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Um ano de COVID e do fechamento das escolas: dilemas das educadoras no Brasil da pandemia

Grazieli Rodrigues

Imagem: Alexandre Miguez

Um ano de COVID e do fechamento das escolas: dilemas das educadoras no Brasil da pandemia

Grazieli Rodrigues

Grazieli Rodrigues é professora de Artes na rede municipal de São Paulo e militante no Movimento Nossa Classe - Educação.

Nesse texto me refiro a minha categoria, de educadoras – professoras e trabalhadoras da educação, no feminino, como de fato somos: um exército de mulheres que historicamente fizeram e fazem funcionar uma instituição nada secundária para essa sociedade, a escola. E esse fato, de que nós somos majoritariamente mulheres [1], mais do que nunca agora na pandemia se fez pesar sob nossos ombros, maternos, negros, cansados da “novidade” precária do ensino remoto que nos levou ao esgotamento, sendo de forma ainda mais intensa quando combinado às duplas e triplas jornadas de trabalho nas escolas e no lar.

Hoje, 21 de março de 2021, faz exatamente um ano do meu último dia de trabalho presencial, quando as escolas da rede pública onde atuo foram “fechadas” pela pandemia. Assim como fazem aniversário a exclusão das e dos estudantes da rede pública de ensino de todo o país, a educação remota e o sentimento de angústia que isso provoca em nós, educadoras. Enquanto calculam o efeito do fechamento das escolas na economia, eu calculo em experiências não vividas, na quantidade de anos que levaremos para reverter o abismo educacional criado pelos governos que não garantiram acesso ao ensino remoto para estudantes da rede pública, gerando uma maior elitização do ensino superior, com a exclusão dos filhos da classe trabalhadora das universidades. Também em dias de fome, no ingresso precoce das minhas crianças e adolescentes no mercado de trabalho, em muito luto e dor por vezes pela perda do único adulto que cuidava, em violência física e até sexual, e numa infinidade de coisas, que tornam a escola na pandemia um lugar imensamente mais difícil do que a escola que deixamos um ano atrás.

Além disso tudo, graças aos irresponsáveis políticos, essa escola hoje é também insegura. É verdade e todo mundo sabe que ela sempre foi precária, sempre faltou tudo, por vezes chove dentro dela. Mas agora, esses problemas estruturais se combinam com a ausência do que chamamos “condições sanitárias”, mesmo as mais mínimas como o acesso aos equipamentos de proteção individual (EPI’s) para trabalhadores e estudantes, ventilação, testes para todos etc.

As meninas trabalhadoras da limpeza aqui em São Paulo, várias delas mães, mulheres negras, exaustas e superexploradas, foram demitidas aos milhares uma semana antes da reabertura imposta pelo prefeito Bruno Covas (PSDB). No pior momento da pandemia, decidiram por uma reestruturação que reduziu o quadro da limpeza de boa parte das escolas municipais, impondo que duas ou três mulheres deem conta de limpar prédios inteiros com 14, 15 salas de aula, incluindo também desinfetar tudo que for tocado ao menos três vezes por dia.

Vacina? Não temos nem previsão de quando chegará nossa vez, assim como a de tantos trabalhadores essenciais que amargam todo o ônus dessa crise que despejaram em nossas costas e nas de nossos filhos, na forma de roubo de nossos futuros, cujos impactos já são incontáveis e não sabemos quanto vai durar. E pasmem, mesmo faltando tudo isso, querem nos obrigar a retornar presencialmente.

Em muitas escolas particulares o retorno se deu ainda em 2020, iniciando o ano com abertura retorno presencial quase total. São desoladores os relatos de medo, a contaminação bombando, e da sobrecarga de trabalho nem se fala. Ontem li o relato de uma professora, noutro estado, no qual ela começa narrando a ardência no rosto depois de 11 horas de máscara, mas toca outras questões imensamente complicadas, como o falar para os estudantes presentes e os conectados, tudo ao mesmo tempo, com a voz contida pelo único equipamento de segurança que podemos contar. É o que eles chamam de “ensino híbrido”, expressão bonita que na prática representa a sobrecarga do trabalho docente.

Mas não é só sobre não conseguir ser ouvida porque a máscara sufoca nossas vozes, mas também sobre não poder se fazer ouvir ao falar do medo de não voltar pra casa levando o pão por ter adoecido trabalhando; porque dizer o que sentimos nesse momento, nesse contexto onde fica claro que acima de nossas vidas está o lucro, pode custar esse precário emprego que em muitos casos é o único que temos pra bancar a árdua pena de ser mulher trabalhadora no Brasil da pandemia que já prevê 4 mil mortes por dia até o fim de abril.

Assistimos horrorizadas o Brasil passar a ocupar o 2º lugar com mais óbitos em decorrência da COVID-19 no mundo, em contraposição a isso ser 52º colocado no ranking dos que mais vacinaram [2]. Essas estatísticas expressam uma imensa contradição que decorre da política negacionista de Bolsonaro, mas também de todos os sujeitos desse regime golpista, nas suas distintas instituições – Congresso, Justiça, Militares, e também os governadores – que partilham de um mesmo projeto econômico do qual essa crise social se alimenta.

Vimos as enfermeiras, essa categoria também majoritariamente feminina, contabilizar tantos óbitos que superou as mortes desta categoria durante a Primeira Guerra Mundial [3], o que faz com que o Brasil hoje responda por um terço das mortes de trabalhadoras da enfermagem de todo o mundo [4]. Nós, educadoras, com a reabertura das escolas que, onde se deu, foi imposta pelos irresponsáveis governos, estamos presenciando nossas redes e grupos também virarem obituários, com anúncios diários de inúmeras mortes, muitas vezes de colegas, mas também de estudantes, como a Ana Clara, de 13 anos, que morreu em Campinas, interior de São Paulo, dia 3 de março.

