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Literatura
O processo de Kafka, um autor feito para os "espíritos dialéticos"
João Paulo de Lima
Estudante de Ciências Sociais - UFRN

Uma breve reflexão sobre a obra O Processo de Franz Kafka, que, segundo Walter Benjamin, "escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs a narrar sagas". Kafka parece olhar para a história como o Angelus Novus de Paul Klee, como também analisou Benjamin.

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Ao lermos O processo, mergulhamos em um mundo surreal e absurdo, e que na verdade nos faz pensar se o próprio mundo real também não é surreal e absurdo. Josef K., o protagonista do livro, é acusado de cometer um crime, mas nunca se sabe qual é o delito que ele cometeu; ele se sente alienado por não entender o motivo de estar sendo acusado de algo. Uma hipótese de interpretação é de que parece que o crime de Josef K. é o de desconhecer as regras do mundo em que vive, isto é, ele é culpado do “crime” de alienação. Ele é culpado por não saber o porque é culpado. Isso faz que nós também pensemos sobre a nossa realidade, onde muitas vezes nos sentimos culpados por não entendermos o mundo em que vivemos.

O livro parece criar uma alegoria da vida moderna, de que somos condenados a sermos ignorantes da nossa própria condição. Há uma sensação de perda de sentido das coisas, com a crença de que a existência humana é contingente, de que ela não tem fundamento, objetivo, direção ou necessidade. Essa possibilidade esvazia nossa presença de fato e lança sobre ela uma sombra de perda e morte. Mesmo nos momentos de êxtase, temos a plena consciência de que o chão que pisamos é movediço, de que não há uma fundação sólida para o que somos e fazemos. Kafka claramente se sente desorientado pela perda de sentido da vida, sentindo o eclipse do sentido como uma angústia, um escândalo, uma privação intolerável. Com isso, há em obras como O processo uma obstinada busca de sentido e a constatação do quanto ele é elusivo, tornando a modernidade genuinamente trágica. Vale lembrar que Kafka escreveu o livro ao mesmo tempo que vidas foram esfaceladas nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, a qual dificilmente ajudou a promover a confiança na razão humana e no avanço da humanidade. A crença oitocentista no progresso, isto é, de uma ascensão contínua da barbárie à civilização, sofrera um bombardeio devastador.

Essa ignorância da nossa condição, essa alienação, se torna mais acentuada do que nunca no capitalismo, por conta da especialização acelerada do trabalho, fazendo com que a visão de cada um torna-se restrita à sua área de atuação. Os indivíduos são presas de uma armadilha da qual não podem escapar. Ao mesmo tempo, vivemos uma sociedade onde a alienação também se dá não só no momento do trabalho, mas também fora dele, nos momentos de lazer e descanso, com o consumo rápido de produtos descartáveis e feitos para “distrair”, como são os produtos da indústria cultural. Em confronto com essa “sociedade do consumo”, a prosa de Kafka nem sempre flui com leveza, e é um desafio a uma cultura do consumo rápido. Isso nos leva a tomar posição contra um mundo onde tudo parece padronizado, e quer não reforçar, mas sim abalar nossas percepções rotineiras. Em sua estranheza e especificidade, obras como estas tentam resistir para não serem reduzidas a simples mercadorias.

Na obra o funcionamento das leis são estranhas a Josef K., assim como é para muitos de nós e inclusive para funcionários e burocratas que aplicam a lei contra K., com estes mesmos funcionários dizendo que não sabem o porque tiveram que deter o protagonista, pois estavam apenas seguindo ordens, mostrando a divisão do trabalho, que impede que os indivíduos entendam a totalidade de suas ações, e que inclusive aceitem não entender. O protagonista, ao final das contas, é dominado por alguém que nem ele e nem nós leitores podemos conhecer, de acordo com regras que desconhecemos. No livro, toda a burocracia e as leis parecem não servir à justiça, mas têm como única função se autoperpetuarem, sendo fins em si mesmas. O protagonista está à mercê de uma vasta maquinaria do funcionalismo, cujo funcionamento é dirigido por autoridades que permanecem nebulosas tanto para K. quanto para nós leitores e para os próprios funcionários, advogados e demais profissionais do funcionalismo.

