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Um novo lugar do Brasil e da América do Sul em meio ao aumento das tensões internacionais?

Leandro Lanfredi

Um novo lugar do Brasil e da América do Sul em meio ao aumento das tensões internacionais?

Leandro Lanfredi

O mundo tal como conhecíamos está acabando. Há, pela primeira vez em décadas, questionamentos militares abertos à ordem instituída. Mas as mudanças precedem e vão além de sua expressão imediata no que a Guerra na Ucrânia já aponta. E isso, inevitavelmente, coloca novos contornos internacionais para o Estado burguês, para as classes sociais e para a luta de classes em nosso país e continente. Dedicamos esse artigo a mapear algumas coordenadas dessas mudanças internacionais e alguns contornos gerais de seus impactos aqui.

Essa mudança na situação internacional se expressa em novos fenômenos militares, econômicos, geopolíticos e crescentemente também políticos em meio a crises “orgânicas” (ou elementos de) em diversos países, e também novidades na luta de classes com potenciais novos, como a greve de massas na França e os elementos profundos que emergem da resistência ao golpe no Peru. As mudanças de maior magnitude e já imediatamente perceptíveis aparecem da Guerra na Ucrânia mas também podem estar se expressando fenômenos com um impacto imenso a depender da evolução de como o “momento pré-revolucionário” possa de fato se fazer uma situação pré-revolucionária na França impactando na Europa e mundo à fora.

Muito além do olhar atento e da visão de longo alcance histórico dos marxistas, como os diversos pontos levantados por Matias Maiello e Emilio Albamonte em “Para além da “Restauração burguesa”: 15 teses sobre a nova etapa internacional...” até mesmo a tradicional revista das finanças como The Economist se dá conta dessa mudança e dedicou todo um número especial de sua revista à “crise da globalização”. No editorial daquele número afirmavam:

“Hoje o sistema está em perigo. Países estão correndo para subsidiar a indústria verde, para atrair fábricas de amigos e inimigos e restringir o fluxo de mercadorias e capitais. O benefício mútuo saiu e o ganho nacional entrou. Uma era de soma zero começou. (...)”

A competição, elementos de conflito comercial (notadamente entre EUA e China) ganharam inauditas proporções depois da Covid-19 e sua interrupção de cadeias de suprimento e mais ainda com a guerra na Ucrânia. Tendências políticas (que também são traduções distorcidas da luta de classes) reforçam essa tendência disruptiva à ordem mundial que já tínhamos. O maior desafio atual a essa ordem, vem da guerra na Ucrânia, onde, por primeira vez em 30 anos há um desafio aberto (e militar) à mesma, mas podem desenvolver novos aspectos da luta de classes (França) e também vem se desenvolvendo uma reatualização de tendências clássicas do imperialismo com a disputa de mercados, de fornecedores, tudo isso em meio ao mais contemporâneo fenômeno de reindustrialização das potências ou de trazer suas cadeias de insumos mais próximas a seus Estados nacionais, o “reshroring” das forças produtivas como chamam.

A guerra na Ucrânia, ao recolocar a guerra no coração da Europa, mostra por mais um caminho como se reatualiza nossa época histórica como uma de “crises, guerras e revoluções”, como definia Lênin. Mas junto dessa guerra e de diversos elementos novos da situação internacional que a precedem e se intensificam na mesma há também uma reatualização de uma das definições basilares do revolucionário russo do que se constituía no imperialismo. Escrevendo em 1916 em seu Imperialismo fase superior do capitalismo colocava como um dos traços definidores do imperialismo a partilha do mundo pelas potências para gerar monopólios de matérias primas, de mercados para exportação de capitais, esferas de influência. Essa disputa passa pelos chips hoje concentrados em Taiwan, mas alcança o lítio, o cobre, e até mesmo coisas mais prosaicas como fertilizantes, petróleo, gás e soja.

