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Editorial de editoriais | Um Lula ainda mais "ao centro" pela redenção da direita tradicional

Como a imprensa burguesa e seus analistas, nacional e internacionalmente, buscam moldar o novo governo Lula-Alckmin?

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

segunda-feira 31 de outubro de 2022 | Edição do dia

São poucas horas que separam o país do "interminável" pleito presidencial que deu a Lula um inédito terceiro mandato - em tempo de governo, só perderia para Getúlio Vargas - e que tornou Bolsonaro o primeiro presidente desde 1988 a não conseguir defender com êxito sua reeleição. Fizemos uma primeira análise aqui.

O fresco dos resultados não impediu que a grande imprensa e seus analistas oficiais buscassem empurrar mais a barra de Lula ao centro. Mais ainda, melhor dizendo.

Enquanto Bolsonaro ainda "dorme" no silêncio de suas dúvidas e não se pronuncia (deixando a seus familiares as primeiras expressões públicas acerca da derrota eleitoral), a orquestra jornalística é de "transição pacífica e assegurada". Quanto a Lula, a ordem é de que seja um moderado pacificador que arrefeça os ânimos do país, agrade os mercados com regras fiscais sólidas e construa uma frente tão ampla que possa abranger as múltiplas expressões da direita neoliberal tradicional (incluindo seus economistas e ideólogos). Nas palavras do idealizador do Plano Real de FHC, Edmar Bacha, "tudo no discurso [de Lula] foi muito bom, mas especialmente o início, em que ele diz que não foi uma vitória do PT, mas da aliança democrática. A menção direta a Simone [Tebet] aponta para o futuro."

Se poderia perguntar em que país estavam nos últimos 10 meses, sendo que Lula não fez mais que expandir à direita seus acordos, negar qualquer chance de revogação das atrozes reformas trabalhista e previdenciária, e aliar-se com o grande capital da Fiesp e da Febraban. Inútil cogitar: o objetivo dos fatores reais de poder é condicionar ao máximo o novo governo depois de anos de benesses com Bolsonaro-Guedes.

A Folha de S. Paulo não perdeu tempo. "Lula, ao centro", intitula seu editorial. Segundo o periódico, muito do triunfo de Lula se deve à rejeição a Bolsonaro (evita com cuidado falar do aspecto econômico dessa rejeição), enfatizando sua truculência e ímpeto autoritário. Frisa, em seguida, que o presidente eleito "é também rejeitado por parcela expressiva e influente da sociedade, seja pelos escândalos de corrupção durante suas administrações, seja pela ruína econômica operada por sua sucessora, Dilma Rousseff, seja pela pauta ideológica abraçada por vezes de forma intolerante pelo PT". Lembrando que o Congresso lhe será muito mais hostil que nos idílicos anos 2000 pós-FHC, adverte que Lula precisa "dar mostras imediatas de responsabilidade orçamentária e disposição de rumar ao centro, política e economicamente. Deve se cercar de especialistas e quadros qualificados, para além do raio estreito do partido e de aliados à esquerda".

Essa foi a toada de Lula, cuja locomotiva política trilhou um percurso linear à direita até o triunfo presidencial. Tendo Geraldo Alckmin como vice, arrebanhou apoios entre as forças da antiga direita tradicional tucana, que chegaram ao próprio FHC, incluindo o plantel ideológico do Plano Real (Armínio Fraga, Edmar Bacha, Lara Resende, Pedro Malan, Persio Arida, entre outros). Recolheu sustentação de banqueiros como Henrique Meirelles e João Amoedo. Integrou a partir do segundo turno o apoio de Simone Tebet (MDB) e Marina Silva (Rede), e uma hoste de políticos da direita que há pouco tempo foram férreos defensores do golpe institucional.

Mas a ordem é seguir o curso "ao centro" (à direita). Merval Pereira, d’O Globo, insiste nesse rumo ("Muito além do PT"), cantando as virtudes da Frente Ampla. "O desfecho da eleição presidencial, com a vitória apertada do ex-presidente Lula, demonstra que o esforço para que se formasse uma frente ampla a favor da democracia era fundamental para que superássemos o perigo da continuidade de um projeto autoritário de poder que provocou o retrocesso do país em pontos fundamentais". Mesma opinião do cientista político Otavio Amorim Neto: o petista deve espandir "a política de frente democrática que o apoiou na campanha eleitoral e faça um governo de ampla coalizão".

