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Eleições
De Bolsonaro a Lula, o que acontece no Brasil?
Danilo Paris
Editor de política nacional e professor de Sociologia

No domingo passado, as eleições brasileiras selaram a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para seu terceiro mandato. A margem de diferença para Bolsonaro, que havia sido de 6 milhões de votos no primeiro turno, diminuiu para 2 milhões. Nas eleições com a menor diferença de votos da chamada Nova República, Lula recebeu 50,9% dos votos válidos, enquanto Bolsonaro atingiu 49,1%. Quais são as razões sociais e políticas que explicam essa polarização, e em particular, como compreender um país que elegeu pela quinta vez um presidente do PT após quatro anos de um governo de extrema-direita?

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Nesse artigo, alguns dados e informações foram publicados originalmente no As raízes do bolsonarismo, redigido antes dos resultados do segundo turno. Agora, apresentamos o artigo atualizado, com conclusões à luz do resultado eleitoral e dos acontecimentos que se deram após sua divulgação.

Após a confirmação da derrota eleitoral de Bolsonaro, milhares foram às ruas celebrar a vitória de Lula, interpretada por diversos setores como um alívio após tantos anos de um reacionário e odioso governo Bolsonaro. A eleição de Lula, expressa a expectativa de um retorno às condições de vida de seus governos anteriores, ainda que em condições econômicas muito diferentes, além de um rechaço à uma extrema-direita que buscou atacar direitos democráticos elementares. O choque entre as expectativas e a realidade do que será o governo, cedo ou tarde, poderá fazer surgir novos fenômenos sociais, políticos e na luta de classes.

A chapa Lula-Alckmin contou com o apoio de poderosas frações do capital financeiro e industrial, incluindo o próprio governo Biden. Velhos e novos neoliberais, federações das indústrias e dos bancos, aderiram à Frente Ampla, vários dos quais apoiaram o golpe institucional de 2016, agora sobre o auspicioso argumento da defesa da democracia contra a barbárie.

Por outro lado, ainda na noite de domingo passado, rodovias começaram a ser bloqueadas por bolsonaristas, com o apoio de setores patronais, que contou com a convivência, e em outros casos alento, de alguns setores policiais. Na quarta-feira, ocorreram atos expressivos questionando a legitimidade das eleições, e conclamando os militares a intervirem. Ainda que não houvesse condições para tanto, em particular porque nenhuma fração burguesa relevante tinha isso como objetivo, o bolsonarismo mostrou o seus dentes, alimentado pelo seu próprio chefe que demorou dois dias para se pronunciar sobre os resultados eleitorais. Ainda o fez de maneira dúbia, alegando "injustiças do processo eleitoral", ao mesmo tempo que declarava, através de seus aliados, que haveria uma transição para o novo governo Lula.

A questão é que passados quatro anos de uma gestão que atacou os trabalhadores, com uma política sanitária terrível e com índices econômicos poucos satisfatórios, muitos esperavam que Bolsonaro e o bolsonarismo derreteriam pela força da natureza. Essa era a aposta do PT, que previa retornar ao comando do governo como um salvador inconteste de um país em ruínas. No entanto, a política não é como a lei da gravidade que atua independente dos sujeitos políticos, e a eleição foi muito mais apertada do que muitos previam, além de reações de sua base que se demonstrou mobilizada e ativa.

Já no primeiro turno expressou-se uma eleição em que os setores alinhados ao atual presidente, além dele próprio, obtiveram resultados importantes. O apoio que conquistou em importantes alas do Centrão e, também, entre os militares foi decisivo para o governo conseguir se recuperar de crises e conquistar bons resultados eleitorais. Dos legislativos aos governos estaduais, foram muitos os que se elegeram a partir do apoio a Bolsonaro. Com vetor invertido, os partidos da assim chamada “centro-direita” obtiveram resultados catastróficos, entre os quais o PSDB, símbolo de sua decadência e fragmentação. Parte de sua base eleitoral histórica migrou para Bolsonaro, seja por considerá-lo mais consequente contra o PT ou por ser o único que poderia evitar o retorno de Lula ao poder.

No entanto, isso não explica tudo. Há fatores estruturais que são importantes para dar forma a esse complexo quebra-cabeças do atual regime político brasileiro e, em particular, uma das suas faces mais macabras: a ascensão, permanência e institucionalização de uma extrema-direita que não irá desaparecer após as eleições. Sem a pretensão de juntar todas as peças, apresentamos algumas que são relevantes para sua interpretação. Em particular, como compreender um país que elegeu o PT por quatro vezes consecutivas, viveu a ascensão de uma extrema-direita, e depois coroou o retorno de Lula para seu terceiro mandato, mesmo após ter ficado preso e com direitos políticos cassados?