Essa característica da fase imperialista que nunca deixou de se expressar era, ao mesmo tempo, atenuada ou mesmo parcialmente “cancelada” por contratendências nas últimas décadas. Em meio a globalização não era tão necessário a nenhuma multinacional garantir que sua cadeia de suprimentos estivesse tão perto de si, não era tão necessário como hoje preocupar-se com que decisões políticas de potências pudesse afetar tão fortemente o fluxo de capitais e mercadorias. Agora isso se tornou problema não só de multinacionais e seus lobbies mas da grande política de Estado. De onde vem a energia, como conseguir fertilizantes, como conseguir terras raras, superchips, tudo isso é tema de cada estado- maior imperialista hoje em dia.
Sempre houve limites à globalização, aqui trata-se de ver as novidades do salto imenso que esses limites deram e que potencialmente podem dar no futuro. O que a pandemia e a guerra na Ucrânia fizeram com o fluxo de mercadorias não é mais que um pequeno suspiro do que algum conflito, mesmo por procuração, entre EUA e China poderiam fazer.

É nesse marco de mudanças importantes no equilíbrio capitalista que devemos encarar a realidade nacional brasileira e de nosso subcontinente. Ao contrário da expectativa fantasiosa de que tudo fluirá calmamente para o bem, como que por desígnio de uma entidade divina de nacionalidade brasileira, que após a extrema direita tudo voltaria a como antes. O Brasil, trafega em águas muito mais turvas que 20 anos atrás, buscando aqui desenvolver alguns ângulos da conexão internacional da análise política em diálogo - e a nosso ver complemento - com as recentes elaborações de Danilo Paris e André Barbieri.

Equilíbrio capitalista instável e a nova realidade

O equilíbrio capitalista é um fenômeno complicado; o regime capitalista constrói esse equilíbrio, o rompe, o reconstrói, e o rompe outra vez, ao passo estendendo os limites de seu domínio. Na esfera econômica estas constantes rupturas e restaurações do equilíbrio tomam a forma de crises e booms. Na esfera das relações entre as classes toma a forma de greves, em locautes, em luta revolucionária. Na esfera da relação entre os Estados, a ruptura do equilíbrio é a guerra ou mais disfarçadamente, a guerra de tarifas aduaneiras, a guerra econômica ou o bloqueio.” Leon Trótski, A situação internacional

No informe ao congresso da Internacional Comunista, em 1921, o revolucionário russo desenvolvia o conceito de equilíbrio capitalista e seu método de análise da situação internacional correlacionando economia, relação entre os Estados e a luta de classes, e demonstrando como na época imperialista (de crises, guerras e revoluções) há primazia desse último fator. A vitória da revolução proletária na Rússia e demais Estados que formaram a URSS tinha rompido esse equilíbrio, a onda expansiva da revolução no Ocidente (Alemanha, Finlândia, Hungria, entre outros) tinha sido derrotada com a inestimável ajuda da social-democracia e a burguesia conseguia reconstruir um novo equilíbrio.

Defendemos nesse artigo que estamos em um momento de reorganização e não ruptura desse equilíbrio, a maior mudança em curso está, até o momento, no plano da relação entre os Estados, mas a evolução da luta de classes poderia configurar um “ruptura”. Mesmo esse “momento reorganização” já transborda em tensões e medidas de conflito econômico e impactos nas crises orgânicas dentro dos países, abrindo de passo novos desafios e possibilidades para a luta de classes. Passaremos por definições internacionais para situar o objetivo do artigo, mas submetemos ao leitor – para aprofundamento – outros artigos que mencionaremos (e já mencionamos) que desenvolvem muito mais profundamente temas que aqui mencionamos para situar o objetivo do artigo.

Queremos nos debruçar sobre os impactos dessas mudanças geopolíticas no Brasil (e em algum sentido estendendo algumas reflexões para a América do Sul) para a partir disso pensar a inter-relação desses fenômenos geopolíticos com a economia, a política e tendencialmente com a luta de classes no país começando aqui só por contornos gerais da relação internacional-nacional. As tensões internacionais colocam a América Latina e o Brasil em um terreno particularmente relevante de “corrida de velocidades” das potências diante da tendência a conflitos de maior envergadura e isso implica em reforçadas tendências a bonapartismos, tensões internas e internacionais.

