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Trótski, Estado e sovietes

Gabriel Girão

Trótski, Estado e sovietes

Gabriel Girão

Temos visto nos últimos tempos um “renascimento” do Stalinismo nos meios intelectuais e principalmente nos divulgadores de “marxismo” na internet. Essas figuras se baseiam em exaltar a figura de Stálin como quem garantiu um “estado-forte” na URSS. Alguns desses chegam ainda mais longe a defender a China capitalista atual e até mesmo governos como de Assad ou Chávez como modelos. Buscaremos mostrar aqui como essa ideia de “estado forte” como sinônimo de socialismo nada tem a ver com a tradição marxista revolucionária.

A questão do Estado sempre foi um tema central na teoria marxista. O revisionismo nessa questão foi fruto de vários desvios políticos dos que se reivindicavam marxistas historicamente.

O próprio advento do marxismo foi um marco em como encarar a questão do Estado. Uma das grandes mudanças introduzidas pelos fundadores do marxismo é analisar a questão pelo método do Materialismo Histórico e Dialético, pelo qual analisam a história da humanidade como a história da luta de classes. Daí vem descobertas importantes: que o Estado é um instrumento que as classes dominantes usaram para garantir e organizar a sua dominação sobre as classes exploradas. Dessa conclusão deriva outra: o Estado não é algo que sempre existiu, pelo contrário. Durante grande parte de sua estadia na terra, a humanidade viveu sob o chamado “comunismo primitivo”, sem Estado. Apenas com o surgimento da propriedade privada e da divisão da sociedade em classes é que surge o Estado. Dessa forma, descrevem o Estado antigo, o Estado feudal e o Estado burguês moderno. Esse último é definido no Manifesto Comunista da seguinte forma:

O poder do Estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo [1]

No entanto, o aspecto mais revolucionário da teoria de Marx decorre das consequências do fenômeno que ele analisou. Marx viu como o capitalismo tinha reduzido o antagonismo de classe a burguesia e seu coveiro, o proletariado. Dessa forma, a tarefa do proletariado seria realizar a sua revolução e destruir o Estado burguês e construir o seu próprio aparato de Estado para garantir sua dominação contra a burguesia e avançar na construção do socialismo. A questão era que conforme o proletariado iria destruindo a dominação de classe da burguesia, ele ia também acabando com a própria diferenciação da sociedade em classes dominantes e exploradas. Assim, conforme a revolução proletária e a construção do socialismo iriam avançando em escala internacional, o Estado iria se tornando cada vez mais supérfluo, até o ponto que despereceria, com a humanidade atingindo o Comunismo. Como diz Engels:

Portanto, o Estado não tem existido eternamente. Houve sociedades que se organizaram sem ele, não tiveram a menor noção do Estado ou de seu poder. Ao chegar a certa fase de desenvolvimento econômico, que estava necessariamente ligada à divisão da sociedade em classes, essa divisão tornou o Estado uma necessidade. Estamos agora nos aproximando, com rapidez, de uma fase de desenvolvimento da produção em que a existência dessas classes não apenas deixou de ser uma necessidade, mas até se converteu num obstáculo à produção mesma. As classes vão desaparecer, e de maneira tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze. [2]

A Comuna de Paris é outro marco no pensamento de Marx e Engels. A Comuna teve alcance limitado a Paris e uma duração efêmera de apenas 72 dias e por isso não conseguiu implementar boa parte das medidas que decretou. No entanto, a Comuna foi o primeiro “protótipo” de governo operário, ainda que de forma incipiente e embrionária. Mesmo assim, apesar dessas limitações, os fundadores do marxismo analisaram detidamente esse processo e extraíram lições. Uma das principais conclusões foi que o proletariado não poderia apenas se apoderar dos aparatos burocráticos do Estado herdado da burguesia e usar para si. Ao contrário, o proletariado deveria destruir o antigo aparato de Estado e construir um totalmente novo. Nas palavras de Marx:

