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As mulheres na Revolução Cubana
Odete Assis
Mestranda em Literatura Brasileira na UFMG

Neste 25 de julho, dia da mulher negra latino-americana e caribenha, às vésperas dos 62 anos da Revolução Cubana, retomamos alguns exemplos sobre o papel das mulheres nessa que foi a revolução social mais profunda da América Latina.

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Imagem: Juan Chirioca | @macacodosul

Muito além dos barbudos de Sierra Maestra, dos caudilhos guerrilheiros como Fidel Castro e Che Guevara, a Revolução Cubana foi um intenso processo onde as massas trabalhadoras e camponesas levaram adiante as tarefas de expropriação da burguesia, conferindo o caráter socialista da revolução, apesar de sua direção pequeno burguesa. E nesse processo, as mulheres foram parte fundamental. Algumas delas, como Haydée Santamaría, Melba Hernandez, Celia Sanchez e Vilma Espin, que eram parte do Movimento 26 de Julho, se tornaram símbolos da participação feminina na guerra revolucionária. Outro exemplo é o pelotão de mulheres combatentes, Las Marianas, 13 mulheres revolucionárias que eram parte da linha de frente do Exército guerrilheiro. Mas houve também aquelas milhares de mulheres anônimas, as trabalhadoras e camponesas, que lutaram bravamente para e pela revolução.

Esse mês Cuba voltou a ser o centro das atenções em nosso continente, quando em 11 de julho uma grande manifestação, com confrontos e repressão levou às ruas milhares de pessoas naquele país. Os impactos do “efeito Covid” num contexto de crise econômica e social foi o motivo imediato das mobilizações, no entanto, as causas profundas estão ligadas aos fenômenos conjunturais e estruturais, a economia e a política desse país. Apesar da hipócrita propaganda imperialista, que mantém um embargo criminoso há 60 anos contra o povo cubano enquanto alentam manifestações supostamente em defesa da “liberdade” e “democracia”, o que na verdade é parte de uma política para avançar ainda mais na restauração capitalista e retroceder nas conquistas da revolução, as manifestações também foram impulsionadas por aqueles setores que questionam pela esquerda a burocracia do governo cubano, agora sob o comando de Miguel Díaz-Canel.

Nesse artigo, iremos resgatar alguns importantes exemplos sobre o papel da mulher na sociedade cubana pré-revolução, sobre como as mulheres se organizavam dentro do Exército Rebelde, se enfrentando não só com a herança patriarcal do sistema capitalista defendido por Fulgêncio Batista, mas também com as próprias concepções machistas dos guerrilheiros sobre o papel das mulheres na luta armada. E como apesar disso, foram juntamente com as massas trabalhadoras e camponesas as protagonistas da primeira revolução triunfante no continente americano, permitindo assim que as conquistas desse processo garantisse direitos sociais que nenhum Estado capitalista, em pleno século XXI, é capaz de oferecer até hoje às mulheres.

A organização das mulheres durante a ditadura de Fulgêncio Batista

O golpe de Fulgêncio Batista em 1952, a serviço dos interesses imperialistas norte-americanos, instaura uma ditadura que tem como parte da sua defesa dos interesses capitalistas, também a manutenção da cultura patriarcal e da opressão às mulheres. No entanto, como parte da luta contra o golpe, surge em Cuba mais de 29 organizações femininas de caráter político-social e assistencial, juntamente com outras organizações, armadas, majoritariamente masculinas, que lutavam contra a ditadura.

As mulheres já haviam se organizado na Frente Cívico de mulheres cubanas e na Frente Cívico de Mulheres Martianas, mas uma das primeiras formas de organização das mulheres estudantes se dava pela via da Federação dos Estudantes Universitários, onde muitas delas ingressaram para a luta, e terminavam se aproximando do Diretório Revolucionário 13 de Março, onde os estudantes se preparavam para a luta armada. Outra organização feminina de destaque foi a Frente Nacional de Mulheres Martianas (FCMM), um grupo revolucionário que se estendeu por quase todo o país e agia muito próximo do Movimento 26 de Julho. Esse grupo começou a se organizar meses depois do golpe e buscava pela via da revolução armada e a instalação do poder popular, por fim à ditadura de Fulgêncio Batista.

