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Rússia no concerto do poder mundial, à luz da guerra na Ucrânia
Esteban Mercatante

Enquanto a Rússia vem acumulando alguns sérios reveses em sua invasão à Ucrânia, uma guerra que entrou pensando que ganharia facilmente e em pouco tempo, neste artigo olharemos para o lugar que o país que Putin governa ocupa na hierarquia internacional, e como o resultado da guerra pode redefini-lo.

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A invasão da Ucrânia pela Rússia deu um caráter mais urgente ao debate que já existia sobre o lugar da Federação no concerto internacional. A agressão claramente reacionária levada adiante pelo governo de Putin, que produziu a anexação de boa parte do Dombás, somando-se ao território da Crimeia ocupado em 2014, levou mais de uma corrente ou autor a postular o caráter imperialista puro e simples deste país. Acreditamos que fazer uma caracterização apenas a partir desse elemento não explica adequadamente o caráter da Rússia.

Como elaboramos em um recente artigo, acreditamos que a Rússia capitalista, que se conformou com a restauração burguesa durante 1989-1991 e os turbulentos anos que seguiram, integra o conjunto de formações intermédias para os quais temos proposto a categoria de dependência atenuada ou com traços atenuados. Com essa categoria referimo-nos àquelas formações que, sem perder a condição subalterna, mostram uma maior capacidade, sempre em termos relativos e em comparação com os países dependentes, de orientar a política estatal em defesa dos interesses de setores da classe capitalista nacional, e empurrá-los além de suas fronteiras, geralmente dentro dos limites de sua periferia mais imediata.

Dentro desse conjunto, a Rússia se apresenta, como veremos, como um caso particular, em que uma notável debilidade econômica anda de mãos dadas com um poderio militar – traduzido também em margens de ação geopolítica – superior ao de alguns países imperialistas. As peculiaridades do desenvolvimento desigual e combinado da formação russa, e os traços do seu estado e do seu aparelho militar, são inseparáveis da dialética revolução capitalista – restauração capitalista.

O grau superlativo das capacidades militares em relação ao lugar que a formação capitalista russa ocupa, o fato de que é um país que se mantém por fora – e forçado a hostilizar – dos entrames da governança imperialista, e a ascendência que isso lhe confere sobre alguns países de sua vizinha imediata ou mais longe, que o veem como um contrapeso relativo ao imperialismo, o converte em um caso de dependência extremamente atenuada. Essa atenuação não ocorre no econômico, no qual sua subordinação é mais clara. Não devemos perder de vista que essa categoria transitória explica uma situação em certa medida fluida e dinâmica: nos momentos de maior desagregação que seguiram à restauração, a Rússia inclinou-se ao desmembramento e maior decadência na escala de poder mundial; foi a partir da estabilização e recuperação durante os anos de Putin que lhe permitiu reafirmar sua posição nesse estrato de potências de médio escalão.

Em seguida, partindo de uma análise da formação econômico-social da Rússia, e do que a guerra da Ucrânia mostra com seu resultado ainda aberto, buscaremos demonstrar os fundamentos da caracterização proposta.

Baixa produtividade, pouco valor agregado e alta dependência das matérias-primas

O PIB da Rússia em 2021 ficou em 12º lugar no ranking mundial. É o maior em superfície, e o 9º em população, mas em termos de tamanho econômico fica atrás do Brasil e da Coreia do Sul. Sua economia foi equivalente a 7% da dos EUA no ano passado.

Para dar uma dimensão do retrocesso que a Rússia atravessou desde o colapso da União Soviética, basta considerar que, em 1985, segundo estimativas da ONU, tinha uma economia que era a terceira maior do planeta, depois dos EUA e do Japão, e representava um pouco menos de 22% da maior potência imperialista. Existem aspectos em que essa formação é incomparável com o capitalismo estabelecido desde 1991 e distorce as comparações. Além disso, o fato de que o território da URSS era muito mais extenso de que o da atual Federação não é o fator mais determinante no declínio da economia, mas sim a involução pela qual passou. Desde que a burocracia se converteu em classe capitalista através de uma selvagem desapropriação da propriedade nacionalizada, a economia russa encolheu aceleradamente. Durante o governo de Boris Yeltsin, o PIB caiu nada menos que 50% do acumulado [1]. Entre 1992 e 1998, apenas no ano de 1997 apresentou um pífio crescimento de 0,8% do PIB [2].