Paris pôde resistir unicamente porque, em consequência do assédio, livrou-se do exército e o substituiu por uma Guarda Nacional, cujo principal contingente consistia em operários. Esse fato tinha, agora, de se transformar em uma instituição duradoura. Por isso, o primeiro decreto da Comuna ordenava a supressão do exército permanente e sua substituição pelo povo armado. A Comuna era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer momento. A maioria de seus membros era naturalmente formada de operários ou representantes incontestáveis da classe operária. A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho, Executivo e Legislativo ao mesmo tempo. Em vez de continuar a ser o agente do governo central, a polícia foi imediatamente despojada de seus atributos políticos e convertida em agente da Comuna, responsável e substituível a qualquer momento. O mesmo se fez em relação aos funcionários de todos os outros ramos da administração. Dos membros da Comuna até os postos inferiores, o serviço público tinha de ser remunerado com salários de operários. Os direitos adquiridos e as despesas de representação dos altos dignitários do Estado desapareceram com os próprios altos dignitários. As funções públicas deixaram de ser propriedade privada dos fantoches do governo central. Não só a administração municipal, mas toda iniciativa exercida até então pelo Estado foi posta nas mãos da Comuna. Uma vez livre do exército permanente e da polícia – os elementos da força física do antigo governo –, a Comuna ansiava por quebrar a força espiritual de repressão, o “poder paroquial”, pela desoficialização [disestablishment] e expropriação de todas as igrejas como corporações proprietárias. Os padres foram devolvidos ao retiro da vida privada, para lá viver das esmolas dos fiéis, imitando seus predecessores, os apóstolos. Todas as instituições de ensino foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo purificadas de toda interferência da Igreja e do Estado. Assim, não somente a educação se tornava acessível a todos, mas a própria ciência se libertava dos grilhões criados pelo preconceito de classe e pelo poder governamental. Os funcionários judiciais deviam ser privados daquela fingida independência que só servira para mascarar sua vil subserviência a todos os sucessivos governos, aos quais, por sua vez, prestavam e quebravam sucessivamente juramentos de fidelidade. Tal como os demais servidores públicos, os magistrados e juízes deviam ser eletivos, responsáveis e demissíveis. (...) Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho. [3]

Outro desenvolvimento muito importante vem com Lênin em seu famoso Estado e Revolução. Nesse livro, Lênin dá um combate importante contra os marxistas da Segunda Internacional. Retoma os escritos de Marx sobre a necessidade de destruição do Estado burguês contra os “marxistas” que diziam que seria possível instaurar o socialismo por uma via pacífica e gradual por meio de ganhar a maioria nas eleições, o que levava a uma prática reformista e eleitoreira. Ao mesmo tempo, Lênin retoma de Marx a necessidade de construir o Estado-Comuna e via nos sovietes a instituição que justamente poderia cumprir esse papel da Comuna, sendo isso totalmente condizente com a sua palavra de ordem “Todo poder aos Sovietes!”.