A fratura aberta na ordem mundial das últimas décadas

A guerra na Ucrânia marca a maior mudança geopolítica mundial nas últimas décadas. Como desenvolvido por Emilio Albamonte e Matias Maiello em “Para além da “Restauração burguesa”: 15 teses sobre a nova etapa internacional’. Trata-se de “uma mudança histórica fundamental: sublinha, para além dos ritmos, que não necessariamente serão lineares, o início do questionamento aberto (militar) à ordem mundial dos últimos 30 anos, nesse caso pela Rússia, mas onde também se visualiza detrás a China como a grande potência “revisionista” da atualidade – que coloca em questão a hegemonia (declinante) dos EUA.

A ordem mundial erguida desde a restauração capitalista tinha como marcos cruciais uma relação entre os Estados onde os EUA aparecia como “hegemon” inconteste, e “polícia do mundo”, o que foi mudando a partir da guerra do Iraque (2003) onde parceiros cruciais como França e Alemanha se opuseram abertamente. Ao longo dos últimos anos foi se acentuado a decadência dessa hegemonia (o atoleiro no Iraque, a saída do Afeganistão etc) e a China aparece como potência “revisionista”, ou seja, que precisa reorganizar o tabuleiro mundial que está organizando em detrimento de seus interesses ascendentes.

Do ponto de vista econômico essa ordem mundial implicava em um rebaixamento mundial dos salários a partir da exploração capitalista de países onde a burguesia tinha sido expropriada, a proletarização de centenas de milhões de chineses e outros proletariados do leste asiático e uma globalização neoliberal. Em base a esse fenômeno foi possível desenvolver um “pacto social neoliberal”, mais elitista que o do pós-guerra, baseado em um cidadão-consumidor que acedia a mercadoria mais baratas mediante crédito e permitia algumas condições de vida melhores a uma parcela mais diminuta da população mundial, ocorria também uma concomitância entre democracias burguesas degradadas e neoliberalismo.

Vimos a tradução brasileira desse pacto primeiro com FHC e depois – em escala ampliada com Lula – fator que ainda é pedra de toque no discurso de massa “picanha e cerveja” e sua base no indivíduo trabalhador e seu consumo por fora de apoiar-se, por exemplo, em uma classe social organizada em sindicatos lutando por aumentos salariais como seria um contorno de um reformismo clássico. Assim, pode o governo Lula-Alckmin conjugar o indíviduo-consumidor com heranças do regime do golpe a serem mantidas, como a reforma trabalhista, entre outras.

Em meio a esse pacto neoliberal a geopolítica mundial quase podia ser reduzida (em forma simplista) às seguintes afirmações: China aparecia como “fábrica do mundo” e os EUA como “consumidores em última instância”. A Europa – e particularmente a Alemanha como primus inter pares na UE – se beneficiava desse binômio tendo a China como grande mercado para suas exportações de capitais e máquinas (além de ficar com o Leste Europeu como fonte de proletariado qualificado e ao mesmo tempo mais barato). A Alemanha e todo seu bloco econômico complementar dentro da União Europeia desenvolvia uma política de dependência energética da Rússia, fonte crucial de energia barata para sua indústria.

A América do Sul e o Brasil em particular vinculavam-se a essa “ordem” com primazia (mas não somente, evidentemente) do aspecto de fornecedores de matérias primas (“fazenda do mundo”). Contribuindo com o cobre (Chile), cereais e oleaginosas (Mercosul), proteínas animais (Mercosul), ferro (Brasil) e como fonte secundária de petróleo (Venezuela, Brasil, e em menor proporções outros países). Antes da crise econômica dessa ordem todos países na América do Sul viveram anos de boom, e politicamente no Brasil eram os anos do auge do lulismo, explorando limites para a burguesia nacional e para algumas tímidas medidas redistributivas sem afetar o cerne desse pacto e sem nenhuma medida que afetasse interesses imperialistas, como se fosse possível emergir pacificamente em um mundo já dividido e loteado.

Com o desenvolvimento da crise capitalista mundial em 2008, a “queda do muro de Wall Street” ocorreu uma gestão da crise onde as potências atuaram (mediante massivas injeções de capitais) para impedir o livre desenvolvimento da queima de capitais (o que se repete nas quebras de bancos nos EUA agora em março de 2023), mas por outro lado, importaram contradições em suas economias e na política dando lugar por um lado a um ciclo de revoltas (por exemplo a Primavera Árabe) e a crises orgânicas (ou elementos desse tipo de crise) nos países.

