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SEMANÁRIO

A respeito do 100º aniversário de nascimento de Ernest Mandel

Christian Castillo

A respeito do 100º aniversário de nascimento de Ernest Mandel

Christian Castillo

No artigo que apresentamos a seguir, Chirstian Castillo estabelece um percurso crítico pelas contribuições teóricas e legado de Ernest Mandel em seu 100º aniversário de nascimento. Trata-se de um desenvolvimento das ideias defendidas durante a intervenção inicial feita na palestra sobre o tema, realizada no dia 30 de março em Buenos Aires. Eric Toussaint, Mertín Mosquera, Jorgelina Matusevicius e Claudio Katz debateram juntamente à Castillo, com a coordenação de Eduardo Lucita.

Completam-se 100 anos do nascimento de Ernest Mandel (1923-1995) [1] e, embora o mundo tenha mudado muito desde então, os revolucionários enfrentam desafios caracterizados pela atualização da época de crises, guerras e revoluções.

Ernest nasceu no entreguerras e, de seu pai Henri e dos revolucionários exilados do nazismo que frequentavam seu lar, aprendeu os ideais socialistas e conheceu o trotskismo. Embora o pai de Mandel tenha deixado de militar organicamente em 1923 depois da derrota da Revolução alemã, se manteve ligado aos debates dos agrupamentos revolucionários, e na biblioteca da casa o jovem Ernest encontrou “uma coleção fantástica de velhas publicações: livros de Marx, de Lenin, de Trótski, o órgão da Internacional Comunista Imprecor, assim como literatura russa e coisas desse estilo” [2]. Pouco antes de começar a Segunda Guerra Mundial, com apenas 15 anos, começou sua militância nas fileiras do trotskismo belga. Ali desenvolveu sua atividade na clandestinidade junto com jovens revolucionários como Abraham León [3] e o fundador do Partido Comunista Belga e depois da Oposição de Esquerda, Leon Lesoil [4], que foram fundamentais para recompor as forças da organização trotskista local, o Partido Socialista Revolucionário (que teve um declínio forte na quantidade de filiados com a guerra, depois de chegar a ter uns 800 militantes, entre eles muitos mineiros), e coordenar a atividade dos partidários da IV Internacional na Europa ocupada pelas tropas de Hitler. Enquanto Lesoil e Abraham León foram assassinados pelo nazismo, Mandel foi detido pelas tropas de Hitler, mas sobreviveu. Escapou da prisão em duas ocasiões para ser novamente encarcerado até a libertação de um campo de concentração na Alemanha com o fim da guerra.

De todos os dirigentes cujos nomes próprios caracterizaram o movimento trotskistas no segundo pós guerra (Michel Pablo, Pierre Lambert, Pierre Frank, James P. Cannon, Joseph Hansen, Farrell Dobbs, Gerry Healy, Nahuel Moreno, Tony Cliff, Guillermo Lora, Posadas - Homero Cristali-, Ted Grand, etc.), Mandel foi sem dúvida o que desenvolveu a obra teórica mais prolífica, com mais de 30 livros e 2.000 artigos publicados, e teve um reconhecimento intelectual que ultrapassou amplamente as fileiras do Trotskismo. No terreno da economia marxista, sua obra foi ímpar, principalmente com os três tomos (na edição em espanhol) de seu primeiro Tratado de economia marxista, e A formação do pensamento econômico de Karl Marx (um trabalho excelente que inclui uma polêmica com Althusser), sua obra mais importante O capitalismo tardio (traduzido para vários idiomas do original em alemão), Las ondas largas del desarrollo capitalista, La crisis e as introduções aos três tomos de O Capital, publicadas posteriormente como livro independente sob o título El Capital. Cien años de controversias en torno a la obra de Karl Marx. O reconhecimento de sua erudição e qualidade intelectual foi praticamente unânime entre a intelectualidade de esquerda não stalinista. Ele soube conquistar o apreço de grandes personalidades como Ernst Bloch, Roman Rosdolsky, Perry Anderson, Rudy Dutchske, Che Guevara, entre muitos outros. Foi também um dos inspiradores da juventude radicalizada de 68 em diversos países, onde deu conferências para milhares de estudantes. Para Robin Blackburn, integrante do Comitê Editor da New Left Review, Mandel “talvez mais que ninguém, foi o educador da nova geração ganha ao marxismo e à política revolucionária na revolta estudantil dos anos sessenta, especialmente na Europa e nas Américas” [5]. Esta influência permitiu-lhe desempenhar um papel fundamental, por exemplo, para ganhar os dirigentes da ETA “VI Assembleia” para o trotskismo [6], a quem visitou nas prisões franquistas. Por conta de sua atividade revolucionária, os governos da Alemanha Federal, França, Estados Unidos, Suíça e Austrália proibiram sua entrada em diversos momentos. Hábil polemista, seus debtes com Nicolás Krasso sobre Trótski na New Left Review (onde foi colaborador), com Alec Nove sobre o socialismo de mercado, com a corrente cliffista sobre a tese do capitalismo de Estado, seu trabalho sobre El porvernir del trabajo humano (discutindo as colocações sobre o “fim do trabalho”) e El lugar del marxismo en la historia, são contribuições que, ao meu ver, permanecem completamente válidas apesar dos anos passados, assim como seu livro “El significado de la Segunda Guerra Mundial”, que reeditamos em espanhol há alguns anos pelas Ediciones IPS.