Algumas mulheres como María Yolanda Alfonso Pérez (que nasceu em 1933, foi membra do Diretório Revolucionário, da Frente Cívico de Mulheres Cubanas e colaborou com o Movimento 26 de Julho), J. Magaly Martínez Pérez (que nasceu em 1938, era membra do Diretório Revolucionário e do Movimento 26 de Julho) e Hildelisa Esperón Lozano (que nasceu em 23 de dezembro de 1940, era membra da Frente Cívico de Mulheres Martianas, do Movimento 26 de Julho em Ação e Sabotagem e colaborou com o Diretório Revolucionário) se aproximaram da luta armada pela influência de seus pais e mães, que também eram combatentes.

Para se organizar na luta revolucionária muitas delas tinham que se enfrentar com a opressão patriarcal, em especial as mais jovens. O profundo machismo da sociedade cubana capitalista colocava que “não era certo” uma moça andar acompanhada de rapazes, ou ir a reuniões sozinha com homens, deixando muitas mulheres dependentes de suas mães, que contribuíram e acompanharam suas filhas. Para algumas militantes, em geral as oriundas da pequena e média burguesia, cujos pais não apoiavam a luta contra a ditadura, romper essas barreiras era ainda mais difícil. Ao mesmo tempo, quando conseguiam superar essas dificuldades e se organizavam, as mulheres levantavam menos suspeitas e isso ajudava a cumprissem os trabalhos clandestinos de forma mais eficaz.

O papel das mulheres no Exército Rebelde

No artigo “Gênero e Revolução Cubana: reflexões sobre as relações de gênero no Exército Rebelde”, apesar de não se tratar de uma visão marxista a respeito da revolução e suas conquistas, Rafael Saddi e Érica Isabel Melo dão um panorama importante a partir do estudo de relatos autobiográficos de algumas das mulheres guerrilheiras sobre os desafios colocados para sua organização dentro o próprio Exército Rebelde.

As memórias autobiográficas de Aleida March (2009), combatente das planícies e da Sierra, que ficou conhecida por se tornar a segunda e última esposa de Che Guevara, assim como os relatos publicados por Carlos Franqui (s/d) de Celia Sanchez e Haydée Santamaria, guerrilheiras cubanas consideradas, no discurso oficial, heroínas da revolução, são fundamentais para percebermos o modo como a inserção das mulheres na luta guerrilheira passava por tensões culturais profundas, expressas nos olhares dos guerrilheiros e nas tarefas que lhes eram destinadas. (pág. 1272)

Inegavelmente ser parte da luta revolucionária e estar em combate contra a ditadura que defendia os interesses imperialistas era algo muito marcante na vida dessas mulheres. Mas mesmo nesse processo elas precisavam se enfrentar com o machismo do qual a estratégia guerrilheira não dava um combate consequente até o final. Nesses relatos, ainda que feitos no calor do pós-revolução, no intuito de defender o papel do Exército Rebelde e inclusive expressar sua adoração por Fidel Castro, é possível perceber como dentro desse movimento revolucionário, também se expressavam uma visão das mulheres como mais frágeis que os homens.

Em “La guerra de las guerrilhas”, Ernesto Che Guevara, ao discutir o papel das mulheres na luta armada, começa combatendo essa velha concepção patriarcal da qual muitos guerrilheiros eram influenciados, atribuindo a uma “mentalidade colonial” a subestimação do papel das mulheres no desenvolvimento do processo revolucionário, inclusive dos setores mais atrasados que buscavam atribuir a presença das mulheres uma certa desordem no exército porque atiçava os instintos sexuais dos guerrilheiros, causando disputas e transtornos. No entanto, ao fazer esse combate e exemplificar qual o papel das mulheres na sua visão, ele termina por reforçar um papel das mulheres como auxiliares do combate, ocupando as tarefas relacionadas aos cuidados, como enfermeiras, cozinheiras ou mensageiras. E quase nunca como combatentes da primeira linha.