O esgoto bolsonarista não ganhou vida por geração espontânea, nem foi um raio no céu azul de uma "sociedade democrática". Sua gênese é anterior, desenvolvendo-se e ganhando robustez durante os governos do PT, e posteriormente, assumindo seu projeto próprio a partir do governo Bolsonaro.

A ascensão de Bolsonaro

No início dos anos 1990 até 2016 o regime político brasileiro passou por um período marcado por sucessões entre PSDB e PT no comando do país. No entanto, há uma clivagem depois disso: a chegada de Bolsonaro ao poder. Para interpretá-la é preciso buscar fatores externos e internos para tanto. Voltemos então ao prelúdio de sua ascensão.

Em seu livro Lulismo em crise: Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016), lançado em 2018, André Singer define que Dilma buscou promover um “ensaio desenvolvimentista”. Ainda que não seja o objetivo desse artigo, vale notar um exagero nessa definição, por serem medidas tímidas e parciais que, talvez, por sua natureza, merecessem outra categoria, como sua versão light, o chamado “neodesenvolvimentismo”. Apenas para situar os limites da política econômica a que nos referimos, nos parece elucidativa a definição que faz o economista Plínio de Arruda Sampaio Jr. Segundo ele, além de ser uma denominação com fins políticos, a saber, uma tentativa de diferenciar o governo Lula de FHC, sendo apenas o segundo um governo “neoliberal”, na prática, era um ideário que se propunha ao desafio de “conciliar os aspectos "positivos" do neoliberalismo — compromisso incondicional com a estabilidade da moeda, austeridade fiscal, busca de competitividade internacional, ausência de qualquer tipo de discriminação contra o capital internacional — com os aspectos "positivos" do velho desenvolvimentismo — comprometimento com o crescimento econômico, industrialização, papel regulador do Estado, sensibilidade social”.

Retomando, então, o argumento de Singer, a partir da desvalorização cambial, redução dos juros, desonerações, incentivos fiscais e algum investimento estatal, Dilma propunha uma política econômica para favorecer os setores industriais. Contudo, ele afirma que há um paradoxo no fato dessa fração de classe, ao qual ela buscava favorecer, ter se afastado cada vez mais, até ser um dos setores que encabeçaram a mobilização política do seu impeachment.

O que, então, ocorreu? Dilma assumiu a presidência após um crescimento de 7,5% do PIB, com uma uma taxa de desemprego de 5,3%. Cinco anos depois, sofreu o impeachment com um PIB que havia passado por um tombo de 3,8% e com o desemprego voltando a casa de dois dígitos. A sentença econômica também foi política e a então presidenta amargou 70% de rejeição.

A enorme crise econômica que teve seu estopim em 2008 alterou profundamente o panorama político e social. A queda abrupta da taxa de lucro levou a uma radicalização de frações burguesas internacionais, que passaram a apoiar variantes de extrema-direita em diversos países do mundo, ainda que com particularidades nacionais importantes.

Retornando ao Brasil, antes dos efeitos políticos, a crise econômica também foi um fator para emergência de novos fenômenos sociais, sendo o mais importante destes as Jornadas de Junho de 2013. O discurso petista busca atribuir a essas mobilizações um caráter imanente de direita, o “ninho da serpente” como afirmam alguns dos seus ideólogos. Porém, essa teorização serve a propósitos políticos e está longe da verdade das coisas.

Em primeiro lugar, o que esses ideólogos não explicam é porque nos antecedentes de 2013 ocorreram inúmeras revoltas operárias, protagonizadas majoritariamente por negros e os setores mais precários da classe trabalhadora. Fiquemos em duas delas para ilustração. Em 2011 o maior canteiro de obras do país, localizado em Jirau, na cidade de Porto Velho em Rondônia, ardeu em chamas pela ação de 22 mil trabalhadores que construíram a usina hidrelétrica do complexo Madeira. No ano seguinte, também em função da construção de uma hidroelétrica, 15 mil trabalhadores repetiram as mesmas cenas vistas um ano antes, agora no estado do Pará. Revoltas que foram chamadas de “selvagens”, uma vez que ocorreram contra as burocracias sindicais que buscam frear o descontentamento dos trabalhadores, que amargavam péssimas condições de trabalho. Até mesmo a Força de Segurança Nacional foi enviada pelo governo, para conter os incêndios de refeitórios, dormitórios e maquinários que protagonizaram os trabalhadores, que não conseguiam ser contidos pelas forças de repressão local.