Por outras palavras: temos no capitalismo o Estado no sentido próprio da palavra, uma máquina especial para a repressão de uma classe por outra, e, além disso, da maioria pela minoria. Compreende-se que, para o êxito de uma coisa como a repressão sistemática da maioria dos explorados pela minoria dos exploradores, é necessária uma crueldade, uma ferocidade extremas da repressão, são necessários mares de sangue através dos quais a humanidade segue o seu caminho nas condições da escravatura, da servidão, do salariato. Em seguida, na transição do capitalismo para o comunismo, a repressão é ainda necessária, mas é já repressão da minoria dos exploradores pela maioria dos explorados. O aparelho especial, a máquina especial para a repressão, o “Estado”, é ainda necessário, mas é já um Estado de transição, já não é um Estado no sentido próprio, porque a repressão da minoria dos exploradores pela maioria dos escravos assalariados de ontem é algo relativamente tão fácil, simples e natural que custará muito menos sangue do que a repressão das insurreições de escravos, de servos, de operários assalariados, que custará muito menos à humanidade. E é compatível com a extensão da democracia a uma maioria tão esmagadora da população que a necessidade de uma máquina especial para a repressão começa a desaparecer. Os exploradores, como é natural, não estão em condições de reprimir o povo sem uma máquina muito complicada para a execução desta tarefa, mas o povo pode reprimir os exploradores mesmo com uma “máquina” muito simples, quase sem “máquina”, sem aparelho especial, pela simples organização das massas armadas (como os Sovietes de deputados operários e soldados - digamos, adiantando-nos). Finalmente, só o comunismo torna o Estado completamente desnecessário, pois não há ninguém para reprimir, “ninguém” no sentido de uma classe, no sentido de uma luta sistemática contra uma parte determinada da população. Não somos utopistas e não negamos de maneira nenhuma a possibilidade e a inevitabilidade dos excessos de determinadas pessoas, e igualmente a necessidade de reprimir tais excessos. Mas, em primeiro lugar, para isto não é necessária uma máquina especial, um aparelho especial de repressão, isto fá-lo-á o próprio povo armado com a mesma simplicidade e facilidade com que qualquer multidão de homens civilizados, mesmo na sociedade atual, separa pessoas envolvidas numa briga ou não permite violência contra uma mulher. E, em segundo lugar, sabemos que a causa social fundamental dos excessos, que consistem na violação das regras da convivência, é a exploração das massas, a sua necessidade e miséria. Com a eliminação desta causa principal, os excessos começarão inevitavelmente a “extinguir-se’. Não sabemos com que rapidez e gradação, mas sabemos que se extinguirão. Com a sua extinção, extinguir-se-á também o Estado. (...) A defesa interesseira do capitalismo pelos ideólogos burgueses (e seus acólitos tais como os Srs. Tseretéli, Tchernov e C.ª) consiste precisamente em que eles substituem por discussões e conversas acerca de um futuro longínquo a questão de premente atualidade da política de hoje: a expropriação dos capitalistas, a transformação de todos os cidadãos em trabalhadores e empregados de um só grande “consórcio”, a saber: de todo o Estado, e a subordinação completa de todo o trabalho de todo este consórcio a um Estado verdadeiramente democrático, ao Estado dos Sovietes de deputados operários e soldados. [4]

Diferente do que alegou Robério Paulino no evento Tótski em Permanência, Lenin não abandonou essa concepção Uma mostra disso se dá na fundação da III Internacional, a Internacional Comunista (IC). Uma das condições básicas de adesão a IC era a de aceitar o poder soviético e se adotaram extensas teses sobre isso.. Como explicitado na tese 20:

A supressão do poder de Estado é o objetivo que se colocaram todos os socialistas, Marx incluído e à cabeça. A verdadeira democracia, isto é, a igualdade e a liberdade, é irrealizável sem a realização deste objetivo. Mas só a democracia soviética ou proletária conduz na prática a este objetivo, porque, chamando as organizações de massas dos trabalhadores à participação permanente e necessária na administração do Estado, começa a preparar imediatamente a extinção completa de todo o Estado.

A burocratização da URSS e a deturpação do stalinismo

O isolamento da Revolução Russa e as difíceis condições impostas pela Guerra Civil fizeram com que o Partido Bolchevique impusesse uma série de medidas excepcionais que restringiram a democracia soviética, como o unipartidarismo e a proibição de frações internas.

No entanto, após a morte de Lênin ocorre um fenômeno que este viu apenas os primórdios: a burocratização da URSS. Junto com isso há o surgimento do stalinismo que promove uma total deturpação na noção de estado defendida até então: as debilidades são transformadas em virtudes, a exceção em regra; a participação das massas trabalhadoras é substituída por burocratas. Sobre as bases das restrições impostas pela Guerra Civil, Stálin persegue qualquer tipo de oposição a ele. A Comissão Extraordinária de Combate à Contrarrevolução e à Sabotagem, que vinha sendo restringida por Lênin (justamente por seu caráter extraordinário ligado às necessidades imediatos da guerra civil) é transformada por Stálin na GPU, uma verdadeira polícia política. Ainda que falando em nome do “Poder Soviético”, já não havia qualquer resquício de democracia soviética – até que em 1936 a nova constituição soviética abole os sovietes e cria um “Soviet Supremo” que deveria, no papel, ter eleições a cada quatro anos. Se o sistema do Soviet Supremo lembrava o do velho parlamentarismo burguês, na prática a URSS ia se tornando um Estado policial nas mãos de uma camarilha burocrática.