Na China essa crise implicou em um giro a seu mercado interno e aumento no poder de compra de suas massas e crescente exportações de capitais (p.ex com a “nova rota da Seda”). Para os EUA isso implicava uma nova política internacional, voltada a conter a China, daí o “pivô ao Pacífico” de Obama, e o início da guerra comercial de Trump com a China e agora o desenvolvimento de novas alianças político-militares, como o QUAD, que dá um lugar novo e mais destacado à Índia no sistema de alianças americanas para contenção da China. Essa mudança na localização internacional da Índia e o status de “pária” da Rússia coloca muito maiores limites para a China e ainda mais secundariamente para o Brasil se utilizare dos BRICS, já que crescem as contradições internas desse bloco.

Na Europa, a crise dessa ordem explodiu em luta de classes na Grécia, novos fenômenos políticos neorreformistas e sua posterior diluição na velha social-democracia e seu programa de "extremo-centro" neoliberal, ascensão política da extrema-direita em diversos países, e em revelar todos limites da União Europeia como um consórcio de interesses imperialistas, mas que não suprime os interesses nacionais e sua necessidade dos Estados nacionais. Na crise da dívida grega se mostrou com todos os dentes os interesses alemães, e silenciosamente a Alemanha vem construindo uma complementariedade e dependência de economias menores à sua, mas também integrando exércitos debaixo do seu como a revista Foreign Policy destacava em 2017 relativo a Holanda, República Checa e Romênia. A guerra na Ucrânia marca uma mudança nos tempos históricos, (“zeitenwende”), segundo o discurso do próprio chanceler Olaf Scholz) com um inédito armamento bilionário de suas Forças Armadas.

A União Europeia que enfrentou o Brexit também acumula crescentes contradições com a Alemanha se recusando a ajudar os outros países com os custos de energia, mas criando fundos bilionários para ajudar somente sua indústria, desenvolvendo crescentes tendências centrífugas na União, como destacava em setembro passado Josefina Martinez do Estado Espanhol em “Europa na encruzilhada: guerra, inflação e greves de descontentamento”. Para um aprofundamento na situação política europeia sugerimos o artigo de mais folêgo de Juan Chingo no congresso de fundação do Revolution Permanent na França.

As tensões começam a opor interesses “atlantistas” e “nacionalistas” dentro de cada imperialismo Europeu, como “atlantismo”, entendamos alinhamento de seus interesses confluente aos EUA. Trump tentou explorar essa divisão falando de “velha europa” e “nova europa”, o alinhamento de todas potências europeias com os EUA na guerra da Ucrânia marca um hiato “atlantista” mas não resolve essas contradições, que voltam a se expressar a cada passo, particularmente nas relações com a China, como Juan Chingo desenvolveu nesse artigo quando Olaf Scholz foi à China em novembro passado.

Há componentes estruturais desse problema entre “atlantistas” e “nacionalistas” em diversos países, vejamos como Albamonte e Maiello desenvolvem essa contradição alemã em artigo já citado: “no caso da Alemanha vemos a política contraditória, produto da divisão de suas próprias classes dominantes, do alinhamento com os EUA na guerra da Ucrânia enquanto várias de suas principais transnacionais (como Volkswagen, Deutsche Bank, Siemens o BASF, entre outras) buscam apontar para a relação com a China, com cuja economia estão amplamente integradas e da qual dependem. Assim, os diferentes setores burgueses, os mais e menos transnacionalizados, começam a divergir em seus interesses levando estas brechas à disputa política no interior de cada regime (segundo o nível de alinhamento com os EUA ou de vinculação com a Rússia ou a China).”

Os elementos políticos (internos) e geopolíticos só se agregam a uma economia mundial que “perdeu seus ventos favoráveis”, como desenvolvido por Juan Chingo nesse artigo pontuando não somente as tendências a fim da globalização, relocalização de empresas, mas o impacto na queda da taxa de lucros e particularmente na perda dos ganhos de produtividade nas principais economias capitalistas. Esse cenário tende a gerar crises muito maiores, com todas suas implicações em cada terreno.

