias de trabalho.

A exploração burguesa, sem seus adornos e enfeites, revelou-se nua e crua para todo o país. Situações de servidão por dívida, condições degradantes de trabalho, jornadas extenuantes, castigos físicos, extrema precariedade das moradias, falta de camas, banheiros funcionando, ventilação e fiação exposta, além de estarem superlotados, foram alguma das imagens que divulgadas pelos principais meios de comunicação.

O que vários desses casos, entre tantos outros que nunca se tornarão públicos, têm em comum? A terceirização do trabalho. Ela é uma engrenagem fundamental que, em determinadas situações, serve como porta de entrada para o trabalho análogo a escravidão. E por que? As mudanças na legislação trabalhista, entre tantos outros esmagamentos de direitos, permitiu a terceirização da atividade fim, além de poder ser um artificio para livrar a cara das empresas que contratam subsidiárias. Em outras palavras, a gigante Colombo Agroindústria S/A também se beneficiou das condições terríveis de trabalho que agora vieram a público, mas o caminho para que ela seja responsável por arcar com indenizações, multas e etc., é muito mais complexo por se tratar de uma outra empresa que foi flagrada utilizando do trabalho escravo.

No entanto, a situação é tão grave, e a justiça tão cúmplice de toda a situação, que até mesmo entre as empresas que são diretamente responsáveis por empregar trabalho escravo, o grau de responsabilização e punição é muito baixo. É chocante que apenas 4,2% de acusados por trabalho escravo são punidos, conforme revelou estudo da Federal de Minas de Minas Gerais.

A imprensa, agora faz reportagens “sentimentais”, compadecendo-se da situação desses trabalhadores. Toda sua lógica é responsabilizar os “maus patrões”, mas há um mecanismo que é preservado pela esmagadora maioria dos analistas e jornalistas: a reforma trabalhista e todos os ataques aos direitos trabalhistas.

Aqui mora uma questão central, que é um choque entre a ideia de que o governo Lula-Alckmin traria um “novo” Brasil e a própria realidade de um país inundado por um tsunami de trabalho precário. A questão é que a transição entre governos, produz uma miragem que um novo país está sendo reconstruído, e que basta esperar que as coisas irão voltar aos trilhos. A recente experiência com a existência de um governo de extrema-direita, que representava o projeto do ultra neoliberalismo, e que portanto, defendia sem rodeios a maximização da exploração do trabalho, produz, entre tantos outros efeitos, a ilusão de que a face mais cruel e brutal da estrutura social brasileira, seria gradativamente modificada.

Nesse mesmo contexto, supostos “aliados” da democracia, baluartes da “normalização” do país, ao descer no terreno da produção social, revelam seu verdadeiro espírito, impregnado com o que existe de mais arcaico na formação histórica do Brasil. Em particular o STF, tido por muitos como redentor da democracia, e o carrasco da extrema-direita, tem todas as suas digitais espalhadas nessas cenas horrendas dos últimos dias. Destaque para Alexandre de Moraes, nomeado ministro por Temer, a mão que segurou a caneta que assinou a destruição dos direitos trabalhistas. Jorge Luiz Souto Maior, desembargador da Justiça do Trabalho, é preciso nessa análise quando diz:

“O Supremo Tribunal Federal, a grande mídia, grandes juristas, os juristas trabalhistas, empresas, associações, todos eles contribuíram para difundir e naturalizar a terceirização como um fator de reengenharia da produção, como uma forma de melhorar a economia. Todo mundo sabe disso, não é mesmo? Mas eles mentiram sobre a terceirização para realmente excluir a responsabilidade social das empresas, transferindo-a para outras empresas com menos capital ou sem capital algum. Isso levou a uma pressão cada vez maior nas empresas subcapitalizadas, que precisam competir com outras empresas para prestar serviços e, por sua vez, acabam conduzindo a exploração do trabalho a níveis que estamos vendo hoje.”