Como consequência, os sovietes vão desparecendo do discurso e da prática dos Partidos Comunistas stalinizados e de suas posteriores rupturas. A reivindicação do poder soviético na boca desses tinha virado apenas a defesa da ditadura da burocracia.

A Oposição de Esquerda, e posteriormente a IV Internacional, vão combater fortemente o processo de burocratização da URSS e denunciar os crimes do stalinismo. Mostra que esse havia se transformado num elemento contrarrevolucionário que ia atacando várias conquistas da revolução. Entretanto, Trótski nunca perdeu de vista o caráter de classe para analisar a URSS. Via que, apesar da burocratização e das atrocidades promovidas pelo stalinismo, as bases econômicas do Estado continuavam a ser a economia planificada. Por isso, Trótski vai definir a URSS como um Estado operário ainda que degenerado burocraticamente. Frente a isso Trótski entendia que ainda havia conquistas da revolução a serem defendidas. Por isso, se colocava frontalmente contra qualquer ofensiva imperialista contra a URSS, mas ao mesmo tempo defendia uma revolução contra a burocracia, que retomasse o poder dos sovietes e garantisse a participação de todos os partidos que defendessem o poder soviético e as conquistas da revolução, permitindo inclusive que se avançasse na construção do socialismo na URSS – algo que estava também intimamente ligado a expansão da revolução para outros países.

Após a segunda guerra novos Estados operários vão aparecer cobrindo quase metade do globo e abrigando sob suas fronteiras 1/3 da população mundial. Esses Estados vão surgir a partir de três processos: nos países do Leste Europeu, será fruto da extensão territorial da URSS na segunda guerra. Outros como a Iugoslávia surgiram frutos da resistência de partisans liderados pelos PCs, como na Iugoslávia. E outros surgirão através de processos de guerrilhas ou guerras camponesas lideradas por partidos stalinistas (como Coreia e China) ou pequeno-burguesas como Cuba.

Uma análise mais detida desses processos não caberia nesse artigo. No entanto, um aspecto importante a se notar é que, com a exceção dos países que foram diretamente anexados a URSS, foram processos dirigidos por partidos exército. Nesse sentido dão origem a Estados que, apesar de levarem a frente a expropriação da burguesia, acabam reproduzindo a própria estrutura do partido exército dentro do Estado e copiam o “modelo” da URSS da ditadura de partido único. No entanto, diferente dessa, não veem sovietes nem mesmo em sua fase inicial, tornando-se Estados operários deformados burocraticamente. A ausência de qualquer concepção soviética se expressa inclusive no nome desses Estados, que não adotaram os sovietes nem mesmo no nome: alguns como a China e a Coreia se denominaram “República Popular Democrática”, incorporando os nomes que tinham sido usados no Leste Europeu, como na República Popular da Polônia ou na República Democrática da Alemanha. [5]

Nesses Estados, o programa da revolução política de Trótski se fez correto como na URSS (e ainda se faz em Estados onde ainda há conquistas revolucionárias a serem defendidas, como Cuba, onde ainda subsiste a economia planificada apesar das políticas reustaracionistas de mercado da burocracia castrista). A prova disso é que, concretamente, ocorreram vários processos de revoluções políticas nesses Estados, como na Alemanha Oriental em 53, Hungria em 56 e a Primavera de Praga em 68, para citar alguns exemplos. Na grande maioria desses processos, os operários e estudantes mobilizados defendiam o socialismo e repudiavam qualquer tentativa de restaurar o capitalismo, no entanto criticavam a burocratização e o controle autoritário exercido pela burocracia, exigindo mudanças políticas e uma maior democratização do regime. Alguns desses processos chegaram inclusive a desenvolver experiências de auto-organização de tipo soviéticas. Diferente do que argumenta o stalinismo, de que não passariam de elementos contrarrevolucionários, esses processos apenas a sagacidade de Trótski em prever fenômenos que não chegou nem mesmo a presenciar.