Desde a década de 1970 – ou mesmo antes – a economia soviética atravessou uma marcada estagnação. A reconversão forçada ao capitalismo, imposto pela burocracia depois da queda muro de Berlim, encontrou um aparato produtivo que, apesar de diversificado e complexo, apresentava um formidável atraso. Apenas 4% do aparato produtivo estava ao nível mundial, e entre 7 ou 8% da produção tinham padrões adequados para a exportação [3].

A União Soviética, em seus últimos anos, tinha uma produtividade do trabalho que equivalia a 60% da dos EUA no nível da economia como um todo. Em meio ao colapso econômico da década de 1990, esse indicador despencou para um terço da economia estadunidense. Embora posteriormente, com a recuperação econômica, tenha aumentado a produtividade, ainda está em 45% da produtividade dos EUA por pessoa empregada [4]. Existem estimativas mais dramáticas que calculam que em setores importantes como bancários, construção, varejo, geração de energia e metalurgia, a produtividade seria apenas de 26% da dos EUA [5]. Sem dúvida, o fosso entre o imperialismo ianque é ainda maior do que 30 anos atrás e, para piorar, isso ocorre com uma economia muito menos diversificada e complexa, já que a infraestrutura industrial atravessou foi severamente sucateada desde a restauração.

Dois elementos marcaram um divisor de águas na dinâmica do capitalismo russo e permitiram uma relativa recuperação, mas, como vimos, não reverteram toda a deterioração que o desastre da restauração trouxe. Por um lado, a ordem política que permitiu a substituição de Yeltsin por Vladimir Putin, na qual voltaremos mais adiante. Em segundo lugar, o boom dos preços das commodities, que deu um formidável oxigênio para a economia russa. As exportações energéticas serão acompanhadas por um formidável desenvolvimento do agronegócio, que permitiu à Rússia passar, em poucos anos, de uma posição irrelevante nos mercados cerealistas para competidor com a Ucrânia pelo primeiro lugar em exportação de trigo.

Esse único elemento, o papel determinante dos preços da energia para a dinâmica do capitalismo russo, é suficiente para nos dar uma ideia da precariedade sobre a qual se apoia.

A partir de 1999, o comércio exterior e a conta-corrente da balança de pagamentos foram confortavelmente superavitários todos os anos, permitindo uma acumulação astronômica de reservas nos cofres do Banco Central da Rússia. Segundo o Banco Mundial, as reservas passaram de 12,3 bilhões de dólares em 1999 para 479 bilhões em 2007. Antes da guerra da Ucrânia, alcançaram um máximo de 633 bilhões, dos quais metade foram congeladas pelos EUA como represália a invasão, em um ato com poucos precedentes que violou a intangibilidade conferida aos ativos dos bancos centrais.

O fato de os preços de gás e petróleo permanecerem acima dos níveis da década de 1990 desde o início do novo milênio, apesar dos altos e baixos, permitiu ao Estado russo compensar parcialmente o ônus do atraso econômico, atraso que em uma economia capitalista se traduz em maiores custos e menor competitividade (dificuldade para exportar e para evitar que as importações lotem o mercado nacional, afetando a produção nacional). As empresas de energia, que permaneceram sempre em mãos estatais ou que foram renacionalizadas (como a empresa Yukus da qual o oligarca Mijaíl Jodorkovski se apropriou durante a restauração e foi expropriada durante o governo Putin), subsidiaram amplamente a energia para a indústria, permitindo assim compensar em parte os encargos de competitividade graças a renda dos hidrocarbonetos [6]. Também a desvalorização do rublo, que de acordo com o FMI esteve sistematicamente 10 ou 20% abaixo dos valores estimados de paridade, serviu para compensar a falta de competitividade [7].