Mandel foi, sem dúvida, uma enorme personalidade teórica e política, um dirigente marxista do tipo que Perry Anderson caracterizou como típico do “marxismo clássico" diante da separação entre teoria e prática do “marxismo ocidental”, por um lado, e o esclerosamento e transformação do marxismo de Estado por parte do stalinismo.

Entretanto, este reconhecimento da envergadura de sua obra e o prestígio e influência alcançados por Mandel, assim como os fios de continuidade revolucionária presentes em seus escritos, vêm, em nosso caso, acompanhados de uma visão crítica de grande parte de sua trajetória política como dirigente do que foi a principal tendência dentro das correntes em que se dividiu o movimento trotskista no pós-guerra, o Secretariado Unificado da IV Internacional, e parte de suas reflexões teóricas [7].

Mandel foi parte daqueles que tentaram manter a continuidade da IV internacional em uma situação muito particular, caracterizada pelo fortalecimento do stalinismo no final da guerra em vez de seu colapso - como Trótski previra-, baseado no prestígio de ter derrotado a Wehrmacht pelas mãos do Exército Vermelho e com a ampliação ao Leste europeu e à China, em 1949, dos países em que o capitalismo foi expropriado. Por sua vez, nos países imperialistas, com o início do “boom do pós-guerra” (que implicou uns vinte anos de crescimento econômico ininterruptos nesses Estados a taxas médias de 6% ao ano), a social-democracia e os partidos comunistas se fortaleceram (como na França e na Itália). Enquanto isso, em diversas semicolônias, variantes nacionalistas burguesas e pequeno-burguesas ganharam força. A traição do stalinismo à revolução nos países da Europa Ocidental (particularmente na Itália, França e Grécia) - cumprindo com o acordado com os Estados Unidos e Grã-Bretanha nos pactos de Yalta e Postdam-, junto à destruição da infraestrutura europeia na guerra e a disponibilidade de capitais estadunidenses, permitiram a estabilização nos centro imperialistas, enquanto a revolução se expandia na Ásia e na América Latina, ou seja, nos países que na época foram chamados de “Terceiro Mundo”.

Os trotskistas sobreviveram à guerra, mas eram uma pequena minoria, e Mandel continuou, sendo muito jovem, entre aqueles que se colocaram à cabeça de reorganizar a IV Internacional diante do pouco empenho inicial de dirigentes de maior tradição, com os da SWP estadunidense. Tinha que responder a um novo marco estratégico. Mas as respostas dadas, no nosso entender, não foram à altura do desafio colocado.