Não satisfeitos com abandonar a defesa dos sovietes, vários setores do stalinismo vão até mesmo abrir mão da delimitação básica de classe. Principalmente a partir da segunda metade do século XX, vamos ver o surgimento de diversos governos nacionalista burgueses nos países semicoloniais e dependentes. Esses governos, muitas vezes liderados por integrantes do exército ou com forte participação deste, tomam algumas medidas que se chocam com o imperialismo, como por exemplo a nacionalização de recursos naturais (como fez o governo de Cárdenas no México e de Mossadegh no Irã com o petróleo ou Nasser no Egito com o canal de Suez) e fazem concessões às massas. No entanto, não chegam a romper por completo a dependência com o imperialismo – o que seria impossível devido a própria fraqueza e covardia das burguesias nacionais - e tampouco tocam na propriedade privada. Junto a isso, costumam desenvolver fortes traços autoritários e bonapartistas. Além disso, é comum que depois de um tempo esses governos terminem por capitular ao imperialismo perder esse caráter “nacionalista” inicial e degenerem em ditaduras reacionárias, que muitas vezes acabam por implementar os planos do imperialismo. Temos como exemplo o governo de Gaddafi que antes de sua queda vinha aumentando cada vez mais a concessão da exploração de petróleo à grandes multinacionais (principalmente italianas, onde havia um acordo que esta vendia armas para a Líbia em troca de explorar o petróleo líbio e de Gaddafi manter o controle sobre a imigração para a Europa). Perto de nossas fronteiras temos o exemplo da Venezuela, em que Maduro aplica um forte arrocho sobre às massas enquanto aumenta cada vez mais as concessões ao imperialismo com a Lei Antibloqueio [6] ou Daniel Ortega na Nicarágua, que recentemente reprimiu fortemente as mobilizações contra uma reforma da previdência exigida pelo FMI.

Nada disso impediu que organizações e intelectuais stalinistas apoiassem entusiasmante esses governos, como fazem até hoje. Em alguns casos, esse apoio era justificado com ao argumento que fossem governos burgueses, seriam governos de “libertação nacional” responsáveis por levar a frente a etapa de “emancipação do país do jugo do imperialismo”, que antecederia a etapa da revolução socialista – o que vai muito de acordo com a concepção etapista da revolução adotada pelo stalinismo [7]. O fato que nenhum desses países nunca se emancipou até hoje do jugo do imperialismo mostra a total falência dessa tese e mostra que na época atual, apenas a revolução proletária pode levar essa tarefa adiante.

No entanto, alguns chegaram ao mais absurdo de apoiar esses governos pois, na concepção deles, poderiam levar adiante uma “transição pacífica” ao socialismo! Ou seja, retornam à concepção política reformista da social-democracia e da segunda internacional que Lênin tanto combateu! O exemplo mais notório disso foi apoio a Chávez e seu suposto “socialismo do século XXI”, que após mais de 20 anos, ainda mantém um capitalismo dependente na Venezuela. Ainda que, frente ao giro à direita de Maduro, algumas dessas organizações ensaiem um discurso mais crítico ao governo, mostram como não aprenderam nada: foram apoiadores entusiastas do “socialista” Pedro Castillo no Peru. Esse vulgo “socialista”, que se opõe frontalmente ao direito das mulheres e dos LGBTIQ+, tratando como “ideologia de gênero”, também tem mostrado cada vez mais que está totalmente disposto a respeitar a constituição fujimorista, “dialogando” com empresários e incorporado cada vez representantes da direita neoliberal e do mercado financeiro em seu governo! Frente a isso, esses mesmos apoiadores se fazem de cegos.