Esses fenômenos partem das tensões que já se mostravam no capitalismo mundial antes mesmo da guerra na Ucrânia e se expressavam na tensão em busca de matérias primas, controle de tecnologias e mercados, como pontuamos no início do artigo. Essa tendência reatualiza definições de Lênin sobre a época imperialista e são o pano de fundo para analisar como se desenvolve o fenômeno em nosso país (e por extensão de onde o raciocínio alcançar, em nosso sub-continente).

É nesse marco particular, preparatório – ou seja, de acúmulo de forças antes de eventos mais decisivos - do ponto de vista econômico e geopolítico (e tendencialmente da luta de classes) que temos que encarar a situação do Brasil (e da América Latina) e seu lugar particularmente importante no que definimos aqui como “corrida de velocidades” entre as potências.

A “corrida de velocidades” das potências

Dois anos atrás abordávamos em “Novo superciclo de commodities e nova disputa de mercados pelos imperialismos” o debate econômico de quais commodities tinham tendência de manutenção de alta e quais tinham menos tendência, mas também como já se expressavam algumas atualizações iniciais da tendência imperialista a controle monopolista de regiões do globo e seus recursos. Depois da guerra na Ucrânia essas tendências aumentaram. No mundo de 2023 é quase impossível folhear um número inteiro de alguma grande revista imperialista e não encontrar reflexões a esse respeito.

Na The Economist de 28/2 há longo debate sobre planos yankees para quebrar o monopólio chinês em minerais estratégicos, incluindo na matéria o anúncio de um “Minerals Security Partnership” por parte de Blinken, o Secretário de Estado norte-americano, junto ao G7 e a União Europeia. As preocupações imperialistas vão muito além das matérias primas, passam pela cadeia de suprimentos, daí as reflexões sobre trazer fábricas da China para os EUA, para o México e a América Central por parte dos EUA, mas trafega inclusive em termos bem maiores, sobre a influência e lugar das potências no mundo.

É conhecida a “Doutrina Monroe” por parte dos EUA, doutrina essa que cumpre agora 200. Segundo ela, qualquer interferência de uma potência europeia na política das Américas era potencialmente um ato hostil aos próprios EUA. Sabe-se que essa regra nunca foi absoluta, e conforme conveniência interferências, até mesmo militares, como a do Império Britânico contra a Argentina na Guerra das Malvinas foi tolerável. Mas serve de precedente histórico de como os EUA pensam o continente como seu “pátio traseiro” e desde essa localização visam “acumular forças” em seu jogo global. Não à toa, poucos dias atrás, em 08/03, houve toda uma sessão especial de comissão no Congresso Americano para discutir a presença chinesa na América Latina, a CNN americana deu cobertura relevante ao evento -> https://edition.cnn.com/2023/03/08/politics/china-south-america-caribbean-us-military/index.html]. Neste evento a general Laura Richardson, comandante do Comando Sul dos EUA (o responsável pela região) afirmava alarmada: “A República Popular da China expandiu sua capacidade de extrair recursos, estabelecer porto, manipular governos através de práticas de investimentos predatórios e construção de instalações espaciais de uso duplo” (referindo-se a base instalada na Argentina). Já o comandante do Comando Norte dizia “A proximidade importa. Eles estão na linha de 20 jardas de distância de nossa pátria. Estamos na vizinhança, esses são nossos vizinhos e temos que prestar mais atenção a eles.”

Mesmo longe da importância que tem o México para o capital americano, muitas jardas à frente da linha vermelha do general, o Brasil e o Cone Sul são relevantes. Os EUA são individualmente o país com maior estoque de capitais investidos no Brasil, segundo o BC Brasileiro, esse valor alcançava US$114 bilhões em 2020. A Europa, como um todo, disparava à frente com US$507,3 bilhões (possivelmente exista parcela de capitais americanos e chineses que apareçam através de sucursais), já a China ficava com somente US$22,6 bilhões controlados. Os números referentes à China apresentados pelo think thank americano American Enterprise Institute resultam em um valor bem maior para a China em 2023: US$66,09 bilhões. Um valor bem mais expressivo, mas ainda bastante inferior ao computado pelo BC brasileiro para os EUA e Europa.