Uma das ironias da história é que K. é detido e está sendo acusado de algo, mas não vai pra cadeia, não é preso, e é autorizado a seguir trabalhando e andando livremente pelas ruas da cidade. Mas será que Josef K. é realmente livre, mesmo sem o constrangimento de sua liberdade física? Evidentemente não, e esse é um dos mal-estares da obra, se não for o principal. Parece que o verdadeiro crime de K. é não ter liberdade espiritual, de não dominar o verdadeiro significado e propósito de sua vida, e seu trabalho como bancário se torna absurdo, bem como toda sua vida, que vai se tornando cada vez mais permeada pela ansiedade e a incerteza. Fica escancarado, que a liberdade no capitalismo é apenas a liberdade aparente, pois a vida de K. se torna passageira, insignificante e vazia de sentido.

Os indivíduos são dominados por uma estrutura que os controla, um estrutura que existe de forma independente dos indivíduos, e que parece ser algo sobrenatural, justamente por estar além da influência dos indivíduos. Josef K. ao tempo todo se depara com o fato de que nunca conseguirá saber o motivo de ser culpado, pois o funcionamento da gigantesca máquina se torna algo obscuro, incompreensível, coberto por um véu de mistério assim como a mercadoria fetichizada que Marx analisou. Desse modo, os próprios seres humanos criam suas formas de relação social, através da mediação das estruturas (as bases materiais e econômicas da vida) e superestruturas (as diversas concepções e doutrinas filosóficas, religiosas, políticas, etc.) mas acabam sendo dominados pelas próprias relações que criaram, perdendo o controle de si mesmos, como se uma “mão invisível” controlasse os indivíduos.

É como a religião, em que os homens mesmo criam a ideia dos deuses, mas por meio da alienação e do fetichismo se vêem dominados por estas mesmas figuras, sem perceber que foram os próprios homens que criaram essas figuras religiosas. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” [1], disse Marx. Assim, é preciso olhar para as condições materiais da época em que Kafka escreve, uma época imperialista, que Lênin caracterizou como o estágio superior do capitalismo, ou seja, o estágio máximo do capitalismo, onde não pode ir mais além e portanto começa apresentar elementos de parasitismo e decomposição, onde as contradições não se atenuam, mas antes se acentuam, e as saídas utilizadas pelo capitalismo para responder às suas contradições são cada vez mais extremas, como por exemplo por meio de governos reacionários e autoritários e das guerras, como foi a Primeira Guerra Mundial, momento em que Kafka escreveu o livro. Além disso, há também o fato de que o autor vivia no Império Austro-húngaro, um dos estados imperialistas mais opressores da Europa. Assim, estavam estabelecidas as bases para o pessimismo de Kafka.

Não queremos com isso criar uma relação mecânica entre as condições materiais da época e a moral de Kafka, como se por estar vivendo uma época caótica, automaticamente seria pessimista. Não podemos explicar a arte e a moral de Kafka como reflexo imediato das condições da época, caso não queiramos cair num “marxismo vulgar”. Há uma série de mediações que devem ser levadas em conta na hora de analisar uma obra de arte. Mas, a obra de Kafka tem uma certa qualidade realista, no sentido de que disse Engels, de que “o realismo significa reproduzir caracteres típicos em circunstâncias igualmente típicas” [2], ou seja, a obra de Kafka retrata caracteres típicos de sua época, que é a época imperialista.

As obras de Kafka são recheadas de situações absurdas, que muitas vezes ficamos sem entender e achamos nonsense e surreal, mas será que o mundo real também não é tão absurdo (e talvez mais absurdo) que as histórias de Kafka? Assim, quando lemos as obras de Kafka pelas lentes do marxismo revolucionário, a sua literatura tem a qualidade de nos fazer refletir sobre o fato de que o mundo real também é tão absurdo quando as histórias de Kafka, e a partir disso nos faz desnaturalizar as situações absurdas que lidamos diariamente e tratamos como natural. Afinal, há algo mais absurdo que viver em uma sociedade capitalista que tem absolutamente todas as condições para acabar com as guerras, a fome, a pobreza, diversas doenças, a poluição ambiental, etc e mesmo assim não tem interesse de acabar com essas contradições? Comparado ao sistema capitalista, as obras de Kafka não são tão absurdas.