O que mostra esses eventos, é que a busca de uma política neodesenvolvimentista de Dilma, que tinha entre seus pilares a construção de obras de infraestrutura, como em Jirau e Belo Monte, levou a violentos choques contra sua própria base, ainda antes de 2013. A expansão da terceirização e a precarização do trabalho também foram uma marca do seu programa econômico, que teve como efeito colateral a emergência de processos de luta de classes, que inclusive se expressaram nos próximos anos, como a histórica greve dos garis do Rio de Janeiro, em 2014.

Esse foi o caldo social, “esquecido” por teóricos do PT, que prova que 2013 não caiu do céu. Nesse ano, eclodiram demandas sociais legítimas, em primeiro lugar da juventude, e que expressavam o choque entre as expectativas de melhora gradual de vida, que o próprio lulismo tinha alentado, e os limites a essas expectativas, ou seja, os limites de uma política de conciliação de classe, em um momento de crise econômica, com o PT administrando o Estado e a política de preservação dos lucros capitalistas. Após isso, Dilma ganhou sua segunda eleição prometendo que não atacaria “nem que a vaca tussa”, contando inclusive com os votos da juventude de junho contra a política neoliberal tucana. Ao fim e ao cabo, a vaca tossiu tanto que até mesmo o neoliberal Joaquim Levy foi para o Ministério da Fazenda, o mesmo que integraria, anos depois, a equipe de Paulo Guedes, chefiando o BNDES durante o governo Bolsonaro. Isso foi parte fundamental do que abriu espaço para a direita capitalizar a insatisfação com o PT, apoiando-se na Lava-Jato e na imensa campanha midiática em torno dela.

Mesmo depois de tudo isso vimos a maior paralisação nacional dos últimos 30 anos, diante das reformas antioperárias de Temer em 2017, o que mostra como é falsa a explicação petista de que “o povo é de direita”, culpando os trabalhadores. Naquele ano, de novo, foi o PT quem, à cabeça das grandes centrais, abortou a segunda paralisação nacional e deixou a reforma trabalhista passar, em nome de um acordo pelo financiamento sindical que nem vingou. Mesmo depois disso, em 2018, Lula era favorito e precisou ser preso e proscrito. Ainda sim, o PT nunca apostou na mobilização dos trabalhadores para reverter essa situação, e sim em uma esperança na mudança de postura do STF para restituir os direitos políticos a Lula.

Tudo isso precisou acontecer antes que Bolsonaro vencesse a eleição e o petismo pudesse declamar triunfante seu “eu avisei” sobre 2013, embandeirar-se de sua profecia autocumprida sobre o caráter de direita daquelas manifestações populares e, agora, justificar as alianças cada vez mais à direita como supostamente “o único caminho frente ao direitismo do povo” expresso nas urnas, no âmbito de uma consciência de massas em que a luta de classes aparece como se não estivesse no horizonte.

Além de Levy, diversas outras figuras do esgoto bolsonarista germinaram no jardim dos governos Lula e Dilma. General Heleno chefiou as tropas brasileiras no Haiti, que também contou com a participação de Tarcísio de Freitas. Marcelo Crivella, bispo poderoso da Igreja Universal, foi ministro da Pesca de Dilma. Marco Feliciano presidiu a Comissão de Direitos Humanos com o apoio do PT, para o qual fez campanha, acompanhado por Magno Malta. Ciro Nogueira, o poderoso ministro da Casa Civil de Bolsonaro, estava com Haddad em 2018 e até de fascista chamou seu agora candidato. Todo esse arco de alianças, que hoje são peças chave para a campanha de Bolsonaro, ganharam musculatura e poder político antes da chegada de seu mandatário ao poder.

Vários desses que, hoje, são fortes figuras do bolsonarismo, se gestaram nos mandatos anteriores ao seu legítimo representante e, quando viram uma janela de oportunidade, deslocaram-se para a oposição e foram parte dos que encabeçaram o golpismo. Mas Bolsonaro não era o dirigente desse processo. O plano inicial daqueles que arquitetaram o golpe institucional era eleger Alckmin em 2018 após os bons serviços prestados por Michel Temer, para assim inaugurar uma nova era dos legítimos representantes do neoliberalismo. Para isso, dedicaram força em disseminar o anti-petismo e o lavajatismo, regidos sob a batuta do STF que promoveu as maiores arbitrariedades para garantir que não haveria um novo governo do PT. Não fosse a monstruosa ação do judiciário brasileiro, toda a história seria outra. Toda essa operação recebeu o íntimo apoio do imperialismo dos EUA, inclusive no governo do Partido Democrata, treinando Sérgio Moro e seus procuradores, em um contexto que buscou influenciar em diversos países da América Latina para colocar governos defensores de uma política econômica de ataques e devastações dos direitos sociais.