Conforme relata María Dolores Matamoros Labrada (membro da Frente Cívico de Mulheres Martianas, do Movimento 26 de Julho, tendo colaborado com o Diretório Revolucionário): “Nós tínhamos que lutar nesse meio. Eu considero que desenvolvemos três lutas: A luta pelos ideais, que foi a primeira e que estou lhes contando agora; a luta contra a família e a luta contra os preconceitos com a mulher.” [1]

Um dos mais emblemáticos exemplos do papel das mulheres na Revolução Cubana é o Pelotão de Mulheres revolucionárias, denominado Las Marianas, em homenagem à Mariana Grajales, “la madre de la Pátria”, uma combatente pela independência de Cuba no século XIX, que durante dez anos subiu montanhas, cuidou de feridos e cruzou rios na luta contra a dominação do imperialismo espanhol. Esse pelotão era formado por treze jovens na faixa dos 17 anos, sobretudo de origem camponesa, e foi organizado em 3 de setembro de 1958 pelo Exército Rebelde para combater na Sierra Maestra, ao lado de Célia Sanchez e Fidel Castro.

O discurso oficial, ao invés de mostrar como o surgimento desse pelotão de mulheres combatentes foi fruto de uma decisão das próprias mulheres revolucionárias, atribui essa criação a Fidel Castro. Escondendo inclusive o fato de que tal decisão foi recebida por grande parte dos rebeldes como algo negativo e sua consolidação só foi possível não pela vontade daquele caudilho que dirigiu sob seus interesses as massas revolucionárias, mas sim da luta determinada de mulheres que como parte da sua incansável luta revolucionária também se enfrentaram com os séculos de opressão patriarcal que buscavam aprisioná-las em papéis secundários, quando estas eram queriam se fazer protagonistas da sua história e da história da humanidade.

As tarefas da revolução e as conquistas das mulheres

Para uma análise mais aprofundada sobre o processo revolucionário cubano e suas características particulares sugerimos a leitura do artigo A Revolução Permanente em Cuba, de Facundo Aguirre, onde estão mais desenvolvidas algumas das conclusões que iremos abordar aqui, para pensar os impactos do processo revolucionário e suas conquistas na vida das mulheres. Uma primeira questão fundamental é que o Movimento 26 de Julho (M26J) no qual muitas das combatentes revolucionárias que mencionamos aqui estavam organizadas não pretendia em 1959 fazer uma revolução socialista. Nas palavras do seu próprio dirigente, Fidel Castro, a intenção era realizar uma revolução verde-oliva de objetivos democráticos para derrotar a ditadura de Fulgêncio Batista em aliança com a burguesia.

“A democracia é meu ideal, porém muita gente chama democracia coisas que não são democracia (...) Eu não sou comunista, não estou de acordo com o comunismo (...) a democracia e o comunismo não são o mesmo para mim.” [2]

Ao contrário do esquematismo dos partidos estalinistas naquela época, que definiam o caráter da revolução nos países coloniais e semicoloniais como uma revolução democrática, agrária e anti-imperialista, o caráter da revolução cubana foi ganhando contornos cada vez mais permanentes. Aqui pedimos licença ao leitor para uma longa, mais esclarecedora citação do artigo já citado de Facundo Aguirre:

A revolução cubana de 1959 foi um duro golpe contra essa concepção, pois veio a cumprir plena e efetivamente as tarefas da revolução democrático-burguesa, antes de tudo a independência nacional, a revolução agrária, a reforma urbana e as da democracia política. - motores imediatos do movimento que acabou com o governo de Batista - mas não de acordo com o esquema stalinista. Este resultado foi possível enfrentando resolutamente as classes proprietárias nativas que funcionavam como uma correia de transmissão e davam garantias ao domínio imperialista e aos latifúndios. A derrota da burguesia e dos latifundiários cubanos e de seu aparato estatal, apêndices dos Estados Unidos, tornou-se condição necessária para levar a cabo as conquistas que surgiram em primeiro lugar nesta revolução. A aliança mais geral do campesinato, do semiproletariado rural, da classe trabalhadora urbana, da pequena burguesia e até de setores da burguesia cubana que caracterizaram o movimento popular que derrubou a ditadura logo se encontrou em conflito entre os vários atores. A luta de classes durante a revolução cubana evidencia as tendências conservadoras que logo se tornam agentes da reação impulsionada pelo imperialismo e pelas novas forças sociais capazes de impulsioná-lo. Cria-se assim uma ruptura radical do antigo bloco social: por um lado, a burguesia e setores abastados da pequena burguesia que querem limitar a revolução a uma mudança de regime político e manter a subordinação - embora de outro condições - com os EUA. Por outro lado, o plebeu, o trabalhador, o semiproletariado e a base camponesa, juntamente com um setor da intelectualidade, promovem a luta para alcançar os objetivos das massas: a revolução política se transforma em meio de revolução social através da ação viva .das classes exploradas. Estas são as forças dinâmicas que marcam o caráter permanente desta revolução. É este processo vivo que Guevara explicava como “(...) uma revolução agrária, antifeudal e antiimperialista, que se transformou pelo império da sua evolução interna e das agressões externas, numa revolução socialista e que assim a proclama , diante da América: uma revolução socialista”.