O Brasil, segundo esse mesmo instituto, é o quarto maior destino mundial do capital chinês, perdendo somente para EUA, Reino Unido e Austrália. Na América Latina, chama atenção como o segundo no ranking é o Peru com mais de US$25 bilhões investidos. Tomando os dados desse instituto, Brasil, Argentina, Chile e Peru somam US$119,53 bilhões de capital chinês, ou 81% de toda América Latina e Caribe. O Peru, segundo colocado no ranking chinês, passou recentemente por um golpe de estado e onde os EUA prontamente reconheceram – tal como Lula, que além disso fornece equipamento repressivo – para o governo Dina Boluarte. Nunca é demais lembrar, como recentemente, o golpe na Bolívia – país também rico em minerais estratégicos – foi prontamente reconhecido pelo bilionário Elon Musk, um grande interessado no lítio boliviano. Com um tweet ele dizia “Vamos dar o golpe em quem quisermos! Lide com isso.”

É claro que há uma competição internacional entre EUA e China em todo planeta, mesmo no “pátio traseiro”, que já tem em praticamente toda a América do Sul a China como a maior parceira comercial. Mas, como mostramos, o maior estoque de capitais, ao menos no maior país do continente, o Brasil, é predominantemente europeu.

Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, afirmava em 2020, em texto no site da própria União Europeia que “a atenção concedida à região da ALC não é, de facto, proporcional à sua importância. Em conjunto, representamos quase um terço dos votos na ONU. O volume de investimento direto estrangeiro (IDE) da UE27 na ALC ascende a 758 mil milhões [bilhões] de euros: mais do que o total do investimento da UE na China, na Índia, no Japão e na Rússia combinado.” Porém ele chama atenção, como “outros intervenientes internacionais estão a ganhar terreno: o envolvimento dos EUA tem sido estável e o investimento chinês decuplicou entre 2008 e 2018”. E, mais importante, ele sentencia: “O acordo UE-Mercosul tem uma finalidade geopolítica significativa: evitar que as duas regiões sejam relegadas para segundo plano no confronto entre os EUA e a China”.

Essa formulação, de não ficar espremidos entre EUA e China, mostra o nível de importância que esse alto comissário dá para a América Latina, e especialmente para o Brasil e Mercosul. Assim se entende a deferência com que Macron e Scholz trataram Lula mesmo enquanto esse era candidato. Há um problema estratégico para a União Europeia para procurar se apoiar no continente, sabe-se da importância estratégica da região para os EUA e também da crescente penetração chinesa. Se estabelece – em perspectiva – tal como já vimos em outros períodos, como antes da primeira guerra mundial,e antes da segunda guerra mundial, uma mais acirrada “corrida de velocidades” de potências no continente, e particularmente em sua parte menos forçadamente pró-ianque como a América Central e Caribe. O Cone Sul mais de uma vez apareceu como terreno mais “aberto” à disputa.

Evidentemente tratam-se de contornos iniciais – há de se acelerar ou tornar-se mais lento com os ritmos mundiais – de uma corrida de velocidades, como já se viu nos períodos já mencionados. Políticas europeias diferentes das americanas, por exemplo, já se expressaram em outros momentos mais recentes no subcontinente, como na cooperação da Alemanha Ocidental com a ditadura brasileira (com direito a transferência de tecnologia nuclear), com ensaios de aproximação estratégica da França com o Brasil sob Lula (submarinos nucleares, caças supersônicos), elementos que foram fortemente golpeados pela Lava Jato (e sua clara participação ianque).

Também se conhece como o imperialismo francês e o imperialismo alemão (sob Merkel naquele momento) tiveram uma posição menos entusiasta do golpe institucional no Brasil (mesmo que também o apoiando e avalizando -> https://www.esquerdadiario.com.br/Governos-dos-Estados-Unidos-e-Alemanha-dao-aval-imperialista-ao-golpe-no-Brasil-6618?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=Newsletter]). A Lava Jato golpeou fortemente “global players” brasileiras mas não deixou de mirar interesses europeus, como pontuado em outra matéria. Também são bem conhecidos os atritos de Bolsonaro com diversos governantes europeus.