Mais recentemente, tem surgido uma linha no stalinismo que vai adotar como modelo de socialismo e emancipação a China... capitalista! Seus expoentes mais conhecidos no Brasil são o dirigente do PCdoB Elias Jabbour e o militante do PCB Jones Manoel. Ignorando qualquer aspecto de classes, nada mais fazem que exaltar o enorme crescimento econômico chinês das últimas décadas, apresentando o modelo capitalista chinês com forte intervenção estatal (que denominam de “socialismo com características chinesas”) em oposição ao neoliberalismo. Ou seja, trocam o materialismo dialético pelas meras estatísticas. Para justificar tal operação, Jones fala que prefere o “realismo político de corte italiano”. Ao mesmo tempo que acham tudo bem terem bilionários dentro do PCCh, pois estes não “mandariam no partido”, Jones defende a repressão governo chinês aos trabalhadores que “pedem demais”:

Tal declaração só mostra que a defesa do Estado chinês atuando como um regulador do capitalismo, supostamente contendo os “excessos dos dois lados” é uma concepção está mais próxima de Confúcio do que de Marx. Junto a isso, defendem toda a política externa do PCCh, como os acordos com o Talibã e o golpe militar em Myanmar. Nada mais longe do internacionalismo e da concepção de Estado e de revolução operária defendida pelo marxismo.

A Centralidade dos organismos de auto-organização na concepção de Trótski sobre o Estado

Como demonstrado por Marx, com o exemplo da Comuna, e por Lenin e Trótski, com os Soviets, a democracia soviética é muito superior à democracia burguesa. Enquanto esta última se baseia em afastar o cidadão da política, em que as pessoas vão para a urna a cada período de anos escolher seus representantes, aquela se baseia na lógica oposta, com a elegibilidade e revogabilidade dos representantes a qualquer momento e permitindo que os trabalhadores elejam não apenas representantes parlamentares, mas decidam sobre os rumos da política e da economia do país. Enquanto a democracia burguesa cria uma casta de políticos e juízes privilegiados, junto também a uma camada burocrática de funcionários públicos bem remunerados, a democracia soviética se baseia que os representantes ganhem o mesmo que um trabalhador médio. Enquanto nos países democratas a diplomacia secreta continua a imperar, o poder soviético divulgou todos os tratados secretos feito pelos governos anteriores (que, na época, eram quase todos ligados à 1a Guerra). Além disso, as democracias burguesas possuem uma série de meios para cercear a participação política e a vontade popular. A democracia soviética, ao contrário disso, é a democracia da ampla maioria da população trabalhadora contra a minoria burguesa. O Estado burguês, por mais democrático que seja, se baseia em corpos especiais de repressão como a polícia e o exército. Já a democracia soviética se baseia no povo em armas organizado.

A democracia burguesa pode até conceder o direito ao sufrágio universal e eleições “limpas”. Mas coloca uma série de restrições para que esse possa realmente representar a vontade popular, como o Senado e um judiciário não eleito por ninguém. Além disso, a burguesia possui muito mais recursos para organizar seus partidos e financiar seus candidatos, além de atuar diretamente com a corrupção aberta ou velada dos representantes políticos. A democracia burguesa pode até conceder o direito formal à liberdade de expressão organização. Mas na mão da burguesia e seus representantes se encontram os maiores meios de comunicação e difusão de informação, os meios de difusão, os melhores locais para reunião, serviços de estatísticas e de inteligência além do tempo disponível. A democracia burguesa pode até conceder o direito formal à organização, a mobilização e às greves. Mas em muitos locais de trabalho impera a ditadura da patronal, que pune e demite os trabalhadores que ousam fazer greve e se manifestar. Além disso, a burguesia atua para cooptar lideranças e organizar verdadeiras burocracias nos sindicatos, movimentos sociais e partidos operários. Os principais meios de produção de conhecimento dentro da sociedade, como as universidades e think thanks estão moldados para atender os interesses e da burguesia e formar seus intelectuais e políticos (ainda que aqui caiba uma mediação, pois as universidades são um meio de disputa e também produziu intelectuais e políticos para o proletariado). Na prática é uma verdadeira democracia dos ricos. Ainda assim, quando considera que essa democracia não está dando conta de garantir sua dominação e seus interesses, a burguesia não hesita em lançar mão do fascismo, de regimes policialescos e de ditaduras militares. E ainda fazem isso muitas vezes em nome de “preservar a democracia”, como visto no golpe de 64 no Brasil.