Porém, não contavam com a lição clausewitziana que diz que os planos de guerra nunca são idênticos à guerra propriamente. Quem melhor encarnava essa radicalização burguesa era o grotesco Bolsonaro e não o insosso Geraldo Alckmin. O feiticeiro já não controlava a magia que produziu e, apesar dos pesares, a burguesia brasileira atuou quase que inteiramente unificada para eleger o capitão que, poucos anos antes, louvara o sanguinário e torturador Brilhante Ustra durante seu voto no impeachment.

Portanto, o paradoxo não explicado por André Singer na realidade é a afirmação da escolha de um projeto econômico muito mais violento do que Dilma poderia aplicar. O autor dá excessiva importância a uma política errática de Dilma, desvalorizando os deslocamentos de classe produzidos pela crise capitalista internacional, o choque do seu planos econômicos com sua base social e, em particular, o esgotamento da política de conciliação pelas novas condições econômicas. Acompanhando esse movimento, a FIESP e os industriais brasileiros prefeririam o fim da CLT, a terceirização irrestrita, a reforma previdenciária, o teto de gastos, entre tantos outros ataques, que apequenaram as benesses que poderiam ser geradas pelos “ensaios rooseveltianos”, como definiu Singer. Mais uma vez, a ilusão desenvolvimentista em um país como o Brasil se desfez como poeira e a extrema-direita apresentou suas credenciais para o serviço que a burguesia desejava.

Agronegócio

Por anos, Bolsonaro permaneceu com um deputado do baixo clero com pouca relevância política. Sua base política era o Rio de Janeiro, apoiado em setores das polícias e milicianos, representando um estrato lúmpen-militar com atuação localizada em algumas regiões. Ao se alçar como o representante do antipetismo em 2018, foi abraçado, ao menos momentaneamente, por setores do capital de maior relevância e expandiu sua sustentação de classe. Ainda que uma parte dele – a fração majoritária do grande capital financeiro – tenha se deslocado recentemente para a chapa Lula-Alckmin, uma parcela permanece em seu apoio. Entre outros, destaca-se a atuação política de grandes parcelas do agronegócio na campanha de Bolsonaro. Basta ver que entre os 50 maiores doadores da campanha de Bolsonaro, nada menos do que 33 são oriundos do agronegócio.

Um estudo realizado pela Esalq-USP junto à Cepea mostra a força que vem ganhando esse segmento. Considerando toda a cadeia produtiva, isto é, somando insumos, produção primária, agroindústria e agroserviços, o agronegócio brasileiro emprega 19 milhões de pessoas. Ou seja, estão inclusas também a produção de alimentos e agricultura familiar, que sozinha emprega 11,5 milhões desse contingente.

Considerando esse setor, o agronegócio absorve quase 1 de cada 3 trabalhadores brasileiros. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 32,3% (30,5 milhões) do total de 94,4 milhões de trabalhadores brasileiros eram do agronegócio no ano de 2015. Desses 30,5 milhões, 13 milhões (42,7%) desenvolviam atividades de agropecuária, 6,43 milhões (21,1%) no agrocomércio, 6,4 milhões (21%) nos agroserviços e 4,64 (15,2%) na agroindústria. Uma enorme capilaridade de um setor que está espraiado em ramos diferentes do agronegócio.

Nos últimos anos esse setor conquistou um peso cada vez maior na produção nacional. Em 2021, a soma de bens e serviços gerados no agronegócio chegou a 27,4% do PIB brasileiro.

A ascensão do agronegócio ocorreu durante os mandatos do governo do PT. Aproveitando o super ciclo de commodities internacionais, Lula e Dilma empreenderam enormes recursos que alavancaram esse setor. Segundo o próprio Instituto Lula, os financiamentos estatais aumentaram em mais 335% de 2002 até 2016, o que gerou um aumento de 98% na produção de grãos e um crescimento de 34% no PIB do agronegócio. Foram anos onde o agronegócio mais cresceu proporcionalmente, alcançando um importante protagonismo, inclusive no interior do regime político brasileiro.

Além da importância econômica, esse setor conta com as maiores bancadas na Câmara e no Senado. São poderosas as suas confederações, articuladas e com forte atuação política. Além disso controlam jornais, rádios, entre outros veículos de imprensa em um sem número de municípios do país. Ou seja, a influência econômica também é política e cultural, em diversos municípios brasileiros.