Há modificações de fundo que a grande imprensa finge não perceber. A campanha de Lula já teve no seu DNA a fusão das antípodas eleitorais do regime de 1988 - PT e PSDB - como parte do núcleo programático daquilo que virá a ser o novo governo. Não à toa recebeu o apoio de amplos setores do grande capital. O governo Lula se converte numa incubadora do possível ressurgimento de uma direita tradicional que derreteu no PSDB (apesar da conquista dos governos do MS, PE e RS) e que precisa de tempo para nutrir-se. Essa situação de vácuo na dirieta tradicional, cuja base foi fagocitada pelo bolsonarismo, permite a tentativa de ocupação desse espaço pouco atrativo em tempos de polarização social assimétrica. Como diz Bruno Carrazza, do Valor: "Em outros momentos da história não fazia sentido para o PT converter-se ao centro, pois ele foi ocupado primeiro pelo MDB de Ulysses [Guimarães] e depois pelo PSDB de FHC. Hoje, há um vácuo político ali. Mover-se em direção ao ’Centro democrático’ - aquele mesmo herdeiro do velho MDB e do PSDB históricos - é a única saída para Lula governar". Isso tem uma conotação mais programática que organizativa. Significa dar fundamentos à recriação de uma suposta "direita democrática", que seja flexível na agenda de costumes (como manda o Partido Democrata) mas de direita na agenda econômica.

O jornal O Estado de São Paulo, publicou seu "Lula tem o dever de arrefecer os ânimos", palavra de ordem da classe dominante para organizar uma transição pacífica no meio do caos. Feroz vocalista da burguesia paulistana, o jornal também tem interesse na recriação de uma direita que não alimente o bolsonarismo, como se o mundo político brasileiro pudesse dar marcha ré nos ponteiros da história, para antes de 2016, ou mais. Celebra a derrota eleitoral de Bolsonaro sabendo que o bolsonarismo permanecerá com força em todo o país, com votação forte, e urge responsabilidade fiscal, econômica, política e... mais giro à direita de Lula, especiialmente em seu programa econômico. "Se é um imenso alívio pensar que o Brasil não terá, pelos próximos quatro anos, Jair Bolsonaro na Presidência da República, é preciso reconhecer que o resultado das eleições deste domingo está longe de desanuviar o horizonte nacional. [...] A derrota de Jair Bolsonaro nas urnas não significa que o bolsonarismo acabou. Se essa campanha eleitoral serviu para algo, foi para mostrar como a mensagem de Bolsonaro continua tendo ressonância em muitos corações".

O Estadão quer uma oposição ao governo Lula, que não seja o bolsonarismo, e encara uma das incógnitas mais difíceis para esse segmento da classe dominante: como dar origem a uma direita que não alimente o fenômeno bolsonarista? "A partir de janeiro de 2023, Jair Bolsonaro não estará na Presidência da República, mas o País continuará tendo de lidar com ele e seus apoiadores. Entre outros aspectos, isso traz enormes desafios para o debate público e para a composição de uma efetiva e responsável oposição ao PT, que será mais necessária do que nunca". Mais fácil a indagação que a resposta. Os que alimentaram a extrema direita agora se veem engolfados entre os estômagos de duas forças que absorvem praticamente todo o espaço político e dividem o Brasil em dois.

O Globo abre a possibilidade de "Lula redima o país"...desde que entenda sua missão. "Se, como Lula insiste, sua missão é conversar com todos os setores da sociedade para construir consensos, a hora de começar é agora, ao montar a equipe de governo. Ele precisa reunir nomes com credibilidade suficiente para reerguer o país dos escombros do bolsonarismo". Isso é assim porque Lula se verá diante de um mundo político adverso, especialmente no Legislativo, que encampa as forças concentradas do bolsonarismo em virtude do fortalecimento das bancadas evangélicas e do agronegócio. Michael Stotts, do Financial Times, toma esse mote para mostrara a divisão no país que dificilmente poderia ser sanada. "A espantosa ascensão das igrejas evangélicas é um elemento; seu rebanho agora inclui quase um em cada três brasileiros. O poder de lobby do agronegócio, que responde por quase 30% do produto interno bruto, é outro. Ambos são fortes impulsionadores do conservadorismo social e do capitalismo de Estado mínimo. Nenhum dos dois irá embora sob um governo Lula".