Graças à renda dos hidrocarbonetos, que permitiu revitalizar a economia russa apesar de suas debilidades produtivas, foi acompanhada de níveis manejáveis de déficit público, que evitou enfrentar episódios críticos em termos de dívida depois da crise de 1998.

A alta dependência de exportação de commodities energéticas tem também outro lado não menos importante, desde o ponto de vista das ferramentas de poder do Estado russo: uma vez que essas vendas estão nas mãos de empresas estatais, que atuam guiadas não apenas por considerações econômicas mas também pelos interesses do Kremlin, e ao ter entre seus compradores mais importantes vários estados europeus ricos, entre eles a Alemanha, isso permite usar as vendas de commodities energéticos como uma ferramenta de pressão. Isso tem alguns limites, porque o estado russo não pode se permitir fazer nada que prejudique severamente a geração de divisas, que sua estrutura produtiva desarticulada necessita para produzir, à qual se soma a dependência de bens importados que não tem substituto local. Mas a Rússia fez um considerável uso dessa arma fornecida por seu comércio exterior, como discutiremos mais adiante.

A estabilização econômica desde o começo do milênio, acompanhada de um crescimento bastante vigoroso durante a primeira década e mais moderada na seguinte, não pode levar ao engano. O capitalismo russo saiu da terapia intensiva que caracterizou sua primeira década de existência, e pôs um freio à regressão social e involução do aparato produtivo que caracterizou esse período, mas não os reverteu.

As corporações russas, um jogador de segunda ordem na arena internacional

Não é surpreendente que a Rússia, pelo tamanho de sua economia e sua relevância no comércio mundial de petróleo e gás, tenha algumas grandes corporações que, por valor de ativos e faturação, estejam nos primeiros lugares nos rankings internacionais. Quatro empresas de origem russa estão entre as 500 maiores empresas do mundo, segundo a Global Fortune 2022. Para colocar em perspectiva a participação das empresas líderes, digamos que é inferior à de outras economias de médio porte. O Brasil tem 8 empresas no ranking, e a Índia 9. Em um trabalho de 2009, Ted Hopf cita um estudo do Boston Consulting Group que observou que apenas 7 empresas russas podiam entrar na categoria de jogadores globais (“global challengers”), enquanto a Índia contava com 21 e a China com 44  [8]. Desde então, essas economias ampliaram sua vantagem sobre a Rússia.

A posição da Rússia em relação ao investimento estrangeiro direto (IED) com base nos dados coletados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), dá uma ideia do grau de internacionalização alcançado pelo capital da Rússia e sua posição relativa a outros estados. Podemos observar que o boom dos preços das commodities deu fôlego à expansão internacional de suas empresas. Além disso, a elevada liquidez global que estimulou numerosas bolhas na economia global durante as últimas décadas, alimentadas pela política dos principais bancos centrais do mundo de fixar juros baixos e responder a sucessivas crises com injeção de dinheiro, estimulou o endividamento na Rússia para financiar a expansão.

As receitas geradas pelos preços mundiais de energia recordes, e a disponibilidade de crédito barato nos Estados Unidos e Europa, significaram que era barato para as principais empresas da Rússia pedir emprestado em moeda estrangeira, em média, o custo do rublo de empréstimos em dólares era de 1% entre 2003 e meados de 2007. Então, houve uma onda de empréstimos das principais empresas da Rússia, como a empresa de alumínio Rusal, e de muitas empresas estatais, incluindo a petrolífera Rosneft e a gigante do gás Gazprom. Este empréstimo foi feito em parte para gerar receita de investimento para o desenvolvimento na Rússia, dado a ausência de um setor bancário nacional desenvolvido, e em parte para financiar comprar de empresas ou investimentos fora da Rússia, já que as empresas investiram tanto no upstream como no downstream, e se desenvolveram como atores globais em metais e energia. O endividamento nos mercados globais convinha ao governo russo, pois criava investimentos, e convinha às empresas envolvidas, pois distribuía seus ativos e, às vezes, suas propriedades, para além da Rússia [9].