Mesmo com todas as vantagens dos governos do PT, esse setor viu em Bolsonaro um portador de um projeto de sociedade mais próximo ao seu. Daí toda ênfase no armamento, defesa da propriedade privada, ataque ao MST, aos povos indígenas e quilombolas, desregulamentação ambiental e exploração de reservas ambientais. Um programa ultrarreacionário que soa como música aos ouvidos de grandes parcelas do agronegócio, que de quebra seduz garimpeiros, madeireiros e todos o ramos extrativistas, legal e ilegal, os quais também se beneficiam economicamente com essa medidas. No entanto, assim como fez durante seus mandatos, Lula não vai deixar de oferecer vultosos recursos para o agronegócio, buscando reatar relações com vários desses que agora estavam junto a Bolsonaro, e para isso contou já durante as eleições, com alguns de seus representantes como Simone Tebet e Kátia Abreu.

Os militares

Após a "transição democrática", a atuação política dos militares, e seu projeto de sociedade, se manteve em estado de latência durante a maior parte do período dito democrático. Naquele momento, os militares não deixaram de ser um fator político, no entanto, atuavam nos bastidores do regime. O enorme questionamento à ditadura, iniciado pelo maior ascenso operário da história do país, não permitia espaços para serem protagonistas da política brasileira.

Importante destacar que a preservação do aparato militar na transição da ditadura foi possível graças ao desvio e traição das direções do movimento operário durante este grande ascenso de greves e mobilizações que ocorreu de 1978 a 1981. Com Lula à frente dos sindicatos de metalúrgicos, junto com diversos outros setores que fundaram o PT em 1981, o levante operário foi derrotado por uma direção que se opunha à palavra de ordem "abaixo a ditadura" e buscou conter toda a radicalização que então se expressava. A redemocratização, que preservou torturadores e generais, ainda assim produziu o efeito de tirar os militares da arena pública das contendas políticas, mas preservando sua força no regime político.

Em inúmeras declarações, Lula gosta de lembrar que foi ele quem aumentou os recursos para as forças armadas durante seus mandatos. Mais do que isso, os militares começaram a alcançar um maior protagonismo político, nacional e internacional, a partir da ocupação militar do Haiti, quando o Brasil chefiou as forças de segurança da ONU. Para reprimir as massas exploradas e trabalhadoras haitianas, o exército brasileiro se serviu de experiências militares, que depois seriam aplicadas nas favelas brasileiras, como então ocorreu nos preparativos da Copa do Mundo e das Olimpíadas que se realizaram no país. Prestando bons serviços ao imperialismo, diversos generais e comandantes dessas forças, foram proeminentes apoiadores do Bolsonaro como já apontamos. Essa política de “segurança pública” contra a população mais pobre foi uma marca reacionária do conjunto das gestões do PT. Em 2000 a população carcerária brasileira era de 230 mil pessoas, e após mais de uma década de administrações petistas este número saltou para 574 mil.

A convivência entre militares e os governos do PT começa a mudar após a segunda eleição de Dilma, contexto onde há um deslocamento de classes e uma política do imperialismo para alimentar o golpe institucional, como já descrevemos. A maior discrição, por assim dizer, que marcava o momento anterior, passou a ser suplantada por entrevistas e declarações públicas de importantes generais. Declarações e atuação política dos generais como Villas Boas, Etchegoyen e Mourão passaram a ser mais frequentes e naturalizadas por grande parte da mídia. No governo Temer os militares voltaram ao protagonismo político, ocupando dois cargos que eram de civis: o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional. Manifestações políticas coordenadas pelo Alto-Comando, como o tweet do então comandante do Exército, general Villas Bôas, passaram diretamente a influenciar e constranger outros poderes. Sobre esse episódio ele mesmo admitiu que “o texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília”.

Como demonstramos, Generais e inclusive o Alto Comando foram fundamentais para sua ascensão e sustentaram o governo em diversos momentos críticos. No entanto, vale considerar que não há unidade completa entre Alto Comando e Bolsonaro. São muitos os motivos para isso, entre os quais podemos destacar o papel de influência histórica que o imperialismo dos EUA exerce sobre a caserna brasileira. Em última instância, nos momentos mais críticos, a última palavra sempre foi a de Washington. Durante todo o governo não foram poucas as emissões de advertência da Casa Branca contra a linha política de Bolsonaro. Representantes da CIA e militares estiveram no país, a Casa Branca e o Senado soltaram notas de advertência contra as declarações golpistas que semeavam desconfiança no processo eleitoral brasileiro. Obviamente que isso ocorreu não por um valor democrático, mas através de um imperialismo que promoveu e sustentou ditaduras militares na América Latina. Antes, essa posição se explica por não quererem maiores instabilidades no maior país da América Latina e pela política do Partido Democrata, que buscou minar as forças de um aliado de Trump no cone sul.

Nos últimos anos a caserna passou a atuar na política pública, em uma magnitude sem precedentes desde a constituinte. Alguns generais passaram a ser articuladores e fiadores, até mesmo dentro das academias militares e quartéis, da candidatura de Bolsonaro, quem retribuiu os favores prestados após eleito, criando e mantendo o governo com mais militares desde a ditadura.

