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Trotskismo para pensar o Brasil: política e luta de classes de 1964 a 2022

Edison Urbano

Trotskismo para pensar o Brasil: política e luta de classes de 1964 a 2022

Edison Urbano

Nesta edição especial dos 82 anos do assassinato de León Trótski a mando do stalinismo, conversamos com Edison Urbano, doutorando em Economia Política Mundial na UFABC e coordenador geral do curso “Uma visão marxista do Brasil - Política e luta de classes: 1964-2022” no Campus Virtual do Esquerda Diário. Com diversos companheiros e companheiras como palestrantes, o curso já conta com 5 aulas que tratam do levante operário da ditadura, do movimento por Diretas Já e da transição pactuada, do Fora Collor e início da ofensiva neoliberal, dos governos FHC e do primeiro governo Lula. Nesta entrevista, buscamos extrair reflexões fundamentais até aqui e situar o papel do trotskismo para pensar o passado recente da história do país.

IdE: Antes de mais nada, por que vocês decidiram realizar esse curso, periodizando do fim da ditadura a 2022, neste ano? Qual a relação entre o curso e o contexto que estamos vivendo internacional e nacionalmente?

Em primeiro lugar, acho que é preciso dizer que a necessidade de mais e melhores elaborações marxistas sobre a nossa história como um todo é algo gritante para a esquerda brasileira.

E faz ainda mais falta uma visão marxista revolucionária sobre esse período mais recente, e que nos diz respeito de uma forma tão direta. O conjunto dos atores políticos decisivos na política brasileira atual se formaram nesse período. Tem aí aquela coisa que o Hegel tratava em termos da relação entre “gênese e estrutura”, e que a gente pode entender mais ou menos assim: se num sentido amplo toda a nossa formação nacional está presente na estrutura atual da nossa sociedade e instituições, por outro lado muito mais estrito podemos dizer que o quadro político atual foi desenhado em grande parte a partir da transição da ditadura.

O pressuposto teórico (e também político) dessa abordagem é levar até as últimas consequências a tese fundamental do marxismo, de compreender a história como história da luta de classes: são os grandes acontecimentos da luta de classes que moldam o destino da sociedade, e nesse caso, se tomamos certa liberdade de pensar em termos “nacionais”, é mais ou menos claro que o acontecimento decisivo do último meio século foi a irrupção das massas contra a ditadura militar, e muito particularmente o papel chave que a classe operária desempenhou naquele momento, que envolveu nada menos que a própria criação do PT e da CUT, por exemplo.

Entender esse processo em todo o seu alcance, e quais as razões para que ele não tenha tido um desfecho revolucionário, é crucial para encarar os desafios que temos pela frente.

Acho que isso responde um pouco também a questão do contexto que estamos vivendo hoje, não só de um ponto de vista brasileiro, mas em nível internacional.

Num mundo marcado por uma crise capitalista que se arrasta sem solução de fundo, em que a guerra na Ucrânia e os atritos entre EUA e China recolocam a questão da conflagração militar entre grandes potências, em surgem fenômenos como a nova extrema direita trumpista e bolsonarista, e por outro lado se levantam grandes processos de revoltas de massas que ainda não se converter em revoluções. Enfim, numa realidade tão dinâmica, é preciso estar preparados para guinadas bruscas da sociedade, e tirar lições dos processos recentes da luta de classes no nosso país é uma parte importante dessa preparação.

De todo modo, como dizia ao começo, essa é sem dúvida uma lacuna muito grande que persiste entre nós, e achamos que o curso contribui a preencher.

IdE: O que significa dizer que a transição da ditadura para o regime democrático de 88 no Brasil se deu em base a um “desvio”, diante do maior levante operário da história?

Essa é uma pergunta muito boa, porque de fato a ideia do “desvio" é uma ideia muito cheia de conteúdo, que acho que vale a pena esmiuçar. É claro que ela tem por um lado uma dimensão mais “descritiva”, quer dizer, tinha uma luta operária que surgiu contra a ditadura e em particular contra o arrocho salarial que era praticado na ditadura, e que ao invés de ir frontalmente contra o inimigo, foi canalizada por outras vias, foi assim “desviada”, etc. Mas a noção de “desvio” carrega também algo que vai bem além dessa mera descrição, ela traz essa noção profundamente dialética, no sentido de dar conta de um processo contraditório da realidade, já que de um lado expressa que havia um potencial da luta das massas que é em última instância revolucionário, e por outro que esse potencial foi negado, mas não na forma de uma negação frontal e direta, não como derrota física ou esmagamento, mas canalização por outra via, e nesse sentido neutralização, passivização.

Isso se resume talvez nessa ideia, de que a transição pactuada é por assim dizer a “solução reacionária” para uma questão democrática que em determinado momento se colocou como incontornável para a própria burguesia. Ou seja, ela é “reacionária” em comparação com a solução revolucionária do mesmo problema, que seria a derrubada da ditadura pela ação direta das massas, com todo o potencial diretamente anticapitalista que isso abriria, etc. Mas isso não se confunde com o fato de que pôr fim à ditadura foi uma conquista democrática, por parcial e distorcida que seja. Na ideia de que o ascenso operário foi derrotado mediante o seu “desvio" está contida, por exemplo, a de que para a burguesia também houve um “preço a pagar” (vide conquistas democráticas parciais plasmadas na Constituição, como por exemplo a ideia do SUS, etc).

Ter isso em mente é importante, não só para ter uma visão mais fidedigna e não unilateral do processo, sem abandonar em nada nossa crítica e denúncia dele; mas também para dar conta por exemplo das deformações impostas desde o golpe institucional de 2016, que por vezes nos fazem falar até de um “regime do golpe” distinto em muitos aspectos do regime de 88, e também para entender o que significa o fenômeno do bolsonarismo, etc.

IdE: Recentemente, o tema dos militares tem vindo à tona pelo peso que vem ganhando desde o golpe e principalmente no governo Bolsonaro. Há setores que colocam a falta de uma “justiça de transição” no Brasil. Como vocês relacionam isso à transição pactuada e em que medida há confluência com as análises de Florestan Fernandes?

Então, isso se relaciona diretamente com a questão anterior, né. Porque essa questão elementar, que alguns formulam nesses termos de “justiça de transição” de conteúdo significa que a sociedade possa acertar contas com seus algozes, com julgamento e punição aos torturadores e assassinos da ditadura, bem como aos responsáveis civis e militares, etc, ou seja, uma questão democrática elementar. Sem a qual o próprio aparelho de repressão e tortura se mantém essencialmente intacto.

Desse ponto de vista. todo o processo do golpe institucional de 2016, e mais ainda com o bolsonarismo, vemos esse salto na presença militar aberta, que é denunciada como uma aberração até mesmo por importantes setores da burguesia. Mas se trata de um salto reacionário dentro de uma estrutura que, nesse aspecto crucial, é fruto da própria transição como se deu, e que ficou plasmado entre outras coisas no famigerado artigo 142 da Constituição de 88.

Aqui nossa visão do processo conflui muito fortemente com a que o Florestan nos legou. Porque ele, apesar de certas hesitações políticas em outros aspectos, nesse ponto foi muito claro e categórico ao denunciar o processo de transição pós-ditadura como “transição transada” ou “transição pelo tope”, pelo alto, que são termos que ele usa muito para tratar do processo.

E é notável como o estudo dos documentos da época, nos anos 1980, mostra que não raras vezes aquilo que o Florestan escrevia e publicava num jornal de grande circulação como a Folha de S. Paulo, ou no Jornal do Brasil, era de uma lucidez maior, um espírito crítico e de denúncia da operação política em curso para usurpar os anseios democráticos das massas, que era muitas vezes maior do que o que encontramos nos jornais da esquerda petista, inclusive das correntes que se reivindicavam trotskistas, como a Convergência Socialista. Bom, das correntes stalinistas nem vale a pena falar né, já que elas se aliaram diretamente aos dirigentes sindicais pelegos, agentes da ditadura como o Joaquinzão dos metalúrgicos de São Paulo, e a setores burgueses tão pouco “progressistas" como um Orestes Quércia (com a licença dos mais novos, mas os mais antigos saberão).

Mas o que é digno de nota é isso, que um intelectual consagrado como o Florestan tenha adotado uma postura pública de denúncia dos pactos de transição que nesse sentido estava à esquerda das correntes trotskistas daquele período, apesar dos méritos que estas possam ter tido, em particular na capacidade de se ligar aos setores de vanguarda do movimento operário em ascenso, para citar novamente o caso da Convergência, que deu origem ao PSTU e a correntes internas do PSOL, que são versões diferentes do morenismo, uma tendência específica dentro do movimento trotskista. O MRT, e mais de conjunto a corrente internacional da qual fazemos parte, que tem no PTS argentino o seu maior representante, provém precisamente de uma ruptura com o morenismo que buscou fazer um resgate da verdadeira herança de Trótski e do marxismo da III Internacional antes da sua stalinização. Mas isso já seria tema pra outra entrevista.

IdE: O que a análise do primeiro governo Lula permite apontar sobre as perspectivas em relação ao provável governo Lula-Alckmin, tendo em vista distinções e repetições? Qual relação vocês vêem entre o primeiro governo Lula e o neoliberalismo?

Acho que a primeira coisa aí é destacar isso: hoje tem uma visão muito difusa sobre o que significaram os quase 14 anos do PT no governo federal. De um lado a direita gosta de martelar com a imagem que ficou do final do governo Dilma 2, a crise econômica, os escândalos de corrupção na Petrobras, etc, enfim aquele momento em que o PT estava meio “grogue" após as Jornadas de Junho de 2013, e que as “novas direitas”, inclusive o bolsonarismo mas não só ele, acabaram capitalizando… Do outro lado, o discurso petista, e em particular o do Lula, tenta “lembrar" praticamente só do momento mais dourado, quando o boom econômico da China arrastou o conjunto dos países chamados “emergentes”, e o Brasil com um destaque importante entre eles. Esse é um dos temas da próxima aula do nosso curso, mostrar como mesmo num período de bonança econômica o alcance das concessões que Lula e o PT fizeram foi comparativamente pequeno, e mesmo naquele período tínhamos coisas bem reacionárias, como as tropas brasileiras no Haiti ou o avanço já desenfreado do agronegócio, etc.

Mas enfim, tudo isso era pra dizer outra coisa: que essas duas imagens, tanto a pintada pela direita e que se foca no período de crise do governo Dilma, quanto a do petismo que se foca naqueles anos do auge do “projeto de país lulista”, mais ou menos entre 2006 e 2012; tanto uma quanto a outra, enfim, acabam quase apagando o que foi a primeira experiência de todas, que foi o governo Lula 1 [de 2003 a 2006]. E que foi um governo que teve uma continuidade enorme com os anos de neoliberalismo aberto da era FHC, dos anos 1990. Uma continuidade que vai muito além inclusive da preservação do chamado “tripé macroeconômico” (juros altos, câmbio flutuante, metas de inflação), foi em grande medida uma continuidade política mais geral mesmo, a estabilidade da dominação burguesa se manteve em todos os âmbitos, e na época isso não era uma coisa tão óbvia que aconteceria caso enfim tivesse um governo do PT.

O descompasso entre as expectativas de massas com a primeira eleição do Lula, e o quanto o seu governo foi conservador e inclusive “ajustador”, foi muito grande, e é isso o que está na base de processos de ruptura no âmbito sindical e político que levaram à formação da Conlutas e do PSOL. Depois o boom das commodities, entre outros fatores, estancou o processo, dando origem àquele período do lulismo propriamente dito, etc. Mas essa experiência como um todo é muito importante pra gente ter presente, tanto do ponto de vista do quanto um governo Lula-Alckmin pode aplicar medidas de ataque direto às massas trabalhadoras, como também pensando que tipo de processos políticos e de reorganização à esquerda podem surgir num contexto desse.

Isso tudo está muito bem desenvolvido na quinta aula do nosso curso, que foi ministrada pela Maíra Machado e pela Tatiane Lima. Aliás, esse é um aspecto do curso que é no mínimo digno de nota, a Maíra que é nossa candidata a deputada estadual em SP conseguir preparar e ministrar uma aula em meio à campanha eleitoral; o mesmo que agora o Marcello Pablito [candidato a dep. federal por SP] e a Valéria Müller [candidata a dep. Federal pelo RS] que são responsáveis junto com a nossa camarada Odete Assis pela sexta aula, e que deve ir ao ar quase junto com a própria eleição.

IdE: Aos 82 anos do assassinato de Trótski, por que o trotskismo é uma ferramenta para analisar a história recente do capitalismo brasileiro?

É uma ferramenta fundamental, né, em primeiro lugar porque é uma continuação do marxismo revolucionário, então nisso estão aliados tanto o rigor teórico, conceitual, o aspecto “científico" do marxismo, quanto o seu gume revolucionário, sua vocação para ser acima de tudo um guia para a ação, a expressão teórica de um movimento real de coisas que já existia, e que existe, um movimento prático do proletariado que existe até certo ponto de maneira “independente” do marxismo.

Mas para sair dessas generalidades (por importantes que elas sejam), acho que a pergunta instiga uma resposta mais concreta, ou mais específica.

Se a gente pegar a trajetória do pensamento social brasileiro, nos seus representantes mais críticos, mais criativos, o que nós encontramos é que existe uma dívida importante com relação ao legado do Trótski, em particular a ideia de que o desenvolvimento não é só desigual, mas também é combinado; que existem imbricações entre o avanço e o atraso e que dessas contradições podem surgir saltos, etc.

