www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
Tribuna aberta
Protagonismo na escola: Sujeição à contrapelo
Saulo Lance Reis

Como meio de fomentar o debate na campanha lançada aqui no Esquerda Diário pela revogação integral da Reforma do Ensino Médio, aprovada pelo governo Temer após o golpe institucional de 2016, o Esquerda Diário publicará como tribuna aberta alguns textos de autoria do Professor Saulo Lance Reis, que é mestrando na Faculdade de Filosofia da USP.

Ver online

Foto: SHEILA PINHEIRO/ R7

Sabemos que as funções da escola pública seguem há muito tempo as demandas de um mercado neoliberal. No entanto, é notável que o “novo ensino médio” aprofunda a vivência dos alunos no que podemos chamar de modo neoliberal de socialização. E isto se dá fundamentalmente por um ensino pautado tanto em habilidades ligadas às atividades de ler e contar, algo que já é tradicional, quanto em competências socioemocionais ligadas à “aceitação de si”, à “liberdade individual”, à “flexibilidade”, à “imaginação”, à “criatividade” e à “inteligência emocional”. A justificativa é a de que tais habilidades e competências seriam adequadas para conduzir os “indivíduos” ao desejado “sucesso”, o qual é identificado à melhora das condições individuais de vida. De imediato, não há quem não reconheça a articulação destas noções entre alunos, pais e funcionários da instituição “escola”, assim como não há quem não julgue que tal “sucesso” pode efetivamente ser verificado em casos isolados da realidade.

Leia aqui outro texto do autor: Educação à la carte e mercado educacional.

O problema aparece, porém, quando consideramos os múltiplos efeitos estruturais da tomada destas habilidades e competências como determinantes dos conteúdos e das práticas internas à escola pública. Consideremos aqui apenas a realidade psicológica e cotidiana dos alunos. Deste ponto de vista, o plano educacional neoliberal inverte-se no seu contrário, revelando-se como pura ideologia conservadora: ao serem educados individualmente como protagonistas na base do simples ler e contar, a maioria esmagadora dos nossos alunos se torna um coletivo de novos assujeitados – fadados a reproduzir esta condição para os seus filhos. Como qualquer ideologia, a ideologia neoliberal opera pela assimilação irrefletida da vivência imediata e pela fixação desta vivência como realidade última, sustentando sobre ela promessas de futuro a serem realizadas por meio de práticas óbvias neste meio. Nesta junção de concepções imediatas e ações óbvias, porém, ela apenas reproduz de forma contraditória o seu próprio presente.

Digo isto pois devemos reconhecer no “novo ensino médio” uma inovação ligada aos mecanismos sutis de dominação social, reconhecimento que implica a responsabilidade de combate-lo. Para identificarmos de modo bem geral este mecanismo e a sua forma de dominação, notemos que ele se sustenta sobre quatro pilares: a suposta liberdade de escolha dos alunos daquilo que eles querem estudar, o ensino de competências ligadas às atividades de ler e contar, o ensino das chamadas “competências socioemocionais” e, por fim, a naturalização da competição generalizada no mercado enquanto realidade insuperável. Como já comentamos sobre a suposta liberdade de escolha dos alunos e sua falsidade em outro texto, e como a capacidade de ler e contar está evidentemente voltada à introdução dos alunos da escola pública nos postos de trabalho mais baixos, vejamos aqui os dois últimos pontos.

Por um lado, as competências socioemocionais ligam-se à dita “inteligência emocional”, ou seja, a um conjunto de capacidades de “aceitação de si” e das próprias emoções enquanto “diferenças” pessoais que supostamente nos individualizariam. E, como seu complemento, esta “inteligência emocional” exige um “gerenciamento” destas emoções no meio social, um controle por parte dos “indivíduos” do estresse e do próprio humor como condições para o estabelecimento de uma rede “saudável” de relações sociais. Em um mundo ideal, ou seja, num mundo onde as patologias mentais não seriam reproduzidas estruturalmente por uma administração da miséria e pela individualização hostil, preconceituosa, poderia parecer que a forma de vida pregada pela ideologia neoliberal ofereceria uma saída para os nossos conflitos: na medida em que todos “gerenciam” seus afetos, ninguém sofre ou rapidamente se adequa.

Além disto, se focarmos apenas na condição de vida imediata dos sujeitos, não se pode negar que a “flexibilidade”, a “iniciativa”, a “ousadia” e a “imaginação” (todas componentes das competências socioemocionais) sejam efetivamente motores para a produção do “novo” e para a atuação profissional num mercado empreendedor. Nos termos da vida econômica imediata, é evidente que juntar informações dispersas e decidir-se por ações razoáveis dentro de situações marcadas pela imprevisibilidade e pelo risco, contando com planos voltados à realização de finalidades específicas de lucro, são atitudes esperadas. Da mesma forma, dobrar-se e desdobrar-se no exercício de diversas funções em um contexto de instabilidade profissional generalizada também é uma demanda. E é daí que surge a ideia de que a instituição “escola” faz o necessário para o “sucesso” de seus alunos, que eles agora têm uma vara e saúde mental para pegar o seu peixão.