Ademais, entre o Lula1 e o Lula2, o Globo exige aquele que operou os ajustes fiscais entre 2003 e 2006. "Qual Lula governará? O social-democrata da primeira metade do primeiro mandato? Aquele que defendeu um ajuste fiscal de longo prazo capaz de reduzir a dívida pública, aumentou o superávit primário, promoveu reformas para melhorar o ambiente de negócios, aperfeiçoou instrumentos de crédito e reduziu restrições à concorrência no setor privado? Ou o nacional-desenvolvimentista que veio em seguida? Aquele que apoiou o aumento descontrolado dos gastos, a distribuição de benefícios aos compadres do governo, setores e empresas escolhidos a dedo em troca de apoio ao projeto de poder petista, enfiando o Brasil no buraco sem fundo da corrupção?".

A crise econômica deixa apreensiva a imprensa, que quer ajustes nas contas públicas e o cessar dos gastos bolsonaristas, que comprou apoio parlamentar e votos en masse nos últimos meses. O recado d’O Globo é que a burguesia quer mais ajustes contra o povo trabalhador.

Nesse mesmo sentido, Matias Spektor, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, questionou a viabilidade das promessas de gastos feitas por Lula, em sintonia com a exigência de "responsabilidade fiscal" de toda a burguesia. "[Lula] foi eleito com a promessa de aumentar os gastos públicos, mas não será capaz disso por falta de fundos. E ele não terá maioria no congresso. Sua coalizão é ideologicamente ampla, e será um enorme desafio mantê-la unida para aprovar legislação". A economista Juliana Damasceno bate na mesma tecla das ameaças: “Fugir de uma reorientação clara e crível para a condução das contas públicas condenará o próximo governo, já de início, a outra crise econômica e a uma instabilidade política nada desprezível.” Já Sergio Lamucci, do Valor, diz que "A economia brasileira deverá perder fôlego, pela combinação do efeito do forte ciclo de alta de juros e da desaceleração - ou recessão - global. Com isso, o PIB tende a avançar entre 0,5% e 1% no ano que vem, depois de crescer entre 2,5% e 3% neste ano. Para lidar com esse ambiente mais hostil e de expansão mais fraca da arrecadação, será fundamental definir com clareza como será a condução das contas públicas. O novo governo terá de definir o tamanho da licença para gastos extras em 2023 e o desenho da nova regra fiscal, que deverá substituir ou remendar o teto de gastos".

Os ataques anteriores devem permanecer como condição de ouro para o grande capital. É a exigência clara do mundo financeiro, por exemplo através do britânico The Economist: "Seu próximo passo deve ser a nomeação de um ministro das finanças prudente. Lula deve reiterar que não vai reverter as privatizações, às quais se opôs na época, e explicar como vai pagar por grandes promessas de gastos. Para remover um limite de gastos, introduzido em 2016 após a recessão, então ele deve assegurar aos mercados que haverá uma nova regra fiscal sensata para substituí-lo".

Essa pressão por contas apertadas será permanente. Não é possível saber os ritmos em que essa profissão de fé se tornará carne em novos ajustes, mas o programa econômico do governo Lula-Alckmin, sua relação com banqueiros e industriais, o diálogo com "todos independente dos partidos", além da promessa de não reverter as reformas ultraliberais, implica um caminho que dificilmente sairá muito da ortodoxia em meio às promessas de aumentos salariais acima da inflação. Douglas Rodrigues do Poder360 assinala que as promessas de Lula vão custar R$117 bilhões, e que a cada 1% de aumento no salário mínimo, as contas públicas aumentam R$6 bilhões. "Fora isso, soma-se R$ 64 bilhões de deficit primário previsto pelo Ministério da Economia para 2023. Total: rombo de ao menos R$ 181 bilhões". A orquestra do mundo financeiro sabe o que quer.

O editorial da JovemPan, francamente bolsonarista, aceitou a derrota e conclamou seus correligionários a "manifestar a defesa e a confiança na decisão soberana do povo". Dito isso, já na órbita da oposição bolsonarista, lançou a pauta de exigências. "É dever do novo mandatário dar continuidade aos avanços econômicos conquistados até aqui", ou seja, aos ataques aos trabalhadores e ao povo pobre. "É papel do novo governo manter o foco nas agendas de desburocratização e de desestatização que tornarão nossa economia mais forte", ou seja, com mais privatizações. "É dever do novo governo garantir as liberdades individuais, zelar pela liberdade de expressão e pela manutenção de uma imprensa livre", ou seja, a liberdade do setor privado em explorar cada vez mais a classe trabalhadora. Rezando o rosário ultraliberal de Bolsonaro, promete pressão máxima.