A democracia soviética foi na prática a forma que o proletariado achou de exercer a sua ditadura sobre a burguesia. Ao mesmo tempo que a resistência das classes possuidoras é reprimida, os trabalhadores são incorporados na organização do Estado e nas decisões sobre os rumos da sociedade e da economia, garantindo as condições materiais para isso, como o acesso aos meios de comunicação e difusão e também o tempo necessário. Isso significa garantir, na prática, a democracia para as amplas massas trabalhadoras, uma democracia muito mais democrática que qualquer democracia burguesa já vista. A partir desse aparato estatal era que o proletariado deveria iniciar o “definhamento” do Estado.

Algo muito diferente se vê nos Estado operários burocratizados. Enquanto alguns não viram nem rastros de sovietes, na URSS, o stalinismo atuou justamente para destruí-los. Longe de caminharem para a extinção do Estado, criaram imensos aparatos burocráticos. Portanto, a ideia de ditadura do proletariado preconizada por Marx, Engels, Lênin e Trótski e materializada na Comuna e nos sovietes nada tem a ver com a deformação burocrática promovida pelo stalinismo. Na prática, tornaram-se ditaduras burocráticas sobre o proletariado. Limpar a bandeira do comunismo da deturpação stalinista é, portanto, tarefa crucial para resgatar o marxismo revolucionário nos tempos atuais.

É claro que quanto mais vantajosas forem as condições objetivas, mais democrática será a democracia soviética. Isso não passou desapercebido por Trótski, como coloca em sua obra Se os Estados Unidos se tornassem comunistas:

Assim, a prática dos sovietes, ou seja, da democracia, a forma mais democrática de governo já alcançada, evitará o avanço do burocratismo. A organização soviética não pode fazer milagres; simplesmente deve refletir a vontade do povo. Entre nós, os sovietes se burocratizaram como resultado do monopólio político de um só partido, transformado, ele próprio, em uma burocracia. Essa situação foi consequência das dificuldades excepcionais que se teve que enfrentar no início da construção socialista em um país pobre e atrasado. Os sovietes norte-americanos serão vigorosos, sem necessidade nem oportunidade de que as circunstâncias imponham medidas como as que foram necessárias adotar na Rússia. Naturalmente, os capitalistas obstinados não terão lugar na nova ordem. Resulta em algo um pouco difícil imaginar Henry Ford presidindo o soviet de Detroit. [8]

Para justificar seu apoio aos Estados operário burocratizados ou até mesmo a alianças com forças burguesas, é comum que o stalinismo tente mostrar os sovietes como particularidade russa, argumentando que “cada revolução terá seu caminho próprio”. Apesar disso, a história mostra que os organismos de auto-organização e duplo poder apareceram por todas as partes. Logo após a Revolução Russa, a Alemanha viu o surgimento dos “Conselhos” e também ocorreu a efêmera experiência da Hungria Soviética. Também tivemos o Soviet de Xangai durante a Revolução Chinesa de 1925-1927, e as “Juntas”, na Espanha. Após a Segunda Guerra, vimos exemplos como os Cordões Industriais, no Chile, os Comitês de operários, inquilinos e soldados na Revolução dos Cravos e as Shorás durante a Revolução Iraniana, apenas para citar alguns exemplos de organismos de auto-organização. Também ocorreram experiências profundas de auto-organização nas revoluções políticas nos Estados operários burocratizados, como na Hungria, em 1956.