Essa constatação desses contornos internacionais de “corrida de velocidades” e sua interação com nosso país e subcontinente deixam de pé uma agenda de investigações para aprofundar a análise, explorando ramos onde há maior presença de cada capital, pensar país a país do continente americano, bem como, no caso da União Europeia, desenvolver de forma mais separada – por país – a análise, já que se trata de diversos Estados nacionais imperialistas, com suas próprias crises políticas e de luta de classes, e, alguns países, como o Estado Espanhol, costumam ter uma localização política muito similar aos EUA no continente, vide sua posição frequentemente agressiva contra o regime bonapartista da Venezuela, e parecem diferir de uma localização mais “independente” que Alemanha e França por vezes apontam.

Mais divisão internacional pode embaralhar mais as crises orgânicas locais e também reatualizar desafios para os trabalhadores

Já abordamos nesse artigo como Maiello e Albamonte mostram o aumento das divisões internas em diversos países imperialistas europeus em meio à guerra na Ucrânia. Em um país dependente, atrasado, ou com traços semi-coloniais, como o Brasil e boa parte dos vizinhos, as ingerências disruptivas desses capitais e suas políticas diferentes aumentam as tensões estruturais tendentes a “bonapartismos sui generis”, tal como desenvolveu Trótski em seu exílio mexicano. Sendo ele “de direita”, ou seja apoiando-se no(s) imperialismo(s) contra as massas, ou de “esquerda” apoiando-se nas massas para disputar maior espaço para a burguesia nacional em detrimento do(s) imperialismo(s).

A crise dos pactos sociais neoliberais e das democracias burguesas degradadas, que dão lugar a bonapartismos débeis em diversos países, como podemos ver com Trump, Macron, significa, na periferia capitalista, como no nosso país, governos desse tipo mas com uma diferença de expressar não a projeção internacional de seu imperialismo mas “a dependência mais servil ao capital imperialista estrangeiro pelo peso que cobra este último nos regimes como produto da debilidade relativa (em relação às classes trabalhadoras e ao imperialismo) das próprias burguesias locais”, como desenvolvem Maiello e Albamonte no artigo já citado.

A debilidade estrutural da burguesia nacional diante do proletariado e dos imperialismos coloca essa tensão estrutural no regime político. O golpe de 2016 teve alguns objetivos claros, um deles é inegavelmente o aumento dos elementos de subordinação do Estado brasileiro aos imperialismos em geral e ao americano em particular. Bolsonaro em particular atuou o máximo que pode para seguir e favorecer a ala burguesa “trumpista” dos EUA, no limite máximo que isso era possível sem colocar muito em xeque negócios com a China e União Europeia, muito cruciais ao agronegócio brasileiro.

É muito díficil entender a dinâmica de setores da burguesia brasileira, como a Globo e parte da mídia, que passaram de entusiastas da Lava Jato, articuladoras do “golpe dentro do golpe” com Janot em meio ao governo Temer, para defensoras do que resta do regime de 1988 e sua mudança de postura em relação a Lula e o PT por fora das divisões e da crise orgânica nos EUA. Assim também se entende como o partido democrata passou de dar corda à Lava Jato a crítico da mesma e apoiar-se em outra ala do judiciário, como particularmente Moraes, como demonstra André Barbieri em artigo já citado.

Nos Brasil há hoje ao menos 3 forças bonapartistas em desenvolvimento, tensão e combinação, o bolsonarismo-militar, o judiciário e o hiperpresidencialismo de Lula, que se apoia nos poderes discricionários do Executivo nacional, no Centrão e numa aproximação conjuntural com o bonapartismo judicial, e é importante pontuar como um traço crucial do bonapartismo que reside com Lula ao seu centro: numa coalizão muito além do sufrágio para governar. Todo governo de coalizão, pontuava o marxista italiano Antônio Gramsci, traz consigo alguns elementos iniciais de bonapartismo, ao contrário do que quer o senso comum que vê na coalizão “mais consenso” ali reina maior bonapartismo, como mostra Juan Dal Maso.