Debates no movimento trotskista

Mencionaremos três temas centrais que atravessaram os debates daqueles anos. Primeiro, a natureza dos Estados surgidos das revoluções do pós-guerra, em que ocorreu a expropriação do capitalismo, e as formações sociais onde o capitalismo foi suprimido “por cima”. No Segundo Congresso mundial da IV Internacional realizado em maio de 1948, ainda se definia a Iugoslávia (que seria expulsa do Kominform por Stalin em junho deste ano [8] e os países do glacis ou “zona de amortecimento” (os países da Europa Oriental que foram ocupados pelas tropas soviéticas e a Alemanha Oriental) como “capitalistas em processo de assimilação estrutural”. Em março de 1949, Mandel publica “¿Hacia dónde va Europa del Este? Tendencias económicas en la zona de amortiguación de Stalin”, em que considera que ainda não se tinha ocorrido o salto de qualidade para a transformação do caráter de classe desses Estados. Joseph Hansen responde este documento em dezembro deste mesmo ano com seu trabalho “El problema de Europa del Este”, em que, seguindo os desenvolvimentos de Trótski sobre a Finlândia e a Polônia em 1939-1940, fundamenta o porquê haviam se transformado em novos Estados operários. O Terceiro Congresso Mundial de 1951 definiu estes países como “Estados operários deformados”, definição que se estendeu à China, onde a revolução triunfou em 1949.

A extensão mais geral da categoria de Estado operário deformado a esses países (e depois à Coreia do Norte, Cuba e Vietnã), e o fato de seguir considerando a União Soviética um Estado operário foi, sem dúvida, progressista em relação àqueles que, por conta da direção stalinista (ou nacionalista pequeno-burguesa) desses processos ou por terem sido realizados a frio, se negaram a ver nesses Estados a mudança de seu caráter de classe, como o Lutte Ouvriére, os teóricos do “capitalismo de Estado” ou os do “coletivismo” e do “capitalismo burocrático” [9]. Mas, no caso de Mandel e outros dirigentes da época, essa caracterização foi feita gerando expectativas e embelezando a liderança desses processos em seus momentos de auge, seja o titoísmo, o maoísmo ou o castrismo, com os quais o termo “deformado” desses Estados se transformou muitas vezes em pouco mais do que letra morta. Isso ocorreu por não terem defendido um claro programa de revolução política para os Estados que surgiram produto de processos revolucionários liderados por direções stalinistas ou nacionalistas pequeno-burguesas, com as formas particulares que cada caso merecia [10]. Vale ressaltar que grande parte dos principais referentes da corrente que continuou a tradição de Mandel renega hoje a caracterização desses Estados e da União Soviética como Estados operários burocráticos (deformados e degenerados respectivamente), sem que tenham elaborado uma posição comum sobre o tema, com muitos se inclinando para alguma variante do coletivismo burocrático, mas sem tirar conclusões de qual programa e estratégia teria correspondido defender diante de tal caracterização. No nosso entender, pelo contrário, a forma em que ocorreu a restauração capitalista na União Soviética, nos países do Leste europeu e na China, com a burocracia mudando para o lado capitalista de “mala e cuia”, mostra a pertinência da análise original de Trótski a esse respeito [11] e sua extensão aos Estados em que ocorreu a expropriação do capital no pós-guerra. No mesmo sentido, acreditamos que correspondia defender o programa da revolução política nas revoltas antiburocráticas que ocorreram nesses países ao longo do pós-guerra. Ou seja, um programa para varrer o aparato burocrático substituindo-o pelo poder dos conselhos operários -sovietes- preservando a propriedade estatal dos meios de produção e reformulando todo o plano econômico em benefício dos produtores.