Ou seja, a própria dinâmica do processo revolucionário fez cair por terra não somente o esquemático stalinismo, como também os limites do qual a direção do M26J queria dar ao movimento. As características do desenvolvimento desigual e combinado daquele país comprovou a teoria formulada por Leon Trótski, fazendo com a luta pela resolução dos problemas estruturais:

Foi a revolução de 1959 que conseguiu cumprir os objetivos da revolução democrático-burguesa, precisamente porque o povo armado impôs uma ruptura com a burguesia e o imperialismo e com ela um curso socialista para a revolução, antes mesmo que a autonomia tivesse amadurecido. a classe operária e sua hegemonia sobre as classes oprimidas e exploradas, confiando e delegando nas mãos de uma ala radical da pequena burguesia (o M 26) a direção do novo governo revolucionário; aquele que é impedido de levar a cabo o seu próprio programa pela pressão combinada do imperialismo e da burguesia de um lado e das massas armadas do outro. A lei do desenvolvimento desigual e combinado é revelada na fundação de um estado operário como um caminho para a independência nacional. [3]

A direção pequeno burguesa do M26J sob liderança de Fidel Castro se vê espremida entre a pressão contra revolucionária do imperialismo e a luta das massas que, para defender a revolução, armavam-se e se mobilizavam obrigando essa direção a radicalizar suas respostas e avançar muito além do seu programa “democrático”. É nesse contexto que a revolução cubana avança contra a propriedade privada, tendo as massas trabalhadoras e camponesas como protagonistas do processo revolucionário para em 1962 expropriar a burguesia e ir avançando na resolução de problemas profundos, como a reforma agrária, entre outros elementos que proporcionaram às mulheres condições materiais muito mais avançadas que qualquer capitalista pode oferecer em relação ao direito à saúde, educação, etc.

Aqui o impasse sobre o avanço da organização das mulheres se liga também ao problema estratégico de apostar na guerrilha para a condução do processo revolucionário. Apesar de ter surgido inúmeras combatentes aguerridas que se enfrentavam contra o capitalismo e o machismo, elas não tinham para si uma estratégia que permitiria levar até o fim a condução desse processo revolucionário para a auto organização da classe operária e também para construir um partido revolucionário previamente preparado para que, no processo de defesa da revolução, onde a classe operária e os camponeses pegaram em armas para se defender do imperialismo e lutar contra sua própria burguesia, esse partido pudesse impulsionar a criação de organismos de auto organização, como foram os sovietes na Rússia, superando os limites da burocracia castrista e permitindo com que a classe trabalhadora, e seus aliados camponeses e pobres pudessem assumir o controle do estado operário que estava se formando.

Retomar a experiência de organização das mulheres cubanas em meio a revolução, tem também o objetivo de retirar as lições necessárias para pensar os desafios de hoje. E por isso retomamos aqui o que colocou Claudia Cinatti, em seu artigo sobre as causas e consequências do 11 de julho:

Para defender as conquistas sociais que ainda restam da revolução e enfrentar a restauração capitalista, seja através do imperialismo e seus agentes, seja através da própria burocracia, é necessário levantar um programa que comece na luta contra o bloqueio e nas reivindicações mais sentidas e urgentes das amplas massas, como o aumento geral dos salários, o controle dos preços pela população, acabando com os privilégios da casta governante e do regime de partido único através da legalização das organizações políticas comprometidas com a defesa das conquistas da revolução, a livre organização sindical dos trabalhadores (uma medida elementar defendida por Lênin nos anos 1920 na União Soviética) para se transformar na verdadeira classe dirigente do Estado, reconstruir o monopólio do comércio exterior e a planificação democrática da economia. Mais do que nunca, o destino de Cuba está intrinsecamente ligado à dinâmica da luta de classes na América Latina.

 
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