Dados publicados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) mostram que, no primeiro ano do governo Bolsonaro, 3,5 mil militares ocuparam cargos no governo. Já em 2020, o número mais que dobrou, chegando a 6,175 mil. E as benesses e privilégios não param por aí. Enquanto centenas de brasileiros se aglomeravam em filas do osso e do lixo, o Ministério da Defesa dobrava as refeições feitas com filé mignon e picanha para as Forças Armadas, segundo dados do mesmo TCU. A grotesca usurpação dos recursos públicos teve ainda episódios mais extravagantes, como a aquisição de viagras e próteses penianas, além de super salários a generais. Além desses, os enormes recursos que recebeu o Ministério da Defesa e a preservação dos militares da reforma da previdência são outras mostras dos incontáveis benefícios que tiveram com o governo Bolsonaro.

E os militares não pretendem retroceder dessas posições conquistadas. Foi sintomático o documento “Projeto de Nação” apresentado pelos militares através do Instituto Villas Bôas. Com quase 100 páginas, o plano expressa o projeto de país dos generais, traçando objetivos até 2035 e recheado de propostas privatistas como cobrança de mensalidades em universidades públicas e nos atendimentos do SUS. É a arquitetura social que querem moldar, com uma força bonapartista que pretende se postular como “poder moderador”, ressuscitando essa prerrogativa do Brasil Império.

Esse projeto se apoia em um efetivo militar e policial de grandes proporções. Segundo o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em março de 2021 o país tinha um efetivo de 555 mil policiais militares, civis e bombeiros militares. Segundo dados do Ministério da Defesa, as Forças Armadas contavam, em 2021, com 356 mil militares na ativa, sendo 215 mil no Exército, 76 mil na Marinha e 65 mil na Aeronáutica. Se ainda adicionar reservistas e aposentados a “família militar” sem dúvida ultrapassa, e muito, 1 milhão de indivíduos espalhados por todo o território nacional. Em sua esmagadora maioria são apoiadores de Bolsonaro, com inclinações ideológicas que se localizam na extrema-direita de sua base social. Nos recentes fechamentos de rodovias, pode-se ver a sintonia de diversos setores das polícias com sua base de extrema direita, com cenas grotescas de colaboração entre eles.

No regime político brasileiro, os militares atuam, portanto, como uma força bonapartista reacionária, que deu sustentação para o governo Bolsonaro e seguirá atuante durante o governo Lula. A enorme crise de hegemonia, a ausência de fortes partidos orgânicos opositores ao PT, e em particular a Lava-Jato, que teve uma grande capacidade destrutiva no arranjo partidário brasileiro, produziu a emergência e a necessidade, de um “partido militar” ao qual setores das classe dominantes pudessem se apoiar para organizar e levar à frente seus interesses.

As igrejas evangélicas

Outro fator de destaque nas eleições foi a atuação do segmento evangélico, em particular o chamado neopentecostalismo. Mais uma vez mostram força política, deixando fortes marcas no processo eleitoral, em particular no apoio de setores majoritários a Bolsonaro. Lula mais uma vez buscou apoio nesse setor, declarando-se contra o direito ao aborto e lançando uma carta ao povo evangélico, que hoje é por volta de 27% do eleitorado.

Isso não é uma novidade na política do PT. Na segunda eleição de Dilma, também vimos uma carta endereçada aos mesmo setores, em que ela se comprometia a não legalizar o aborto. Além do mais, foi nos governos do PT que as Igrejas avançaram em seu entrelaçamento com o Estado, como acordo Brasil-Vaticano, além de isenções fiscais para que diversas outras igrejas pudessem aumentar seus enormes lucros.

Sem querer entrar em todos os detalhes de um tema complexo, apontaremos alguns fatores que são importantes para compreender a posterior identificação entre a parte majoritária dos setores evangélicos com o bolsonarismo. As pautas morais e dos costumes são um ingrediente fundamental para essa química. Direito ao aborto, da população LGBTQIAP+, debates de gênero e sexualidade nas escolas são apenas alguns dos tópicos elencados como de primeira ordem por esse público. Contudo, há um outro componente, com maiores entranhas para explicar a conexão entre Bolsonaro e esse setor.