Entre 2002 e 2013, ano de maior fluxo de saída de IED gerado pela Rússia, essa se multiplicou por 20. O estoque de IED entre 2000 e 2001 cresceu no mesmo múltiplo. Porém, esses números, por mais impressionantes que pareçam à primeira vista, não foram exclusivos da Rússia. No mesmo período, países como o México ou a Colômbia aumentaram seu estoque de IED de saída em uma proporção ainda maior, em 23 vezes (embora o estoque total de IED de saída do México fosse a metade do da Rússia em 2021 e o da Colômbia menos de um quinto). Países como a Índia viram seu estoque de IED de saída multiplicar por 121 vezes durante 2000-2021, e a China 96 vezes. Como podemos ver, o aumento do IED Russo estava alinhado com o que acontecia em outros países de desenvolvimento intermediário, e bem longe da expansão que algumas das economias mais dinâmicas atravessaram.

A IED gerada pela Rússia está extremamente concentrada em países da sua periferia mais próxima. Armênia, Uzbequistão, Bielorrússia, Moldávia e Cazaquistão compõem três quartos do estoque [10], mostrando uma expansão internacional muito limitada.

Se olharmos tanto o IED gerado na Rússia para o exterior quanto o que se instalou na Rússia a partir do estrangeiro, comprovamos que a posição do país não é a de gerador de investimentos, mas a de receptor deles. Essa posição devedora no capítulo de investimentos estrangeiros é uma característica dos capitalismos dependentes, enquanto os países imperialistas tendem a ter mais estoques de IED de saída do que recebem do exterior ou, na pior das hipóteses, ter uma balança mais ou menos equilibrada entre ambos os estoques [11]. No caso da Rússia, a expansão de suas empresas no exterior foi acompanhada por um aumento aproximadamente similar e entrada de IED no país, pelo qual a situação líquida se modificou muito pouco. Para cada 3 dólares de IED saindo da Rússia em 2021, havia 4 de IED entrante. A consequência dessa brecha negativa é que, se assumirmos iguais rendimentos de ambos os fluxos de IED – suposição pouco realista, mas que serve para simplificar –, a renda que a economia russa recebe do exterior são apenas 75% das que geram capitais estrangeiros. Isso mostra uma posição da Rússia muito menos comprometida do que a média dos países dependentes, mas longe de qualquer país imperialista ou mesmo da “periferia próspera”.

O poderio militar da Rússia e o desafio ucraniano

O poderio militar russo é o elemento desalinhado da caracterização da Rússia como um país intermediário, elevando sua posição. É nisso que se apoiam conceituações como a de “imperialismo militar”, proposto por Matias Maiello, que tem um significado bem “negativo” no sentido de definir a Rússia como um país que não pode ser caracterizado como imperialista a não ser neste terreno.

O orçamento militar da Rússia é o quinto maior, superado apenas pelos dos EUA, China, Grã-Bretanha e Índia. Em outras palavras, o esforço econômico que a Rússia faz para manter seu exército é muito superior à das outras economias de maior envergadura que investem menos, entre eles, o imperialismo alemão (sétimo orçamento militar) ou japonês (oitavo lugar).

Com cerca de um milhão de efetivos e outros dois milhões de pessoal da reserva, o exército russo se encontra entre os 4 mais numerosos do mundo.

Soma-se ser um dos únicos países com maior poderio nuclear, o que funciona como um enorme dissuasivo contra qualquer ataque de outras potências a seu território. O poder nuclear e o volume militar são herança da União Soviética. A isso acrescentou-se um esforço de investimento e melhora técnica da indústria militar que renderam alguns frutos. Desde a guerra da Georgia em 2008, a Rússia pode mostrar músculo militar e ter êxito em todas as intervenções militares que levou adiante até a invasão da Ucrânia, de resultado ainda incerto e que nas últimas semanas vem dando notícias menos animadoras.