Um segundo debate que gostaria de destacar diz respeito ao marco estratégico mais geral do mundo pós-guerra. Neste ponto, Mandel se alinhou com Michel Pablo em 1951 na visão de que viria um período de “guerra-revolução” e na política de “entrismo sui generis [12] aos Partidos Comunistas ( e secundariamente a social-democracia, como foi o caso da Bélgica), propostas expressas claramente no documento “¿A dónde vamos?”, escrito por Pablo. Mandel, por sua vez, apresentou “La cuestión del estalinismo (Diez tesis)” em abril de 1951. Além da conjuntura em que se defendeu a caracterização de “guerra-revolução” (a da guerra da Coréia, onde se falava da iminência de uma “terceira guerra mundial”), a verdade é que o que se configurava era um tipo de duopólio mundial entre o imperialismo yanqui e a burocracia stalinista que buscava preservar a nova ordem mundial (a “odem de Yalta”), enquanto a caracterização do período de “guerra-revolução” entre o “campo stalinista” e o “mundo capitalista” que “duraria séculos” direcionava para o sentido contrário, não preparando para os levantes como o da Alemanha Oriental em 1953 (em que o Secretariado Internacional que integravam Pablo e Mandel não defendeu a saída das tropas russas) e, depois, da Polônia e Hungria em 1956, onde, aí sim, o conjunto das forças trotskistas repudiaram a criminosa intervenção da União Soviética para esmagar o processo revolucionário húngaro, processo em que se desenvolviam conselhos operários. Na disputa que se deu em 1953, concordamos com o essencial das críticas que as forças agrupadas no Comitê Internacional, encabeçada pelo SWP estadunidense (ver a carta aberta “A los trotskistas del mundo” redigida por James P. Cannon), fizeram ao “campismo” e à adaptação ao stalinismo que as já referidas posições de Pablo e Mandel conduziam (e também ao método centralista burocrático pelo qual tentou-se impor essa definição à seção francesa, que não concordava com o entrismo no PCF, e que levou à sua divisão), embora nunca sustentaram uma estratégia alternativa como um todo ao Secretariado Internacional [13].

A caracterização de um período de “guerra-revolução” que levaria todos os partidos stalinistas a ir “além” de seu “etapismo” como tendência geral foi o fundamento da política de “entrismo sui generis”, levantada como tática generalizada. Em outras palavras, a participação nos partidos comunistas e social-democratas sem constituir uma ala ou fração com publicação e personalidade própria, algo que caracterizou o “giro francês” impulsionado por Trótski em meados da década de 30 do século XX, depois do triunfo de Hitler na Alemanha e do fato de que a entrada de trabalhadores que se radicalizavam à esquerda na SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária) ter devolvido para este partido uma organização que o fundador da IV Internacional considerava episodicamente como “centrista”. Em sintonia com o que acontecia na França, essa mesma tática foi utilizada por organizações trotskistas em outros países, como foi o caso dos Estados Unidos. Porém, o que em Trótski era uma tática episódica, aqui se tornou uma política duradoura, com uma década ou década e meia de militância “tapada” nessas organizações e com resultados pouco frutíferos. O próprio Mandel, que tinha grande influência na ala esquerda da central sindical e da social-democracia belga, impulsionando o periódico La Gauche, acabou sendo expulso, saindo com apenas algumas dezenas de militantes. As experiências “entristas” desses anos, por certo, não foram exclusivas dos setores que ficaram no Secretariado Internacional. Nahuel Moreno, que aderiu ao Comitê Internacional, teve todo um período de entrismo no peronismo depois do golpe de 1955 com a experiência do Palabra Obrera. Embora neste caso houvesse um periódico próprio e Moreno sustentasse que a tática era um entrismo nas organizações sindicais do peronismo e não em seu aparato político, o certo é que o jornal se apresentava “sob a disciplina do General Perón”, e o resultado desse processo foi tão pouco frutífero como o que comentamos de Mandel na social-democracia belga. Essa tática de entrismo prolongado pode ser apontada como uma das causas que levou a que as organizações trotskistas chegassem debilitadas ao período de ascenso revolucionário internacional iniciado em 1968, quando a radicalização operária e juvenil levou ao surgimento de organizações trotskistas independentes que superaram os 1.000 militantes em vários países, mas sem conseguir ser um fator decisivo nos processos revolucionários que se desenvolviam [14]. Podemos dizer que Mandel não esteve isento de um traço que caracterizou grande parte dos dirigentes e correntes do trotskismo do pós-guerra: o objetivismo. A ideia de que a força dos acontecimentos forçaria as direções circunstanciais do movimento de massas a ir além de seu programa e estratégia, generalizando, deste modo, o que havia sido um momento episódico do final da guerra, debilitou (ou deixou de lado diretamente) a possibilidade do trotskismo disputar com essas mesmas direções a direção das massas.

