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Tudo ‘S’ - Movimento Black Rio e a explosão da identidade negra

Samuel Rosa

Tudo ‘S’ - Movimento Black Rio e a explosão da identidade negra

Samuel Rosa

Um movimento nascido nos subúrbios do Rio de Janeiro abalou a estrutura social do Brasil em meio à ditadura militar. Um movimento que iniciou o que seriam os bailes funks cariocas do século XXI: o movimento Black Rio, teve grande influência, tanto na música nacional como internacional, sendo a sua complexa musicalidade referência mundo afora quanto em sua influência cultural e política na organização do movimento negro brasileiro. Um movimento temido pela burguesia e pelos militares e, neste 20 de novembro, relembramos a sua origem e a demonstração do potencial criativo e político da juventude negra no país.

1976, governo Geisel. Em meio à época mais repressiva da ditadura militar no Brasil, uma reportagem do caderno B do Jornal do Brasil chama a atenção pelo seu nome e revela um temor que sempre acompanhou a reacionária burguesia brasileira: o medo da explosão da força e do potencial revolucionário do povo negro no país. Não podemos esquecer que, desde o século XIX, a burguesia nacional temia o processo de “haitinização” do Brasil. Ou seja, frente ao processo liderado por escravos no final de século XVIII, a burguesia temia um processo de emancipação do povo negro escravizado. Temor este que sempre caminha junto a essa reacionária burguesia que hoje garante a existência do bolsonarismo.

A reportagem tinha um título provocativo, “Black Rio: o orgulho (importado) de ser negro no Brasil”. O nome era uma tentativa da burguesia e dos militares descredibilizarem o movimento que reunia mais de 15 mil jovens negros periféricos em todos os finais de semana. Se encontravam apenas para se divertir, escutar um som que era pouco divulgado na mídia, que fugia dos “yeyeyes” da velha guarda, ou da bossa nova. Se encontravam para escutar um som que vinha de longe, mas dizia muito sobre suas aspirações, sonhos, e também sobre as suas vivências, sobre a repressão da polícia, a violência do dia a dia, da marginalização. Eles se encontravam para escutar Funk e Soul.

Esta era uma geração que não se identificava mais apenas com “o samba e feijoada”, tomados como símbolos nacionais de uma identidade brasileira mestiça e de harmonia racial tanto por intelectuais conservadores como por alguns intelectuais de esquerda nas décadas de 30 e 40. A isso se somam também o caráter empresarial que muitas das manifestações vinham assumindo, buscando apagar todo o conteúdo de luta e resistência presente no samba. Esse movimento nacionalista que reivindicava o samba como o principal elemento da cultura brasileira ganhou ainda mais forças na época que antecedeu o golpe de 1964. Os intelectuais stalinistas, ligados ao PCB, do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), rejeitavam o soul e outras expressões ditas “estrangeiras” e “imperialistas” numa defesa quase caricatural de uma suposta cultura autêntica nacional. Mas é já no governo militar que esse movimento de reivindicação ganha contornos ainda mais sufocantes. De um lado, não foram poucos os movimentos de repressão do governo militar contra as escolas de samba que não se subjugaram ao seu cerceamento. De outro, havia uma verdadeira operação ideológica para enfatizar uma “africanidade” brasileira folclórica, harmônica, despolitizada e ultrapassada. E nisso o samba cumpriu um papel crucial para os militares. Exemplo disso é que em 1977, fazendo um balanço sobre a participação do Brasil no Segundo Festival Mundial das Artes Negras (FESTAC II) em Lagos, na Nigéria, o Itamaraty lançou uma publicação oficial intitulada "O impacto da cultura africana no Brasil" louvando a inserção harmoniosa de traços africanos no Brasil, exibidos pela delegação principalmente através de manifestações como o samba e o candomblé. Essa operação ideológica também tinha o sentido de impedir o contato com o samba de uma juventude cada vez mais radicalizada que rogava pelo novo, que ainda não se identificava com as figuras do rock, mas que ansiava por reinvenção, e espaços onde pudessem ter liberdade para se divertir sem a moral conservadora os observando atentamente.

Aqueles que tinham contato com o que era feito nos EUA, traziam para cá. Era outra estética. Eram anos de muita luta nos EUA, eram os anos pelos Direitos Civis de Martin Luther King, mas também das lutas mais radicais e organizadas como do Partido dos Panteras Negras. A estética Black Power, com roupas coloridas e seus cabelos crespos deixados a crescer, mostravam outra forma de ser para essa juventude reprimida.

Assim, já no final da década de 60, influenciados por artistas que começaram a utilizar esta estética, por exemplo, Toni Tornado, com sua lendária apresentação de “BR-3” no festival da Canção de 1970 que chocou a elite branca com um dos primeiros “breaks” (momento onde o ritmo da bateria e do baixo são acelerados e os demais instrumentos harmônicos são deixados no silêncio) apresentados no país. Ainda, não podemos esquecer da interpretação de “Black is Beautiful" de Erlon Chaves, por Elis Regina, que resultou no fim da apresentação na prisão do mesmo Toni Tornado por realizar ao fim da apresentação a posição dos punhos fechados dos Panteras Negras. Essas ações começaram a mobilizar nas periferias e nos clubes que foram voltando seus olhares para o Soul e o Funk. Assim nasceram os primeiros bailes blacks.