É importante também ressaltar a questão do gênero no livro. As personagens femininas são o fio condutor pelo qual tudo funciona no livro, desde a cozinheira da senhora Grubach, que garante o café da manhã de Josef K., a própria senhora Grubach (governanta do apartamento onde mora K.), a mulher que faz a faxina no prédio do inquérito no 2º capítulo, até Leni, a enfermeira do advogado de K., que garante a clientela do advogado. O trabalho realizado por essas mulheres é fundamental para que os homens possam continuar as suas rotinas, seja de secretário-chefe de um banco, como é o caso de K, seja de advogados e funcionários da justiça. Não fica claro se essa era uma visão distorcida própria de Kafka, mas o livro apresenta uma relação alienada e distorcida em relação às mulheres, que são ao tempo todo objetificadas pelos personagens masculinos e são retratadas como se fossem excessivamente libertinas. Para pensar essa construção social da imagem da mulher construído pela sociedade patriarcal, é preciso fazer como Trotsky dizia e ler a realidade (e o livro) com os olhos das mulheres, vendo com profundidade os problemas de exploração e opressão que estas passam, que está dada pelo fato de que a mulher é, em essência, o elemento vivente no qual se entrecruzam todos os fios decisivos do trabalho econômico e cultural, fundamental para a manutenção da sociedade capitalista.

Kafka tem uma sensibilidade tremenda para com a sua época, e por estar vivendo na era imperialista, com suas crises e guerras, Kafka expressou a sua desilusão no “progresso” e no “avanço civilizacional” do capitalismo europeu, que na verdade logo se afundaria num mar de sangue e de bombas, como foi a 1ª e a 2º guerra mundial. Kafka é como o Angelus Novus de Paul Klee, o anjo da história, que segundo Walter Benjamin, “onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele [o anjo da história, ou podemos dizer aqui, Kafka] vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.” [3] Lênin colocou que vivemos numa época de crises e guerras, mas também de revoluções. Kafka viu que vivemos uma época de crises e guerras, mas cabe a nós ir além de Kafka e de seu pessimismo e também ver que vivemos também uma época de revoluções, como foi a Revolução Russa de 1917, que deve servir de inspiração para arrancar com nossas próprias forças um nova sociedade, a partir das futuras revoluções e como diz Trotsky, “ela virá, a revolução, e trará ao povo, não só direito ao pão, mas também à poesia”. Só a revolução pode trazer a poesia e os “novos Kafkas”, em uma base totalmente nova e totalmente livre das amarras e da moral pessimista da sociedade burguesa.

A obra de Kafka é tema de reflexões intermináveis, e o próprio Kafka dificulta a interpretação de suas obras. É muito difícil compreender porque Kafka queria que toda a sua obra fosse destruída após a sua morte, e talvez muitas partes de suas obras sigam sendo ininteligíveis e indecifráveis. Mas, acredito que podemos nos apegar a Walter Benjamin quando disse que "Kafka escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs a narrar sagas" [4] Os espíritos dialéticos que lêem Kafka, além de ganharem uma percepção mais complexa de sua própria psicologia, também conseguem ter uma percepção mais nítida da complexa teia de relações e de subjetividades que permeiam a sociedade capitalista.

A obra de Kafka é um portal para outras partes do nosso inconsciente e da nossa mente, pouco conhecido, e sua obra parece não ser escrita conforme regras, fórmulas ou um plano pré estabelecido. Deve ser por isso que Kafka é um autor para os espíritos dialéticos, justamente porque as suas obras não se encaixam nessas fórmulas engessadas da lógica formal.

 
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