Depois de se separar primeiro de Pablo, e depois de Posadas, Mandel se reuniu com o SWP (Socialist Workers Party) estadunidense, àquelas organizações que tinham influência internacional, e à tendência que Moreno tinha construído, o SLATO (Secretariado Latino-americano do Trotskismo Ortodoxo) em 1963, dando origem ao Secretariado Unificado da IV Internacional. Essa unificação foi feita em base ao reconhecimento de que em Cuba tinha surgido um novo Estado operário, mas sem nenhum balanço comum das condições que tinham levado à ruptura e realizado um embelezamento da direção castrista, algo que foi comum à maioria das organizações trotskistas desses anos [15]. Por sua vez, as organizações lideradas na Grã-Bretanha por Gerry Healy e na França por Pierre Lambert não participaram da unificação e não reconheceram Cuba como um Estado operário surgido da revolução.

Um terceiro debate ao qual gostaria de me referir diz respeito às implicações do boom capitalista do pós-guerra, desenvolvido a partir da contenção dos processos revolucionários do final da guerra na Europa Ocidental e do Plano Marshall. Para uma parte do movimento trotskista, nada tinha mudado e a passagem do Programa de Transição sobre a definição de que “as forças produtivas tinham deixado de crescer” continuava válida contra todas as evidências. Depois que, durante o II Congresso Mundial da IV Internacional, a tendência do RCP (Revolutionary Communist Party) britânico apontou que a economia estava se estabilizando nos países imperialistas, Mandel colocou-se entre aqueles que reconheceram a mudança ocorrida na dinâmica econômica dos países capitalistas avançados, mas, no nosso entendimento, cedendo à teses daqueles que defendiam a existência de um período neo-capitalista, definição que se encontra no Tratado de economía marxista e em outros de seus trabalhos. No nosso entender, essa definição podia dar a entender que o novo ciclo de desenvolvimento das forças produtivas abriria um período de rejuvenescimento orgânico do capitalismo nos países imperialistas. Depois, Mandel cunhou a definição de “capitalismo tardio” para esse período, com o qual tenta explicar as peculiaridades do modo de produção capitalista no período do pós-guerra, quando o keynesianismo estava no auge e ocorria a “terceira revolução industrial” (evento que acelerou o ciclo de rotação do capital) [16]. Um capítulo inteiro do O capitalismo tardio, que foi sua tese de doutorado, inclui a discussão sobre as “ondas longas”, tema que também é tratado na conferência dada por ele sobre o tema no ciclo Alfred Marshall em 1978 na Universidade de Cambridge, que foram publicados como livro independente. A esse respeito, buscando sintetizar as posições opostas que tiveram Trótski e Kondratiev na década de 20, Mandel afirma:

A existência dessas ondas longas no desenvolvimento capitalista dificilmente pode ser negada à luz de evidências esmagadoras. Todos os dados estatísticos disponíveis indicam claramente que, se tomarmos como indicadores chave o crescimento da produção industrial e o crescimento das exportações mundiais (do mercado mundial), os períodos de 1826-1847, 1848-1873, 1874-1893, 1894-1913, 1914-1939, 1940/48-1967 e 68 são marcados por acentuadas flutuações das taxas médias de crescimento, com altas e baixas entre as sucessivas ondas longas que oscilam entre 50 e 100% [17].

E acrescenta:

A análise econômica marxista geralmente situa os movimentos da taxa média de lucro em dois marcos temporais diferentes: o do ciclo industrial e o do ciclo vital do sistema capitalista (novamente a controvérsia sobre a denominada teoria do crash). Nós propomos que se deve intercalar um terceiro marco temporal… o das chamadas ondas largas de vinte a vinte e cinco anos de duração [18].