Mas isto é simplesmente falso, pois contraditoriamente o outro pilar de sustentação deste modo de vida, como dito, é a naturalização da competição generalizada no mercado mundial entre supostos “indivíduos” isolados, com a particularidade de que esta competição operaria “selecionando os mais aptos a sobreviverem” nesta guerra especulativa de todos contra todos. É a tomada desta condição social e histórica como realidade última e insuperável a verdadeira base ideológica da pedagogia das competências socioemocionais, as quais compõem a contraparte prática que sustenta a reprodução do mesmo; mas, como de costume, é a análise mais detida desta base material o que evidencia o caráter ideológico de uma tentativa de adequação do ensino público à escola neoliberal da vida enquanto solução para nossos alunos.

Afinal, sabemos que a grande maioria dos alunos das escolas públicas pertencem a famílias marginalizadas, o que significa que eles e seus parentes próximos geralmente não têm acesso à totalidade dos direitos básicos reconhecidos pela nossa constituição (tais como saúde, moradia e segurança). Por isso, estes mesmos alunos se veem na necessidade trabalhar em condições precárias (sem garantias ou direitos), por contratos temporários ou como microempreendedores (MEI), para garantirem o mínimo. Ora, se somamos esta condição específica dentro do contexto de competição generalizada ao juízo de que o Estado faz o possível pelos seus alunos, o resultado não pode ser outro: tal lógica neoliberal nas escolas produz apenas a responsabilização individual pelo “fracasso”, um sofrimento considerável a nível individual e coletivo – que culmina na paralização social. Em suma, ela produz uma massa de corpos dóceis aptos a se reproduzirem historicamente.

No caso dos mais pobres e não privilegiados, o máximo que estes conseguirão com a educação fornecida pelo Estado é tornarem-se aptos a padecerem de uma exploração absurda: tanto de trabalho mal pago (sem registro ou direitos) quanto de trabalho não pago (sabemos que muitos trabalham no seu “tempo livre” fornecendo informações e ideias por What’s para o incremento das suas respectivas empresas numa realidade perpassada pelas tecnologias digitais). Assim, se a garantia de migalhas aos miseráveis e de lucro aos empresários já era um objetivo antes do “novo ensino médio”, com este temos agora a reprodução da desproporção entre o salário (ou “a paga”) e o lucro com uma margem maior de segurança: docilizando os corpos pela prescrição de práticas e individualizando-os ao extremo, o poder diminui a capacidade de associação e ação coletiva.

Leia aqui outro texto do autor: Nova Carreira em SP: flexibilização e precarização do trabalho docente.

E não se pense que a condição psicológica produzida pelo aprofundamento desta vivência neoliberal é melhor no caso dos “empreendedores de si mesmos”, os quais tiram microempresas do que se chegou a acreditar ser um vazio econômico nas periferias. No caso destes administradores de informações e planos, o sofrimento é multiplicado: além de estenderem a miséria social pela exploração de outros como freelancers ou temporários, tais empreendedores são tendencialmente levados a sofrerem como fracassados frente aos milionários e a compensarem este sentimento regozijando-se frente aos miseráveis – uma situação duplamente deplorável. Neste caso, para além da impotência generalizada produzida pelo sentimento coletivo do “fracasso”, a educação neoliberal ainda produz algozes sadomasoquistas entre os explorados como parte de sua ideologia.

Para os pobres e recém chegados à classe média, em suma, são estas as consequências da introdução nas escolas públicas do modo neoliberal de conceber a vida: um aprofundamento da miséria individual e coletiva no sentido da interioridade subjetiva, o qual se reflete em práticas de controle de si. Afinal, no mesmo movimento em que os alunos buscam protagonismo, eles também passam a reproduzir e naturalizar a dominação e a sujeição, temperada com um sentimento individual de culpa. É esta articulação o mecanismo sutil de dominação psicológica que está embutido na Base Nacional Curricular Comum de 2018. Contra esta ideologia, é necessário percebermos que o meio social é produto da ação coletiva na história, o que passa pela compreensão da escola como uma instituição voltada à articulação dos sujeitos dentro de um campo de luta comum e permeável às diferenças. E tal compreensão não pode ser efetiva sem as suas correspondentes ações políticas.

Leia também: Participe da campanha pela revogação integral da Reforma do Ensino Médio

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui