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CINEMA
Tudo ao mesmo tempo em dois países: a conversa dos EUA com a China
Iuri Tonelo
Recife

Um dos filmes mais comentados dos indicados ao Oscar 2023 é o filme norteamericano Everething, everywehere at all once [tudo em todo o lugar ao mesmo tempo]. Mais do que uma análise estética do filme, queria apontar o porquê acredito que será o grande vencedor do Oscar desse ano e talvez indo um pouco além, defender a ideia de que essa comédia tão ingênua, que Jamie Lee Curtis, conforme nota do The Guardian, disse que “supera qualquer filme da Marvel”, está permeada por uma das grandes tensões internacionais da atualidade.

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Como vou centrar essencialmente nessa ideia, começo com uma informação bastante relevante para qualquer filme, mas especialmente significativa nesse: o filme é dirigido por duas pessoas, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como “Daniels”, com Kwan com descendência asiática e sobrenome de origem chinesa, mas ambos norteamericanos (Massachusetts e Alabama, respectivamente). Um filme intimamente dos Estados Unidos, mas que aparentemente busca dialogar com certa densidade com a cultura chinesa.

As experiências são marcantes e também no desenrolar artístico esse sentido se desabrocha: os diretores também são os roteiristas, e a história parte de uma família de imigrante chineses nos Estados Unidos, com a personagem principal uma trabalhadora de uma lavanderia, encurralada pelos impostos. Apenas esse dado já seria instigante para falar sobre as tensões internacionais na atualidade, mas guardemos essa ideia e falemos de cinema e filosofia, antes da geopolítica.

A história se passa num multiverso, uma ideia de que vivenciamos várias vidas em universos paralelos e em as variáveis estatísticas são determinantes para os resultados aleatórios analisando cada uma das vivencias. A protagonista, personificada pela atriz malaia-chinesa Michelle Yeoh, navega, transita, salta, entre suas indefinidamente variáveis vidas, percebendo, depois de longas reflexões, que por trás do caos existe uma razão de ser, algo em que se valha se dedicar e batalhar. No plano formal, embora o próprio autor dessas letras não tenha alguma ou nenhuma inclinação para tipo de comédia realizada, a montagem do filme, os planos sequência, a continuidade em meio a tanta variação (imperativo dos novos tempos) tem um quê de grande arte. O que quero dizer é que um filme tão agitado, com tantos cenários se alternando, com um personagem que dialoga com suas indefinidas vidas com distintas tramas e mantém uma coesão, não só do desenrolar da história, mas estética, tem um mérito artístico particular. É grande cinema, mas dialoga como a Marvel em seu esquema de ação e suas transições explosivas, com efeitos especiais, com as novas gerações.

Ainda nesse ponto, creio ser perceptível no filme alguns diálogos com o cinema mundial, mas eu pontuaria apenas dois que já bastam para mostrar como esta obra se abre, ao mesmo tempo, para os espectadores norteamericanos e chineses. Existe uma clara referência ao Matrix, ao mesmo tempo que em dados momentos o casal principal do filme dialoga no tom estético de Amor à flor da pele.

É um tema para reflexão à parte, mas a capacidade estética do filme esbarra em certa miséria espiritual, desculpem os amantes da obra a expressão forte. Eu dizia que o filme é profundamente norteamericano, e a primeira expressão disso é filosófica. Os ideólogos da indústria cultural nos grandes monopólios hoje, sobretudo nos EUA, exercitam vastamente sua criatividade rodando em círculos: como conservar e reafirmar o estado atual de coisas? Não foram poucas notas que dissemos que a distopia tinha essa “função”, a melhor maneira de elogiar o presente (do capitalismo atual) é condenar visceralmente o futuro, quanto mais aguda essa condenação, mas conservador o efeito, não importante se as máquinas no futuro vão dominar os humanos, se o conservadorismo vai reinar contra as mulheres ou se uma ameaça de fora vai exterminar a humanidade. Bom, o multiverso não apresenta nada de novo no front (com o perdão do trocadilho). Com tantas variáveis estatísticas de nossas vidas nos mais distintos universos que existem, no qual somos muito menos do que um grão de areia, devemos aceitar o destino. O importante é reafirmar a impotência das nossas ações, a infinidade de nosso significado, e terminar em resignação, palavra forte do que a potência imperialista busca convencer em cada instante a juventude e as trabalhadoras e trabalhadores.

Eu não diria que o filme é propriamente norteamericano se a história terminasse nessa conclusão filosófica, mas ele é porque tem sim uma coisa que transcende tudo: o indivíduo, a superação, o casamento e sobretudo a família. A turbulenta relação em determinadas famílias entre uma mãe e uma filha, que no momento dos dramas familiares se assemelham a promoção do caos no interior de um multiverso, devem terminar em aceitação, respeito à alteridade, aquiescência, na conhecida mensagem. Nesse sentido, o filme é ideológico, mas sem grandes novidades no sentido disso.

Mas caminhando para o centro do argumento, quero lançar uma pista, que não está acabada em nossa reflexão porque acredito que é o enigma do filme, e está feito com certa profundidade: não é um mero acaso, de tudo isso que dizemos, que o filme se passe em dois idiomas, o nortemericano e o chinês. Esses idiomas se alternam, é uma conversa. Mas como o filme vem dos EUA, acredito que essa conversa tem como uma intima vontade a incidência no público chinês. Quero dizer, é uma conversa entre as duas culturas, mas escrita pelos norteamericanos. Qual a consequência disso?

Que o hieroglifo do filme está em que o passado, de maneira sutil, está expresso na China e o futuro nos Estados Unidos. O avó da família só fala chinês, e a filha, a mais nova, da família, fala inglês e vem falando cada vez mais piorando o mandarim, segundo seu avó. E quem é essa filha? Uma jovem lésbica, que come fast food, com a vida aparentemente desorganizada. A imagem da mãe falando pra filha que está engordando e deve comer melhor até chama a atenção por passar por fora dos debates atuais, mas é expressiva do sentido do filme: a China está disposta a despojar sua tradição secular e se deixar permear pelo novo, ainda que a primeira vista possa parecer inconsequente, desordenado? Ou a China continuará como o avó no filme, em que a personagem principal não ousa contar que a filha é lésbica?

Eu acho que daria para listar uma gama de passagens que apontam nesse sentido, mas o suficiente está dito, cabe ao leitor perceber ou não a consistência do argumento ao assistir.

Tendo elaborado teoricamente, e reafirmo geopoliticamente que acredito que o conflito latente dos Estados Unidos e a China continua sendo um conflito marcante dessas primeiras décadas e deve se intensificar nos próximos anos. O cinema mundial não está alheio a isso, e os esplendores e misérias do filme em debate é que ele está profundamente engajado nas profundas preocupações e iniciativas de seu país de origem - e justamente por isso será talvez um dos grandes premiados.

 
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