Apesar do gigantesco gasto e das capacidades militares alta e sonantes, há um aspecto “qualitativo” dessas capacidades que é altamente dependendo do desenvolvimento capitalista. Tem a ver com a capacidade de incorporar armamento do mais alto nível tecnológico. Nisso, o poder militar russo se choca com os limites impostos por uma estrutura produtiva muito desarticulada.

Como observa Stephen Bryen, do jornal pró-ocidental Asia Times, desde a queda da URSS, os gastos militares despencaram, antes de se recuperarem novamente depois que a economia se estabilizou e Putin chegou ao poder. Apesar do aumento dos gastos orçamentários, “a produção e a modernização da defesa estão muito atrasadas”. Em termos práticos, a falta de dinheiro para o investimento em defesa na Rússia significou que os equipamentos não se mantiveram nem melhoraram [12]. Devido as décadas perdidas, “os russos tiveram que recorrer a provedores ocidentais para obter novos sistemas. Especialmente esse foi o caso da eletrônica, das câmeras e sensores”. Em alguns terrenos essa tecnologia – que é “comercial” e não dirigida especialmente para fins militares, cuja circulação os estados costumam restringir – pode compensar as deficiências, mas em áreas mais sensíveis mostra muitas limitações. Entre elas: o hardware comercial geralmente não é muito seguro contra hackers ou invasões; muitas vezes podem ser acessados e contém “bugs”, o inimigo conhece bem os sistemas utilizados; esses sistemas raramente usam criptografia ou outras ferramentas se segurança [13]. Outra consequência das restrições orçamentarias relativas – ou seja, um orçamento grande em comparação com outros países, mas insuficiente para sustentar um ritmo aceitável de renovação do equipamento militar russo – foi que “o dinheiro se destinara primeiro para artigos de prestígio e só depois para melhorar o hardware antigo”. Por exemplo, “a melhora da blindagem e os sistemas de controle de fogo nos tanques demorou muito tempo. Nunca implementaram atualizações importantes, incluídos os sistemas de proteção ativa”. A maior parte dos tanques destruídos pelo exército ucraniano, equipado com armas europeias e estadunidense, careciam de blindagem melhorada. Não estavam equipados com sistemas de defesa ativos, observa Bryen. Embora, como quase todas as análises sobre a guerra da Ucrânia, esta seja tendenciosa, neste caso contra a Rússia, não deixa de apontar muitos elementos pertinentes sobre os pontos fracos do poder militar russo.

A herança de um grande poderio militar, renovado e parcialmente modernizado, que o Estado capitalista russo recebeu da União Soviética, foi fundamental para reverter o retrocesso da posição mundial ocupada pela Rússia, sofrida durante a década seguinte à restauração burguesa. A disposição para colocá-lo em jogo, inclusive diante da ameaça de sanções e isolamento internacional, como ocorreu em 2014 quando ocupou a Criméia e novamente em fevereiro deste ano quando invadiu a Ucrânia, o converte em um dos atores mais desafiadores da “ordem baseada em regras” da qual os EUA e seus aliados da OTAN afirmam ser guardiões. Operações como a da Georgia em 2008, a ocupação da Crimeia ou as operações em apoio ao governo de Bashar Al-Asad na Síria desde 2015, que foram determinantes para mudar o curso da guerra a favor do regime, foram centrais para a projeção da força da Rússia, que pesou de maneira fundamental nos cálculos de todas as potências.