Afirma, finalmente: “Estamos convencidos de que o que ocorreu depois de 1848, 1893 e 1940-48 foram de fato ascensos de longo prazo da taxa média de lucro.” [19]

Ao mesmo tempo, Mandel aponta que não existem motivos endógenos para o ascenso da “onda longa”, mas que é produto de fatores vinculados à luta de classes, entre outros. Neste caso, a guerra mundial e seu resultado seria o fator explicativo da expansão do pós-guerra. Mas aponta que, depois da expansão, o período depressivo é inevitável. Embora essa visão o tenha ajudado a prever a mudança de tendência no ciclo do boom no final dos 60, não vemos motivos teóricos para sustentar tal definição: os mesmos argumentos que usa para sustentar que o início da onda ascendente não pode ser explicado por motivos econômicos meramente endógenos podem ser utilizados para a onda descendente, além de defender a existência de elementos tendenciais que podem ser alterados pelo resultado de guerras, revoluções ou a conquista de capital de novos territórios econômicos. No nosso caso, para explicar o boom do pós-guerra, falamos de um período de “desenvolvimento parcial das forças produtivas” (por falta de um nome melhor) para diferenciá-lo do ciclo inicial de desenvolvimento capitalista e dar conta do fato de que o capitalismo perdeu um terço do território mundial, sendo esse o cenário em que se desenvolveu o período de crescimento econômico sustentado durante duas décadas nos países capitalistas avançados.

Juntamente a esses três temas, creio ser importante mencionar também o questionamento à orientação favorável à guerra de guerrilha como estratégia na América Latina, defendida por Mandel no IX e X Congressos Mundiais do SU. Isso levou ao reconhecimento do setor liderado por Santucho como seção oficial do SU no lugar do dirigido por Nahuel Moreno depois da ruptura do PRT (Partido Revolucionario de los Trabajadores) argentino no começo de 1968. Além dessa circunstância, foi uma orientação em que a SU se adaptou ao guerrilheirismo e teve resultados muito negativos para a vanguarda revolucionária latino-americana, confrontada no seio do SU pela tendência impulsionada pelo SWP estadunidense conjuntamente ao morenismo.

Por último, é preciso mencionar também que Mandel teve uma posição que poderíamos denominar “deutscheriana tardia” frente a perestroika e a glasnost impulsionadas por Mikhail Gorbachev, com a ilusão de que se poderia desatar um processo de autorreforma da burocracia na União Soviética (segundo seu biógrafo Jan Willem Stutje, seu livro sobre a URSS de Gorbachev recebeu críticas importantes de seu círculo próximo), embora o seu livro posterior, El poder y el dinero (um estudo de envergadura sobre o papel das burocracias) volte a reivindicar a perspectiva da revolução política. Neste mesmo trabalho, formulou a hipótese de que um novo Estado pós-revolucionário poderia combinar uma representação baseada no sufrágio universal com outra baseada nos conselhos operários, proposta que nos faz lembrar as posições favoráveis de Estado combinada desenvolvidas durante a Revolução alemã, questionadas pela Terceira Internacional na época. Mandel disse lá:

Todas essas formas de democracia direta não substituem, mas complementam as instituições do sufrágio universal. Depois do choque traumático das ditaduras fascista, militar e stalinista, as massas operárias de todo o mundo estão profundamente convencidas da necessidade de participar em eleições democráticas de organismos do tipo parlamentar. Seria suicídio para os socialistas ir contra este profundo impulso massivo em nome de alguns dogmas espúrios que ecoam dos argumentos dos bolcheviques e da Internacional Comunista entre 1917 e 1923. As condições especiais que levaram os bolcheviques à restrição do sufrágio universal na primeira constituição soviética - o fato de que o proletariado era apenas uma pequena minoria da sociedade - não ocorrem na atualidade em nenhum dos grandes países do mundo, com as possíveis exceções da Indonésia e do Paquistão [...] O desejo justo e legítimo de uma ampliação qualitativa das dimensões da democracia direta podem perfeitamente ser realizadas em um sistema no qual os direitos de um organismo do tipo parlamentar estejam limitados pelos direitos de outras câmaras que representem outros setores da sociedade (nacionalidades, mulheres, produtores, etc.). Uma maior frequência das eleições, aliado ao direito de revogar os deputados ou representantes em geral, reduziria de forma dramática a “distância” dos parlamentares de seus eleitores, assim como sua tendência de fazer promessas eleitorais demagógicas que não têm nenhuma intenção de cumprir [20].