A visão sobre as forças bonapartistas em disputa (e combinação) pode ser enriquecida pensando para além das bases de classe nacionais em que se apoiam, com quais interesses e atores conciliam, mas também quais frações da classe dominante procuram fortalecer e favorecer. Em um país como o Brasil isso é inesperável de pensar a relação com diferentes imperialismos e potências. No mundo de 2023 não é muito viável pensar uma política que agrade todas potências. É justamente uma localização desse tipo que tenta ter Lula, tentar localizar-se com a Europa por um lado - em particular França, Alemanha e países nórdicos- fazer o interesse americano apoiando o golpe no Peru, tentar estreitar parcerias com a China e em tudo isso tentar achar uma ala da burguesia nacional a privilegiar sem nunca atacar interesses imperialistas. Esse jogo “multipolar” e em benefício de alas da burguesia nacional “global player” tem - e terá - bases cada vez mais estreitas. Se no Brasil de 2003-2016 já se mostraram estreitas demais as margens para avanço pacífico, conciliado, agora mais ainda o são. Por outro lado, quanto mais longo for esse período “preparatório” da corrida de velocidades, maior a possibilidade de jogo bonapartista “multipolar” de Lula, mas quanto mais se acelerem os ritmos internacionais, mais complexa e disruptiva podem ser suas inflexões no país, mais ainda do que já foram no período recente.

Ainda que existam mais capitais europeus no Brasil, e uma presença não desprezível em outros países do sub-continente, particularmente no Cone Sul, estes nem sempre atuam em uníssono já que apesar da União Europeia não podem prescindir de seus Estados nacionais e interesses contraditórios (e diferentes contornos de sua luta de classes internas que dificulta projeção externa, como pode ocorrer com Macron agora, há que se ver como evolui e como a luta de classes embaralha mais o terreno internacional). Por outro lado, a influência política, militar e cultural americana (em suas distinta alas) é predominante historicamente e possui duas fortes influências hoje no Brasil ao menos, de um lado no judiciário e na Globo e parte da burguesia “liberal”/democrata e por outro lado com o trumpismo e a ala bolsonsarista-militar. A força das relações econômicas com a China impõe-se em todo país, mas é decisiva justamente onde politicamente há mais alinhamento com alas trumpistas (e anti-china) do imperialismo norte-americano como nas regiões dominadas pelo agronegócio.

Esse breve exame mostra, mais uma vez, como nem sempre há uma correspondência imediata entre consciência e existência. Isso vale para burgueses, latifundiários trumpistas e que lucram com a China no Mato Grosso, mas vale ainda mais para os trabalhadores dirigidos pelas burocracia sindicais, especialmente por Lula e o PT em nosso país, para que o topo de suas aspirações seja em um país e em um continente com tantas riquezas como o nosso possa ser só o limite do conciliável com o judiciário, com o Centrão, com a Globo, e mais importante, com os diferentes imperialismos.

A definição de que aponta-se a maiores disputas entre potências em nosso país e continente aponta a maiores fenômenos de interferência imperialista e de potências na dinâmica das classes sociais do país, reforçando tendências bonapartistas, reforçando a instabilidade política. A importância política de uma atuação de independência de classe no país, sempre foi, mas cada dia ainda mais será inseparável do anti-imperialismo e da solidariedade de classe internacional. Eis a antípoda de procurar parceiros “multipolares”, como alguns articulistas petistas (dentro e fora do PT) buscaram ou seguem buscando em um Xi Jinping, buscaram em Macron ou numa Dina Boluarte, mas sim no vibrante proletariado chinês, nas greves de massas contra a reforma da previdência na França e nos trabalhadores e povos originários peruanos.

A mudança dos tempos históricos, e seus novos desafios reatualizam definições teóricas sobre o imperialismo e sua relação com os regimes políticos e sua instabilidade no país e continente, mas também reatualizam questões da estratégia socialista revolucionária e o programa histórico da IV Internacional para nosso continente: completar a luta pela plena e íntegra resolução dos problemas estruturais de combate as opressões nacionais, da luta pela terra, e da independência nacional através da livre associação dos trabalhadores e de todos povos negros e originários que perfazem a maioria de nossos proletariados através dos Estados Unidos Socialistas da América Latina.


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Leandro Lanfredi

Rio de Janeiro | @leandrolanfrdi
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