A guerra na Ucrânia, muito mais ambiciosa que todas as operações feitas pela Rússia nos últimos 20 anos, também mostra mais cruamente as debilidades que apontamos no poder militar russo. Os objetivos iniciais pareciam ir muito além da ocupação da zona do Dombás, onde agora se concentram os combates. Se as forças concentradas nos primeiros dias ao redor de Kiev e o ataque com mísseis, que inclusive foi mais a oeste, eram parte de um plano de ocupação mais extenso ou apontavam a uma operação relâmpago de “mudança de regime” sem ocupação são permanentemente motivos de especulação, mas o certo é que as forças mobilizadas inicialmente pela Rússia nunca foram suficientes para definir seriamente as metas. O início da campanha foi marcado por graves falhas logísticas que impuseram um avanço muito trabalhoso, e as tropas e tanques russos ficaram muito expostos aos contra-ataques ucranianos em seus flancos. Ainda que a preço de fortes perdas, na segunda fase das operações, o governo o governo de Putin visou objetivos mais condizentes com os meios mobilizados, concentrando-se no Leste do país, onde foi conseguindo consolidar a ocupação de mais de 20% do território ucraniano, fazendo pesar a superioridade de suas forças, embora não sem grandes custos.

Nas últimas semanas, entretanto, o exército russo se mostrou bastante atolado, e as forças ucranianas laçaram ataques e estão recuperando terreno. Isso abriu questionamentos sérios, pela primeira vez, sobre a possibilidade da Rússia se assentar duradouramente nessa porção do território ucraniano. Caso se aprofunde os retrocessos russos na guerra, a dimensão fundamental para a proteção do poder da Rússia se encontraria seriamente comprometida.

O governo de Putin não pode permitir nada que pareça uma derrota; enquanto Kiev, com apoio dos EUA e da UE, vê reafirmada a decisão de não aceitar uma negociação com Moscou que implique ceder parte do sudeste do país depois das últimas vitórias, por mais que sejam limitadas do ponto de vista do território recuperado. Tudo sugere uma escalada. No militar, alguns analistas, como George Friedman do Geopolitical Futures, consideram provável vermos um aumento sério das tropas mobilizadas pela Rússia na Ucrânia para assegurar uma vitória [14].

Ao mesmo tempo, o Kremlin vem mostrando nas últimas semanas algo que os governos da União Europeia temiam, que é a disposição ao poder máximo de seu equivalente da “arma econômica” das sanções que as potências responderam à guerra: a Rússia pode apelar à chantagem energética. Como dissemos acima, ser provedor de commodities energéticos, quando esse comércio é manejado por empresas estatais e quando os principais clientes são ricos e poderosos – e sócios da principal potência com quem a Rússia está estrategicamente em desacordo – concede algum nível de poder sobre esses clientes. Embora, como parte dos pacotes de sanções que foram anunciados desde o começo da guerra, os países da OTAN e alguns outros aliados anunciaram, como parte das sanções econômicas, que deixariam de comprar gás e petróleo da Rússia, isso é muito mais fácil de anunciar do que de materializar. No caso do gás, a Alemanha, como resultado da guerra, descartou o ambicioso projeto do gasoduto Nord Stream 2. Tratava-se de um gasoduto que os EUA olhavam com muita preocupação, pois implicava uma aproximação entre Berlim e Moscou, mas nunca tinha conseguido, até o dia 23 de fevereiro, que seu sócio europeu desistisse de realizá-lo. Mas, através do Nord Stream 1, a Alemanha e outros países da Europa seguiram recebendo gás regularmente, até o momento em que a Gazprom anunciou, algumas semanas atrás, que não seguiria enviando. Antes desse corte total, durante os últimos meses, ocorreram reiteradas suspensões e reduções de volume transportado, que a empresa atribuiu sempre a dificuldades técnicas cuja resolução se encontrava dificultada por falta de insumos, causada pelas sanções contra a Rússia.

A energia, se escassa, afeta tudo: a produção o transporte, a calefação. Mesmo que se consiga nessas condições, só acontece a preços mais altos. Isso gera toda uma série de transtornos, ameaçando a atividade econômica, afetando os lucros empresariais e elevando o custo de vida, que vinha golpeado por uma alta inflacionária sem precedentes nas últimas décadas nos países ricos. Rússia mostra assim que tem a chave do mal-estar social na Europa, e busca afirmar isso como represália e advertência aos países que apoiam a Ucrânia com armamento, inteligência militar e assistência financeira. Dessa forma, a arma energética dirigida contra a UE pretende isolar Kiev para enfraquecê-la e afirmar sua força militar.