Ao contrário dos stalinistas, Trótski entendeu profundamente a natureza dos sovietes. Entende justamente que o soviet não é algo que nasce pronto como organismo de poder. Pelo contrário, Trótski mostra que:

A veneração em palavras dos Sovietes é tão propagada nos círculos “de esquerda” como a incompreensão da sua função histórica. Os Sovietes são definidos na maior parte das vezes como órgãos de luta pelo poder, os órgãos da insurreição e enfim os órgãos da ditadura. Essas definições são formalmente corretas. Mas elas não esgotam a função histórica dos Sovietes. E sobretudo, elas não explicam porque são precisamente os Sovietes que são necessários na luta pelo poder. A resposta a esta questão é a seguinte: tal como o sindicato é a forma elementar da frente única na luta económica, o Soviet é a forma mais elevada da frente única, quando chega para o proletariado a época da luta pelo poder. [9]

Entender profundamente a natureza dos sovietes, permitiu que Trótski inclusive pensar estratégias para propiciar seu surgimento. Nesse sentido, desenvolver a auto-organização e coordenação dos setores em luta da classe trabalhadora é um pilar da estratégia trotskista. É nesse sentido que nós da Fração Trotskista tentamos resgatar essa estratégia, atuando em cada conflito nessa logica, com exemplos como o Comitê RATP-SNCF na greve dos transportes em 2019 na França ou o Comitê de Emergência e Resguardo na Rebelião Chilena. Ao mesmo tempo buscamos fazer elaborações teóricas resgatando esses elementos, como em recente texto escrito por Matías Maiello e Emilio Albamonte.


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FOOTNOTES

[1MARX E ENGELS, Manifesto do Partido Comunista. – Ed. Expressão Popular. Fonte: https://www.expressaopopular.com.br/loja/wp-content/uploads/2020/02/manifesto-comunista-EP.pdf

[2ENGELS, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.- http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_engels_origem_propriedade_privada_estado.pdf

[3MARX, A Guerra Civil na França – Ed. Boitempo

[5Essas países levaram esse nome inclusive por que o plano inicial da URSS era apenas manter esses Estados sob sua órbita como Estados glacis como forma de se proteger do imperialismo, como previsto Acordo de Yalta. Entretanto, de forma similar a que foi descrita por Tótski em seu texto A URSS na Guerra, as mobilizações de massa e as próprias contradições internas pressionaram a burocracia a levar em frente a expropriação da burguesia.

[6Lei aprovada ano passado que, sob o pretexto de “atrair” mais investimentos, faz uma série de medidas entreguistas ao imperialismo, aventando até mesmo a possibilidade rever as nacionalizações feitas no governo de Chávez. Leia mais em: https://www.esquerdadiario.com.br/A-Lei-Anti-Bloqueio-de-Maduro-um-salto-ao-entreguismo-nacional-e-as-privatizacoes

[7A partir da década de 20, o stalinismo adota a velha teoria menchevique de “revolução por etapas” que já havia sido negada pela própria Revolução Russa. Segundo essa teoria, apenas os países de capitalismo avançado poderiam te revoluções socialistas. Nos países atrasados e dependentes deveria haver uma fase intermediária, liderada pela “burguesia nacional anti-imperialista”, que promovesse a emancipação do imperialismo e desenvolvesse o capitalismo interno. Trótski combate essa tese com a Teoria da Revolução Permanente, mostrando que a burguesia nacional era incapaz de ter qualquer papel progressista, sendo uma burguesia covarde e atrelada umbilicalmente ao imperialismo. Dessa forma, teria ficado com o proletariado, através da sua própria revolução, a missão de levar as frentes as tarefas “democrático-burguesas” como a libertação nacional. No entanto, a revolução proletária não poderia se deter nesse ponto e deveria também avançar em medidas diretamente socialistas, ou seja, contra a propriedade privada, dando o caráter “permanentista” da revolução
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