Além do STF, vejamos outros atores, que subitamente apareciam como defensores da constituição, mas que na realidade, defendiam, e seguem defendendo, a ditadura do capital contra o trabalho. A mais notória delas, a FIESP, no grande e iluminado prédio da Avenida Paulista onde se pode localizar figuras que foram fundamentais para ampliação do trabalho precário no Brasil. Foi ela que esteve entre os impulsionadores do simbólico dia 11 de agosto de 2022, data que marcou a conformação da chamada “Frente Ampla”. A mesma FIESP que teve entre seus diretores aqueles que defenderam fervorosamente a reforma trabalhista e ampliação da terceirização, propondo até que o trabalhador deveria almoçar com uma mão e seguir trabalhando com outra, eliminado assim o inconveniente horário do almoço.

Mas, poderia se argumentar: estamos apenas no terceiro mês do novo governo, e por óbvio isso é uma herança do bolsonarismo. No entanto, as coisas não são assim. Marcio Pochmann, intelectual, economista e figura orgânica ao Partido dos Trabalhadores (PT), portanto insuspeito de querer prejudicar seu próprio partido, demonstra que mesmo nos governos Lula e Dilma, a expansão do trabalho precário foi a regra e não a exceção. Segundo ele, a maioria dos postos de trabalho criados na primeira década do século XXI no Brasil tinham baixos rendimentos, até 1,5 salário mínimo mensal, o que é chamado de "working poor" (trabalhadores pobres). Considerando os governos Lula e Dilma a terceirização saltou de 4 milhões para 12,7 milhões de trabalhadores.

Como já afirmamos, o governo Lula foi um período também de avanço da terceirização no serviço público. Os gastos estatais com a terceirização cresceram 61%, contra aumento de 24% dos servidores com contratos diretos. Na indústria do petróleo, dominada pela Petrobras, a terceirização cresceu meteoricamente, atingindo 630% entre 2000 e 2013.

Embora a terceirização tenha sido implementada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), ela se expandiu enormemente durante os governos do PT, atingindo um quarto do emprego formal no Brasil em 2014. É uma característica estrutural daquilo que se denominou chamar "lulismo", transformar a explosão de empregos informais sob o governo de FHC em empregos formais, porém com baixos salários e direitos subtraídos, principalmente por meio da terceirização. E foi justamente esse um calcanhar de Aquiles dos governos do PT, quando analisamos grandes mobilizações operárias que ocorreram naquele período.

Impossível esquecer a revolta, tida como selvagem, dos operários que construíam a usina de Jirau, no Rio Madeiro, que incendiaram os dormitórios, ônibus e maquinários, em uma explosão de ódio contra as mais precárias condições de trabalho e de vida. Nada menos do que o maior canteiro de obras do Brasil, literalmente em chamas, escancarando o pacto conservador do PT com grandes empreiteiras, para erguer um projeto de país que tinha entre os seus pilares a precarização do trabalho.

E agora, qual a posição do governo sobre a reforma trabalhista? Não foi uma, mas inúmeras as declarações de diversos membros do governo garantindo a manutenção da reforma trabalhista, alternando, no máximo, alguns pontos. Isso implica que a natureza da reforma permanecerá inalterada, apesar dos recentes escândalos que ganharam repercussão nos últimos dias.

O plano de governo da Frente Ampla, que une tanto adeptos do neoliberalismo quanto das reformas, quer se apresentar como um empreendimento "civilizatório". Entretanto, ao analisarmos o cenário do mercado de trabalho, a realidade se assemelha à barbárie. Não há meio termo. É preciso enfrentar a reforma trabalhista de forma frontal. As bandeiras da efetivação dos terceirizados, e da defesa de igualdade salarial e de direitos nunca foram tão atuais. Caso contrário, a normalização do trabalho análogo à escravidão - bem como outras formas que potencializam a exploração, como a uberizaçao que se expande como peste - serão as consequências de um "novo" país que sempre se modernizou de maneira combinada com as formas sociais mais arcaicas.




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