O problema dessa estratégia, tal como ocorreu com as sanções ocidentais à Rússia, é que não há relação direta entre os tempos dos danos econômicos que medidas desse tipo produzem e a decisão dos gabinetes militares ou das chancelarias. Para a UE, e especialmente para a Alemanha, que vem acumulando ambições de recuperar um peso próprio na geopolítica global, deixar-se chantagear pela Rússia e ceder a suas pretensões seria humilhante. Não o fazer pode criar uma situação explosiva em um continente que atravessou convulsões e polarização política na última década e meia como resultado da Grande Recessão, primeiro, e da crise da covid-19, depois, e onde hoje a luta de classes está cada vez mais quente.

Todas são opções ruins, mas nada indica que essa tentativa de Putin de fazer pesar seu papel como provedor de energia possa distorcer o sistema de alianças da Ucrânia o suficiente para impactar no resultado da guerra, sobretudo considerando que dificilmente os EUA se comovam pelos apuros energéticos da UE. Estes, ao contrário, favorecem sua tentativa de substituir a Rússia como provedor de gás e petróleo ao velho continente.

Uma luta para não perder posições

A invasão da Ucrânia é uma ação de agressão, na qual a Rússia pretende, como mínimo, anexar uma parte do território do sudeste desse país. Porém, ainda que essa ocupação se inscreva em uma ambição do Estado russo de recuperar a grandeza territorial do império dos tsares ou da União Soviética, se inscreve dentro de uma trajetória em que a Rússia de Putin vem atuando de forma bastante defensiva e de contragolpe, muito diferente dos discursos grandiloquentes de Putin sobre a necessidade de recuperar o glorioso passado imperial.

Se a estabilização econômica das últimas duas décadas significou colocar um freio à decadência da restauração sem reverter seus piores ônus, embora o manejo dos recursos energéticos e suas receitas tenham ocultado a persistência desses estragos, em termos geopolíticos o Estado russo nunca deixou de acumular fracassos em suas tentativas de frear o avanço da OTAN até suas fronteiras. Não foi suficiente nenhuma demonstração de hard ou soft power – esse último muito escasso para o regime de Putin –, nem a utilização de seu papel provedor energético ou de investimentos como parte de uma estratégia de duas vias, de recompensa e punição, para dissuadir os países vizinhos, ex-integrantes do bloco soviético, de associar-se a aliança ocidental. A agressão a Ucrânia foi resultado da ameaça que esse país – que estava gerindo sua integração a União Europeia [15] – pudesse iniciar negociações para ser parte da OTAN, o que reforçaria os laços já muito estreitos desde 2014 com as forças militares ianques.

A postura agressiva e “disruptiva” da Rússia sobre as relações interestatais que a Rússia de Putin vem adotando de forma cada vez mais marcante nos últimos 15 anos em suas intervenções militares, e que com a operação na Ucrânia marcou um salto de qualidade, busca forçar um freio desse avanço da OTAN, expansão que vem marcando um contínuo avassalamento às pretensões do estado russo sobre seu tradicional espaço de influência.

Com base no que foi analisado, acreditamos que é equivocado caracterizar a Rússia tanto como uma potência imperialista, mas também cometer o erro simétrico, de realizar uma leitura campista da situação mundial e concluir de seu choque indireto com as potências ocidentais que possa ser um aliado nas lutas anti-imperialista dos povos oprimidos. A Rússia contesta as pretensões das potências em sua periferia imediata, pelas quais não hesita em recorrer à agressão militar e a opressão a outros povos. Por isso, de forma alguma pretende desafiar e subverter o sistema de pilhagem imperialista mundial, mas sim barganhar dentro dele termos que lhe sejam mais convenientes, reafirmando sua esfera de influência.

 
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