O problema dessa visão não é tanto quem tem o direito a votar, mas é que liquida a defesa dos conselhos de trabalhadores e trabalhadoras (os sovietes da Revolução russa) apoiados nas milicias operárias como base do poder do novo Estado revolucionário, como organismos fundamentais para uma forma de democracia infinitamente superior à mais ampla das democracias burguesas, como superação do parlamentarismo burguês, onde as amplas massas podem intervir para decidir tanto sobre as decisões políticas como na planificação da economia.

Essas posições foram parte de um giro à direita que grande parte das organizações que se reivindicavam trotskistas deram naqueles anos, como o SWP estadunidense sob a liderança de Jack Barnes adaptando-se completamente ao castrismo, o “lambertismo” cedendo ao governo de Mitterrand na França e o morenismo defendendo a semi-etapista “teoria da revolução democrática”. Posições estas que deram base para as duas posições erradas que predominaram diante das mobilizações que se desenvolveram no Leste europeu e na União Soviética entre 1989 e 1991: a que levantou um programa meramente democrático, desligado de consignas como a revisão integral do plano econômico no interesse dos produtores e consumidores ou a maior igualdade salarial em toda a classe de trabalho, e outras que visavam preservar as conquistas estruturais-, como a LIT morenista e o lambertismo; e a que teve uma posição defensista da burocracia). Essas mobilizações terminaram restaurando o capitalismo nesses países dando, junto à vitória estadunidense na primeira guerra do golfo, um novo impulso à “globalização” neoliberal.

Nenhuma das críticas que levantamos é feita em detrimento de destacar a importância da leitura, estudo e discussão de toda a obra de Mandel. Seus livros e artigos estão cheios de contribuições e ensinamentos para qualquer um que queira desenvolver a teoria marxista. Sua atitude de considerar o marxismo uma teoria viva e colocá-la em discussão com as diferentes correntes do pensamento contemporâneo deve ser emulada por aqueles que quiserem desenvolver o marxismo revolucionário em nosso tempo. Um marxismo aberto caracterizado por Mandel como “a necessidade de submeter constantemente à exame e, no caso de ser necessário, questionar todo princípio e toda afirmação a partir de novos dados, novos desenvolvimentos e novos problemas” [21]. Inclusive, lendo certas avaliações feitas para este centenário de seu nascimento, é possível ver uma tendência a questioná-lo pelos aspectos mais “trotskistas” de sua obra, o que gera a ironia de que, nós que somos os mais críticos de sua trajetória nos debates no interior do movimento trotskista, nos sentimos hoje mais perto de muitos de seus escritos do que aqueles que o acompanharam em suas opções militantes.

Para finalizar, ficamos com uma definição do sentido da luta de toda sua vida com a qual nos sentimos plenamente identificados:

Nós, marxistas da época da luta de classes entre o capital e o trabalho assalariado, somos apenas os representantes mais recentes dessa corrente milenar, cujas origens remontam à primeira greve no Egito faraônico e que, passando pelas inúmeras sublevações dos escravos na Antiguidade e pelas revoltas camponesas na China e Japão antigos, conduzem à grande continuidade da tradição revolucionária dos tempos modernos e do presente. Essa continuidade resulta da faísca inextinguível da insubordinação à desigualdade, à exploração, à injustiça e à opressão, que se renova sempre na história da humanidade. Nela reside a certeza de nossa vitória, porque nenhum César, nenhum Poncio Pilatos, nenhum imperador do direito divino, nenhuma inquisição, nenhum Hitler, nenhum Stalin, nenhum terror e nenhuma sociedade do consumo conseguiram sufocar duradouramente essa faísca [22].


