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Educação
O trabalho que tira o sono e a educação que destrói o futuro
Danilo Paris
Editor de política nacional e professor de Sociologia

Crônica sobre a realidade escolar a partir dos impactos da reforma do ensino médio e trabalhista na vida dos estudantes.

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Estava em aula, no ensino médio de uma turma composta por alunos filhos de trabalhadores, alguns em uma condição de vida precária. Como sempre ocorre, alguém bate a porta, e eu esperando que fosse mais um recado da direção, abro despretensiosamente. Era um grupo de mais ou menos seis estudantes, todas mulheres. O tema? Eleições do grêmio.

Para minha surpresa, entre vários assuntos que elas elegeram falar na campanha, apenas um foi mencionado, o novo ensino médio. Apresentaram com clareza e simplicidade todos os problemas do novo currículo, denunciando a flexibilização dos conteúdos. Com palavras próprias, falaram com ódio da dualidade do sistema escolar. Um sistema moldado para oferecer um ensino reduzido aos estudantes da escola pública, enquanto nas particulares é garantido uma formação integral.

Eram ex-alunas, para quem lecionei no primeiro e segundo ano do ensino médio, e que agora já não acompanhavam minhas aulas. Afinal, sociologia no terceiro ano está entre as vítimas do novo currículo. Esse foi um componente da minha surpresa, porque diferente do que poderia alegar os reacionários do Escola Sem Partido, a decisão de eleger esse como o programa principal da chapa foi exclusivamente das próprias estudantes.

Entre meus colegas de trabalho, evidentemente, já sentia a repulsa à reforma. Os tais itinerários formativos, “projetos de vida” com viés neoliberal e eletivas que não tem o menor sentido, impactaram o cotidiano de milhares de professores que subitamente viram sua prática docente de pernas para o ar. Mas essa movimentação "espontânea" dos alunos me acendeu um alerta de que o mal-estar social com o novo ensino médio atinge um setor enorme que vive e necessita do ensino público.

E isso não é sem motivos, e não está restrito ao campo educacional. Há algo a mais nesse mal-estar. Através de nossas conversas, sinto que o que potencializa esse sentimento é o mundo do trabalho. Explico. Todo começo de ano, nas primeiras aulas, costumo perguntar aos alunos quem já trabalha. Já se foram dez anos como professor, e no caminho dessa experiência é sensível o aumento exponencial da quantidade de alunos que estudam e trabalham.

Nessa dinâmica, também questiono a quantidade de tempo trabalho, e que tipo de função exercem. Em especial a partir da retomada escolar, no pós pandemia, são assustadoras as respostas. Não é incomum alunos que trabalham 12 horas, incluindo finais de semana. Os postos de trabalho, como pode-se supor, são os mais precarizados, e a esmagadora maioria desses alunos e alunas são negros.

Para ilustrar a brutalidade do que ouço, mencionarei apenas um de muitos. O aluno me conta que sai às quatro da manhã de casa para trabalhar. Entra às 5:40, sai às 14:40. Após a longa jornada de volta, chega em casa às 16:30. A função? Encaixotador em uma fábrica da indústria alimentícia, trabalho que realiza de pé durante todo o período. Mas a jornada não para aí. Ainda tem a escola, que começa às 19:00. A janela de tempo é curta, intervalo para tomar banho, alimentar-se e tentar dormir um pouco. A noite é longa e o fim do período escolar é às 23:00. Ele me conta que chega em casa por volta das 00:00 e tenta dormir, quando não há um imprevisto, até às 4:00. E então todo o ciclo recomeça. Para piorar, o regime de trabalho é seis por dois. Foi o fim do sagrado fim de semana de descanso.

Casos como esse, multiplicam-se, cada um com sua particularidade. Me contam que é comum dormirem quatro, cinco, quando muito, seis horas por noite. Dois ou três empregos também são relatos constantes. Quando não é o emprego formal é o cuidado da casa, dos irmãos menores ou dos avós já idosos, tarefas que atingem mais as alunas. A relação entre esse cotidiano e a presença na escola é íntima. O cansaço dentro da sala é visível. Muitos dormem. Outros brigam contra o sono para tentar prestar atenção na aula. Confesso que algumas vezes me emocionei voltando para casa, com raiva da destruição do presente e do futuro dessa juventude.

Esse é o quadro social do mal-estar que me referi. Uma simbiose entre os efeitos da reforma do ensino médio e da reforma trabalhista. A própria imagem da complementaridade das duas reformas que constituem o mesmo projeto de sociedade. Foi essa a dinâmica do próprio processo de aprovação delas. Em 2017, antes da reforma da previdência e trabalhista, a reforma do ensino médio despontou como a primeira medida de força do governo Temer. Isso porque toda formação social tem um projeto de educação correspondente, e atacar a educação era o prelúdio dos ataques concentrados que viriam nos próximos anos.

O problema é que diferente dos planos iniciais dos reformadores, os ataques geram reação. E essa potente contradição social também esta sentada nas cadeiras escolares. Para minimizar esse impacto, o atual governo “inovou”, oferecendo o que chamaram de consulta a respeito do novo ensino médio. A consulta será implementada por meio de audiências públicas, oficinas de trabalho, seminários e pesquisas nacionais com estudantes, professores e gestores escolares e as ações serão coordenadas pelo próprio MEC. Após esse processo, será elaborado relatório final para o Ministro da Educação, Camilo Santana, decidir o que fazer com os resultados.

A medida pode gerar uma aparente simpatia. A mensagem que se busca transmitir é que o governo quer ouvir a população. No entanto, aqui está a armadilha. Os estudantes, professores, especialistas da educação já se pronunciaram sobre o novo ensino médio. São inúmeros os abaixo assinados, artigos, declarações e manifestações, com muitos deles sendo feitos ainda antes do atual governo ser eleito, e que não pararam de surgir. A demanda é clara, revogação integral da reforma.

Mas porque então consultar? Porque sobre as asas do suposto processo de consulta, a decisão final ficará com o próprio MEC. Justamente o ministério composto por diversos dos setores que batalharam, com unhas e dentes, pela aprovação do novo ensino médio. Instituto Ayrton Senna, Fundação Lemann, Todos Pela Educação, entre várias outras espécies da fauna liberal, que são aqueles que verdadeiramente determinam a política educacional do atual ministério, comando por um entusiasta da parceria público-privada na educação.

Por ora, não é possível prever o resultado final desse processo. Caso ocorram manifestações e mobilizações, o MEC pode ir além do que de fato pretende. Por outro lado, "institucionalizando" o questionamento, possibilita que os reformadores educacionais possam mudar alguns pontos, mas preservando o essencial da reforma. Afinal de contas, no mesmo governo estão os garantidores da reforma trabalhista, que juram não modificar seus aspectos essenciais. As duas coisas não podem ser separadas. Ao fim e ao cabo, resta a velha máxima eternizada por Lampedusa: “algo deve mudar para que tudo continue como está.”

 
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