Não deixa de ser uma mostra dessa potência enorme do Trótski como pensador marxista, e que ao contrário do Lênin que faleceu em 1924, pôde viver para ver fenômenos tão mais próximos da nossa atualidade como a ascensão da hegemonia imperialista dos EUA, a consolidação da burocracia stalinista na antiga URSS, o nazismo na Alemanha… mas também os governos de tipo “bonapartista de tipo especial” que surgiam na América Latina do mexicano Cárdenas ou do Getúlio Vargas.

Então isso só para falar um pouco do patrimônio teórico direto deixado por Trótski - em breve inclusive nossas Edições Iskra devem reeditar os Escritos Latino-americanos, tem preciosidades ali que impressionam pelas chaves que fornecem para que nós pensemos com nossas próprias cabeças fenômenos como a chamada “onda cor de rosa” dos governos como os de Hugo Chávez, Evo Morales, do kirchnerismo argentino ou do PT entre nós.

Mas retomando o que estávamos falando antes: tem uma dívida muito grande, que alguns reconhecem mais abertamente, como o saudoso Chico de Oliveira ou o Florestan, e outros nem tanto, que é a utilização da teoria do desenvolvimento desigual e combinado para compreender a formação e a estrutura do capitalismo brasileiro, em sua conexão com a economia mundial.

Recentemente, o Roberto Schwarz escreveu um pequeno artigo de domingo na Folha, com a sua elegância tradicional, reivindicando esse aspecto de maneira bem franca. Mas daí entra aquilo, que esses pensadores usam essa tese de uma maneira quase que só “analítica”, por assim dizer. Mais ou menos como muitos economistas fazem com a obra de Marx na explicação do funcionamento e das crises do capitalismo internacional, mas sem as conclusões revolucionárias que são o ponto crucial do marxismo. Daí que a gente vê por exemplo, para voltar no artigo do Schwarz, aquela reverberação nacional-desenvolvimentista, que não tem nada a ver com o verdadeiro alcance do pensamento do Trótski. Para ele não teria como isolar a ideia de desenvolvimento desigual e combinado de toda a elaboração da sua teoria da revolução permanente, que é uma teoria da revolução mundial e das suas articulações nacionais e sociais. Nós dizemos até muitas vezes que é uma “teoria-programa”, de tal modo as conclusões políticas revolucionárias estão intrinsecamente presentes no coração da própria teoria.

Para voltar ao Brasil, isso não significa só uma profissão de fé, um compromisso com a luta revolucionária da classe trabalhadora e dos oprimidos. Mas é ao mesmo tempo uma chave para uma compreensão mais profunda do país e seu lugar no mundo. Para dar só um exemplo: como tentar equacionar o problema dos povos indígenas e do meio ambiente com as contradições do capitalismo mundial na sua fase atual, que é de declínio cada vez mais agressivo? Uma versão “light" de marxismo poderia tentar dar conselhos para um plano de expansão capitalista que “devaste menos”, que "respeite mais" os povos originários, e daí por diante, tentando fazer isso em harmonia com os interesses de grandes grupos capitalistas, tentando se apoiar em alguns desses grupos contra outros, etc. É mais ou menos a postura daqueles que se imaginam como conselheiros ou “consultores de esquerda” de um novo governo burguês como o provável Lula-Alckmin.

Por isso que o trotskismo, como expressão do autêntico marxismo revolucionário, não pode se limitar a isso, que seria uma vergonha do ponto de vista teórico, e uma traição à causa dos explorados, do ponto de vista prático.

E com isso voltamos à pergunta, para concluir: analisar as últimas quatro décadas pelo prisma de Trótski nos permite tirar as lições estratégicas (e nos momentos cruciais, inclusive táticas) do último grande ascenso de massas, de como ele foi desviado e passivizado, quais as responsabilidades das grandes direções como Lula e o PT enquanto agentes da burguesia no seio do movimento, mas também quais os erros e vacilações das correntes que se reivindicavam revolucionárias. Isso tudo é crucial para varrer qualquer perspectiva sombria quanto ao futuro, permite entender que as possibilidades de superação revolucionária do capitalismo e de construção a uma nova sociedade já se colocaram, e voltarão a se colocar, e do que se trata é de estarmos melhor preparados dessa vez. O que significa estar armados com uma visão teórica consequente, mas sobretudo de construirmos a tempo um verdadeiro partido revolucionário, à altura dos desafios históricos que se colocam para nossa classe trabalhadora, e que incluem as suas responsabilidades no processo latino-americano e mundial de derrotar do capitalismo, antes que ele destrua a humanidade e quantas outras formas de vida.


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