O mal desse tempo me leva a pensar por quantas Anas já choramos e quantas ainda morrerão, temendo esses números. No entanto, acho que o que importa discutir é como lutaremos contra cada uma dessas mortes e para vingar todas elas, porque como a professora e militante do movimento negro Letícia Parks disse em seu vídeo: “nossos mortos poderiam estar vivos”. E basta isso, essa ensurdecedora verdade, pra eu me convencer em meio a tanta dor de que não podemos deixar de lutar.

Segundo a APEOESP, sindicato dos professores da rede estadual de São Paulo, em todo o estado são 2304 casos, 1055 escolas e 51 óbitos. Na rede municipal da cidade de São Paulo, os sindicatos do funcionalismo falam em 569 casos, em 256 escolas da rede, levando em consideração que a categoria está em greve desde o dia 10 de fevereiro, contra o retorno inseguro, exatamente pelas precárias condições sanitárias impostas pelo PSDB na cidade e no estado de São Paulo. E há também uma denúncia em ambas redes de casos subnotificados entre os trabalhadores que estão atuando presencialmente, por pressão dos governos estadual e municipal, que querem manter as escolas abertas mesmo quando há casos confirmados entre educadoras e estudantes.

Quando pensamos na situação das trabalhadoras terceirizadas, isso é ainda mais escandaloso, pois além da intensificação do trabalho de limpeza, sem qualquer melhoria das condições de trabalho terceirizado e sem quase nenhum direito, quando finalmente as escolas são fechadas, não por bons motivos mas sim pelos surtos de COVID, essas trabalhadoras com suas vidas já roubadas pela precarização, são obrigadas a seguir trabalhando. Como se suas vidas nada valessem, e de fato nada valem para os governos capitalistas.

Nós, esse exército de mulheres, educadoras, terceirizadas da limpeza, mães dos estudantes que precisam da escola pública, junto a toda a classe trabalhadora, talvez estejamos diante de um segundo dilema, para além de todas as angústias abertas pela pandemia que nos rasgam o peito: o de ocuparmos as primeiras fileiras da luta contra Bolsonaro e o regime que o mantém ainda hoje no poder. Vivemos sob o governo de uma crise que só se intensifica e que tem as mãos sujas do sangue de 290 mil brasileiras e brasileiros.

Nesse momento, cruzar os braços contra a irracionalidade para onde nos empurram para morrer é se negar a transformar as vidas que ocupam o chão da escola em nomes de obituário; é se negar a pagar pela crise que já vinha e o golpe institucional não freou – e não poderia tê-lo feito, porque essa crise é internacional e inerente a todo esse sistema capitalista. Há toda uma narrativa de ataques para derrotarmos: reforma administrativa; reforma da previdência; EC 186, a PEC Emergencial, que congelou nossos salários por 15 anos no momento em que esperam que voltemos passivamente às escolas; a diminuição do auxílio emergencial.

Nossa entrada em cena é a única coisa que pode atropelar as centrais sindicais que não saem de sua quarentena, acompanhando os partidos em suas direções, o PT (CUT) e o PCdoB (CTB), que nada mais fazem senão alimentar ilusão de que a crise que o golpe não sanou poderá ser resolvida em 2022 por Lula elegível ou pela frente ampla, passando por cima da premissa da independência de classe.

Se nossas escolas podem cumprir um papel social, e acredito que podem, isso certamente também não virá da imposição de governos como de Covas e Doria, mas sim da entrada em cena da comunidade escolar, definindo ela própria os protocolos de retorno, assim como quando será possível retornar, a partir de um profundo debate com os trabalhadores da saúde, que estão na linha de frente, e não com as chefias de gabinete como fez o PSDB passando por cima de nossas reivindicações.

Foi também a irracionalidade desses governos que impediu que nossas escolas cumprissem um papel social importante para as comunidades do entorno: de rede transmissora de informações sobre os cuidados sanitários; de distribuição de insumos; de garantia do acesso ao ensino remoto e toda estrutura que dele demanda; de controle e racionamento da pandemia junto aos postos de saúde. Esses elementos poderiam ser parte da função social da escola em meio à crise sanitária, desde que se dessem a partir da garantia do direito básico à quarentena remunerada para todos que são dos setores essenciais, com garantia de um auxílio emergencial que não fosse de fome a todos os desempregados, permitindo às mães, pais e responsáveis pelas crianças o direito de ficarem em casa isolados e cuidando dos filhos e dependentes.

Com nossos rostos marcados pelas máscaras que chegam a arder, com todo o luto que esses tempos enfiaram em nossos peitos, de braços dados com as trabalhadoras terceirizadas e com as mães que são parte essencial da força das comunidades escolares, como fizemos durante toda a pandemia através de ações de solidariedade quando os governos viraram as costas, certamente somos parte essencial da luta contra Bolsonaro, Mourão, Doria, Covas, contra Fachin e o STF que nos alude a ilusão de uma saída que não passe por nossa entrada em cena, revelando o rosto feminino e negro da luta de classes que não tardará a estourar.


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FOOTNOTES

[1Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/elas...> .

[2Disponível em: <https://ourworldindata.org/covid-va...> .

[3Disponível em: <http://www.cofen.gov.br/brasil-resp...> .

[4Disponível em: <http://observatoriodaenfermagem.cof...> .
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Professora da rede municipal de São Paulo
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