Podemos apontar, neste sentido, que uma das raízes que deu uma estatura robusta ao ódio contra as mulheres, negros, indígenas e LGBTQIAP+ foi o forte movimento, especialmente de mulheres, que irrompeu em nível internacional na última década. As demandas por igualdade, ainda que como parte de um movimento policlassista, tomaram as ruas e, inclusive, impuseram pautas e, de alguma forma, obrigaram empresas a adequarem seu discurso ao “politicamente correto”, o que apareceu como uma enorme ameaça justamente a todos esses valores da família tradicional brasileira. Então, podemos dizer que o bolsonarismo foi também uma reação a este movimento feminista e de todos os setores oprimidos na defesa de uma política conservadora de perpetuação do machismo, do racismo e da LGBTfobia. É uma reação também à institucionalização das legítimas demandas democráticas, promovida por variantes sociais liberais, que se utilizam dessas pautas para aprovar mudanças parciais, e encobrir suas políticas econômicas neoliberais. No seio deste movimento todas as pautas se misturam, como se fossem imposições das mal chamadas “minorias” ao conjunto da sociedade. Buscam inverter a lógica da opressão e, assim, levantam a bandeira da defesa da família, quando na realidade o que está por trás é justamente manter os setores oprimidos no seu lugar de opressão nesta sociedade capitalista.

Em um interessante artigo do antropólogo Ronaldo de Almeida, intitulado Evangélicos à direta, é apresentada uma articulação entre o discurso evangélico e neoliberal que é importante para entender essa relação. Ressaltando os limites da força eleitoral desse programa, o autor relaciona a dimensão dos costumes com a econômica, em especial para o neopentecostalismo. O artigo apresenta uma reflexão desenvolvida por Wendy Brown, afirmando que a premissa para essa relação “não se trata apenas da proteção da família tradicional contra o avanço da moralidade liberal, mas de que seus valores devem referenciar o ordenamento público e ser a instituição social de suporte de políticas econômicas que diminuem a proteção social que relaciona a pauta neoliberal com o tema da corrupção”.

Esses foram dois temas chaves da campanha de Bolsonaro, e a articulação deles com uma retórica religiosa foi marcante. É difícil imaginar que as reacionárias marchas do 7 de setembro poderiam ter o peso que tiveram sem o apoio orgânico das igrejas evangélicas. Ao seu modo, e na ausência de ter um partido próprio, na sua acepção tradicional, Bolsonaro também se apoiou nas estruturas e no enraizamento das igrejas para cumprir esse papel.

Encerradas as eleições, vários desses setores começaram a se relocalizar, para reatar sua relação com Lula. A mais emblemática dela veio do multimilionário pastor Edir Macedo, chefe da Igreja Universal, do canal de televisão Record e com representação partidária através do Republicanos. Em vídeo endereçado aos seus fiéis, ele pede que perdoem Lula e que a eleição expressou a vontade de Deus.

Polarização assimétrica e as perspectivas do novo governo Lula-Alckmin

A vitória da chapa Lula-Alckmin, agradou diferentes setores internacionais e do capital financeiro. Não é por menos. Além do neoliberal Alckmin sendo protagonista das tratativas de transição, são inúmeros os nomes que agradam esse setor sendo especulados entre os novos ocupantes de ministérios e secretarias. Não por acaso, o mercado financeiro reagiu positivamente à eleição de Lula, com uma valorização forte do Real e a subida da bolsa de valores. De Biden a Xi Jinping, diversos governantes não só declararam suas felicitações à eleição de Lula, como remarcaram o desejo de cooperar e estabelecer novos negócios com o Brasil. É possível que frações burguesas importantes, inclusive internacionais, possam oferecer uma margem fiscal maior para o novo governo, para evitar um rápido desgaste e novas crises políticas.

As negociações para transição entre governos sinalizam primeiras mudanças importantes, entre os blocos políticos constituídos antes das eleições. Representantes de grandes igrejas evangélicas emitiram os primeiros sinais de repactuação, entre outros setores políticos do bloco bolsonarista. Entre vários outros, Luciano Bivar, atual presidente do União Brasil, que foi fruto da fusão de partidos que incluía o antigo PSL, legenda ao qual Bolsonaro foi eleito em 2018, declarou que não fará oposição a Lula, e que “o mais importante é o fortalecimento da democracia”.

No discurso da vitória, na Av. Paulista, Lula enfatizou que esse não será um governo do PT, mas de todos os que o apoiaram. Um recado claro, bem recebido pelo grande mídia, que irá escalar no seus governos nomes e partidos da direita e neoliberais.

São sinais que podem sinalizar uma unidade maior burguesa no início do governo Lula, visando uma estabilização maior do regime político brasileiro. Ao mesmo tempo, pode se abrir disputas maiores entre o antigo bloco bolsonarista, em busca de quem será a cabeça da oposição nos próximos anos. Também Bolsonaro terá que lidar com uma ala que o apoiou e que está presente no regime político, isto é, uma força de extrema-direita mais institucionalizada, e sua base mais radicalizada, que teve entre suas expressões mais grotescas as saudações nazistas no estado de Santa de Catarina. São setores com propósitos diferentes, ainda que com outros tantos em comum, mas que podem não atuar com os mesmo métodos, e podem gerar contradições maiores para que o bloco bolsonarista se mantenha coeso.

O poder judiciário continuará atuando como uma força bonapartista, que em seu momento anterior foi decisivo para a chegada de Bolsonaro ao governo, agora atuante para conter essas expressões mais radicalizadas do bolsonarismo, mas cujas forças também atuaram contra os trabalhadores e setores populares que desejarem lutar pelos seus interesses. Do mesmo modo, o bonapartismo militar não irá querer retroceder nas posições conquistadas, tanto econômicas quanto políticas, e ainda que sem contornos claros, não terão uma relação sem atritos com o futuro governo Lula.

No interior desse regime, atravessado por bonapartismos e pela existência de uma base social de extrema-direita, o papel dos dois pólos da recente disputa eleitoral resultam em correlações de forças que ainda estão por se estabelecer, mas que já mostram seus primeiros sinais.

Enquanto em 2018, após Lula ser preso e impedido de concorrer às eleições, o então candidato do PT, Fernando Haddad, parabenizou Bolsonaro pelas eleições, agora o atual presidente esperou dois dias para se pronunciar, emitindo sinais de questionamento das eleições, com sinalizações de que irá haver uma transição entre governo. Ao mesmo tempo, sua base mais reacionária promoveu ações de rua mostrando que seguem com força e atuante. No simétrico oposto, o PT não só aceitou o impeachment de Dilma, a prisão de Lula, como se manteve como uma “oposição comportada” durante todo o governo Bolsonaro, controlando e impedindo, através dos seus sindicatos, qualquer possibilidade do desenvolvimento de processos de luta. Agora novamente, frente ao fechamento de rodovias promovidas pelo bolsonarismo, a CUT soltou uma nota chamando os trabalhadores a confiarem em uma resposta institucional e republicana, e Gleisi Hoffmann, presidente do PT, disse discordar dos movimentos sociais se organizarem para enfrentar os bloqueios, porque isso era assunto de Estado.

Uma expressão da polarização assimétrica que atravessa o regime político brasileiro, com efeitos nefastos para a classe trabalhadora. Enquanto o bolsonarismo atua para empurrar mais a direita à correlação de forças, o PT atua para impedir e bloquear ações de luta e organização contra a extrema-direita. Como diria Clausewitz, as forças morais são fatores que podem ser definidoras de um conflito. No contexto brasileiro, o polo de extrema-direita atua para mantê-la elevada, mesmo diante da derrota eleitoral, enquanto o PT atua para conter e desmoralizar qualquer tentativa de mobilização dos trabalhadores.

Nessa situação, a maior parte das organizações de esquerda seguem sua completa diluição lulista, e se preparam para entrar e apoiar o novo governo que será recheado de neoliberais de todas as cores. Valério Arcary, em um artigo intitulado "Uma vitória política gigante", além de chamar a esquerda a confiar no bonapartismo do judiciário para combater a extrema-direita, sem a mínima menção que deveria ser a classe trabalhadora a impulsionar essa luta, defende que “o desafio político estratégico será a ruptura com o neoliberalismo e a busca de governabilidade na mobilização operária e popular.”

Assim, declara não só que sua política será de garantir governabilidade a Lula-Alckmin, mas que para isso quer que a classe trabalhadora e os setores populares sejam fiadores desse governo. Defende ainda, sem rodeios, que seus objetivos estratégicos se resumem a ruptura com o neoliberalismo, um programa defendido por diversos setores do próprio PT. Talvez um "sonho rooseveltiano”, tal como advogou Singer, seja seu novo horizonte estratégico, em uma ruptura completa com o marxismo que não se inicia hoje.

Ao contrário disso, o desafio posto é construir uma alternativa de independência de classes, que se proponha a enfrentar a extrema-direita, mas também o legado das reformas e privatizações que serão mantidas, em sua essência, pelo novo governo Lula-Alckmin. Como toda a história recente do país demonstrou, a conciliação de classes serviu para abrir espaços para ataques cada vez mais duros, fortalecer diversos setores reacionários e desmoralizar a luta da classe trabalhadora. Sem uma completa independência desse governo e de sua burocracia sindical, buscando construir uma força social que consiga impor medidas de mobilizações que coloquem em movimento a força da classe trabalhadora, apoiado em movimentos populares e sociais, a dinâmica que levou Bolsonaro ao poder poderá se recolocar, talvez com outras figuras e novos representantes, frente a novos desdobramentos da crise econômica internacional.

 
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