Essa maneira de colocar o problema é uma maneira de estabelecer as linhas vermelhas a um novo governo disposto a seguir o mandato do grande capital que o apoiou, ainda que com um projeto de administração capitalista distinto daquele de Bolsonaro. As ilusões da "administração humana" do capital e do controle estatal sobre certos "excessos", retomando a narrativa da combinação de "responsabilidade fiscal com responsabilidade social", enquanto defende um imaginário democrático e cultural antibolsonarista, foram as marcas iniciais do discurso de Lula que analisamos aqui. A questão é quanto tempo o conseguirá manter, num país que, quer queira quer não, é "dois Brasis".

Isso nos leva de volta à reflexão "ao centro" de Carrazza. Diz que o suposto "radicalismo petista" foi responsável por alguns de seus "principais erros históricos: a abstenção na eleição de Tancredo, o voto contrário ao texto final da Constituição, a recusa em firmar um acordo programático com o PSDB no segundo turno de 1989 e a condenação do Plano Real em 1994". Carrazza argumenta que, tivesse se mantido fiel às suas origens, talvez o PT demoraria muito mais tempo a chegar à Presidência da República. Porém, houve uma correção de rota radical depois das três derrotas de Lula entre 1989 e 1998. Algo semelhante deveria ser considerado pelo novo governo hoje. "Lula só conseguiu um terceiro mandato porque reenergizou as bases do PT e reconquistou parte do seu eleitorado original, a classe média trabalhadora das grandes cidades do Centro-Sul do país. Porém, o PT dificilmente retornaria ao Palácio do Planalto neste momento se não fosse o apoio de lideranças e dos eleitores ligados às lideranças ou aos herdeiros do velho MDB original - de Geraldo Alckmin a Simone Tebet, passando por FHC e demais tucanos históricos e economistas do Plano Real."

Com efeito, a questão é inversa. É verdade que, para viabilizar a vitória de Lula em 2002, o PT foi à direita: construiu uma ampla coligação com o PL de Valdemar da Costa Neto e lideranças oligárquicas do PMDB nos Estados, aliou-se ao empresariado escolhendo José Alencar como vice e acenou ao mercado com a Carta ao Povo Brasileiro. Muitos desses movimentos foram realizados em larga escala agora, numa amplitude antes desconhecida. A "Carta" atual foi dedicada às cúpulas evangélicas, contra o direito das mulheres ao aborto e contra os direitos da comunidade LGBT. A antiga carta foi substituída pela própria encarnação de Alckmin, avalista do apoio da Fiesp e da Febraban que querem uma agenda econômica favorável aos mercados capital sem a instabilidade de Bolsonaro. O apoio da ala Democrata (Biden) sugere os acordos com o imperialismo norteamericano, sem desdizer dos negócios com a China. A resultante é que não se toca seriamente na arquitetura herdada, e se favorece a pressão do bolsonarismo.

Toda essa ampliação da frente Lula-Alckmin conseguiu dar mais votos a Bolsonaro e fortalecer a extrema direita, uma conclusão política que se deduz de todo o panorama latinoamericano, como no caso do Chile: a conciliação sempre fortalece a direita. O "giro ao centro" do PT que o viabilizou dentro do establishment capitalista preparou o caminho para a ascensão da extrema direita. Foi o que catapultou o agronegócio, as cúpulas evangélicas, o aparato repressivo do Estado e o autoritarismo judiciário no lulismo da década de 2000. As novas alianças com alas do velho MDB original, com Geraldo Alckmin e Simone Tebet, passando por FHC e demais tucanos, reativa esse caminho. Mas em uma etapa histórica distinta. Essa versão do "giro ao centro" prepara o surgimento de um novo experimento da direita dita "democrática" nos costumes mas com sua agenda neoliberal inspirada no tucanato, com a diferença de que os quatro anos de bolsonarismo não passaram em vão. Não se pode dar marcha ré no relógio da história.

Compartilhamos o sentimento de ódio contra Bolsonaro de todos os trabalhadores e jovens que rechaçaram a extrema direita hoje, e se alegram com a derrota eleitoral de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, alertamos que não é possível enfrentar o bolsonarismo em aliança com a direita, como faz Lula e o PT. Será um governo que cederá muito à direita. É necessário preparar a luta contra o bolsonarismo e a herança do golpe de 2016 de forma independente do governo, organizando a luta pela base.

Enquanto a grande mídia burguesa defende ferrenhamente seu programa para que a frente ampla prepare a volta da direita neoliberal como força política própria no país, nosso desafio é construir um projeto capaz de superar o PT pela esquerda, numa alternativa independente da classe trabalhadora e de todos os setores oprimidos e explorados que recoloque o horizonte ideológico da juventude e dos trabalhadores a perspectiva concreta do socialismo revolucionário.




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