Esses bailes, onde tocavam James Brown, Isaac Hayes, Rufus Thomas e Nina Simone, foram os precursores no país tanto do rap, hip-hop, quanto do funk carioca, sendo os primeiros bailes com DJs, que tocavam com seus vinis importados os gritos de revolta da população negra norte-americana. Esse contato começou a incomodar o governo militar.

Em entrevista à Folha de S.Paulo de dezembro de 2001, o executivo da Philips, André Midani, um dos primeiros a trazer essas músicas para o Brasil, falava sobre o que os militares pensavam sobre o posicionamento dos artistas negros que faziam esse som.

“Os militares achavam, com toda a razão, que, se um dia a favela fosse se politizar, se militarizar, era a revolução social neste país. Não sei quem inventou isso, mas se uma vez tive problema, foi quando alguém disse que eu recebia dinheiro do movimento black norte-americano para comandar a subversão nas favelas. Aí passei uns dias ruins.”

Desta forma, esses espaços foram lugares onde o conjunto da juventude periférica carioca começou a se encontrar e discutir política, arte e moda. Começaram a levantar seus Blacks para o terror da burguesia, dançavam ao som dos “breaks” e iniciavam assim um movimento cultural que movimentou a história cultural do país tanto quanto a Tropicália. Assim, começou também a repressão, tendo a polícia sempre à espreita, perseguindo os idealizadores e frequentadores dos bailes. Erlon Chaves chegou a ser preso e torturado pelos militares por suas composições que exaltam a força da população negra.

Assim, em 1974, liderados por um dos primeiros MCs da história do país, Don Filó, fora organizado o primeiro disco de uma equipe dos bailes blacks do Rio, o disco Soul Grand Pix, que recebe esse nome pela popularidade da Fórmula 1 entre a classe média branca do país. E, para chamar a atenção de mais diversificado público, começaram a utilizar a estética do esporte, porém tendo como suas figuras centrais pessoas negras. Com a atenção da mídia crescente, saiu o famigerado artigo de 1976, que tentava antagonizar o Samba, como a música "nacional e integral da população negra", contra o Soul (imperialista) da juventude. Com isso surgiu a resposta que pode ser traduzida pela fala do príncipe do Soul, Carlos Dafé, em entrevista à Globo “Samba e Soul, tudo ‘S’... Sangue. Tudo a mesma cor”. Tantos sambistas quanto os “soulzeros”, foram contra esta tentativa inescrupulosa de dividir o movimento negro e operário. Sabiam que a luta era a mesma contra este sistema que reprime e reprimiu ambos os movimentos.

O que começou como uma tentativa de deslegitimação, iniciou a sua maior propagação. O que começou com bailes, levou a uma nova sonoridade e estética para a música brasileira. Da Black Rio surgiram Tim Maia, Cassiano e Hyldon, que iniciaram as suas carreiras com o grupo Diagonais, Gerson King Combo, Sandra de Sá, Macau, Dom Salvador e a abolição, entre outros tantos artistas negros que uniram o Soul com elementos brasileiros, com o samba, como o próprio Jorge Ben Jor.

Porém, talvez o maior símbolo seja a banda que tinha o mesmo nome que o movimento, a Banda Black Rio. Idealizada por Don Filó, que queria construir um grupo de funk com músicos brasileiros, nasceu a Banda Black Rio, formada por Oberdan Magalhães no Sax - ex-Dom Salvador - Barrosinho no trompete, Cristóvão Bastos no piano, Jamil Joanes no baixo e Luiz Carlos na batera, todos ex integrantes do grupo Senzala, além do já citado Carlos Dafé. Deste encontro saiu o álbum Maria Fumaça, que marcou a história da música brasileira em 1977.

A banda tocava temas que iam de temas de jazz, com elementos de samba de gafieira, a um groove envolvente que deu uma identidade original para o movimento. O fator de uma banda de funk, formada apenas por negros, que colocava todos para dançar com músicas de Edu Lobo, constitui uma verdadeira virada para a música nacional. Após esse álbum, foi a banda do terceiro álbum de Tim Maia, o “Disco Club”, e também realizaram um dos shows mais estupendos da carreira de Caetano Veloso.

O mesmo “S” que unia o Soul e o Samba também demonstra o potencial criativo que não pôde ser parado pela ditadura, e apareceu um pouco antes dos levantes operários de 1979 que mostraram a força da classe trabalhadora brasileira, essa classe que é majoritariamente negra, sendo motivo de temor dos nossos inimigos de classe.

Neste 20 de novembro devemos nos inspirar nessas figuras, que não desarticularam sua arte de suas reivindicações políticas, sendo deixadas de lado na história do país por esse motivo. Em tempos de bolsonarismo, que representa o que há de mais reacionário no país, devemos nos apoiar no que há de mais criativo, potencial e revolucionário, para falarmos sobre a realidade do país.

Devemos resgatar a história de luta e resistência da população negra que até hoje revoluciona a cultura brasileira e que é marca desta juventude negra que agora vive sob o peso do trabalho precarizado, mas que encontra nesses momentos de lazer e produção cultural a sua identidade. É com essa história com a qual devemos lutar, com o conjunto da classe trabalhadora, com as mulheres, e com a comunidade LGBTQIAP+ contra o sistema capitalista e nossos inimigos de classe.


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