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FOOTNOTES

[1A biografia mais completa de Mandel é a realizada por Jan Willem Stutje, Ernest Mandel. A Rebel’s Dream Deferred, publicada em inglês por Verso em 2009.

[2“Entrevista de Tariq Alí a Ernest Mandel: locuras de juventude”, em Ernest Mandel, El lugar del marxismo en la historia y otros textos, Madrid, Viento Sur y Los libros de la Catarata, 2005, p. 30.

[3Abraham León (1918-1944): Nasceu na Varsóvia sob o nome de Abraham Wejnstok, e foi criado na Bélgica. Militou na organização sionista de esquerda Hashomer Hatzair, a Guarda da Juventude, desde 1913. Durante os Processos de Moscou, começou a simpatizar com o trotskismo. Ao estourar a Segunda Guerra mundial, León abandonou suas velhas posições sionistas e aderiu ao trotskismo. Foi detido e assassinado pelo nazismo.

[4Leon Lesoil (1892-1942): fundador do PC Belga, expulso em 1928 junto com outros dirigentes por se opor às medidas tomadas contra a Oposição soviética. Foi um dos fundadores da Oposição de Esquerda belga e dirigente da organização trotskista local até sua morte em um campo de concentração nazista.

[5“In Memorian: Ernest Mandel”, em Ernest Mandel, El lugar del marxismo en la historia y otros escritos, op. cit., p. 23

[6Em 1970, na VI Assembleia dessa organização, se enfrentaram dois setores: um “militarista”, partidário das ações armadas, e outro partidário da subordinação da luta armada à luta política e à ligação com as organizações operárias. Esta última era majoritária na assembleia, mas o setor militarista se negou a aceitar as resoluções da assembleia, separando-se no que veio a se chamar ETA V Assembleia ou ETA-V. O setor majoritário ficou conhecido como ETA VI Assembleia, ou ETA-VI.

[7Definimos, em textos anteriores, que o trotskismo do pós-guerra, mesmo sendo a corrente mais à esquerda da esquerda internacional, terminou se configurando como um conjunto de tendências centristas, caracterização que não significa que não tenham deixado fios de continuidade revolucionária que é necessário resgatar.

[8Ver al respecto Philippe Alcoy, “El cisma entre Stalin-Tito” partes I y II, La Izquierda Diario.

[9No nosso caso, apontamos que a partir de 1943 e até 1948-49 se abre um período excepcional que tornou possível a materialização do que Trótski definiu como “hipótese improvável” no Programa de Transição: “É possível a criação do governo operário e camponês pelas organizações operárias tradicionais? A experiência do passado mostra, como já dissemos, que isso é o menos provável. No entanto, não é possível negar categoricamente a priori a possibilidade teórica de que sob a influência de uma combinação de circunstâncias muito excepcionais (guerra, derrota, crise financeira, ofensiva revolucionária das massas etc.), partidos pequeno-burgueses, incluindo os stalinistas, possam, durante o percurso, levar a ruptura com a burguesia mais longe do que gostariam. Em todo caso, uma coisa é certa: se essa variante, pouco provável, chegar a se realizar em alguma parte e um “governo operário e camponês” - no sentido indicado mais acima - chegar a se constituir, representaria apenas um breve episódio no caminho da verdadeira ditadura do proletariado” (El Programa de Transición y la fundción de la IV Internacional, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2017, p. 64). A realidade foi além dessa hipótese no sentido de que diversos Estados avançaram não apenas para “governos operários”, mas para a constituição de Estados operários deformados. Ao mesmo tempo, vimos uma infinidade de situações revolucionárias em que o desenlace revolucionário foi evitado pelas direções reformistas de diversos tipos.

[10Algo semelhante aconteceu com o sandinismo na Nicaragua, que ele definiu como um “governo operário”. Em 1985, o SU se distancia politicamente do sandinismo e Mandel rompe politicamente por completo com Daniel Ortega em 1992, depois do seu abandono do governo após perder as eleições.

[11Ver Christian Castillo e Matías Maiello, “Lecciones para reactualizar la perspectiva comunista en el siglo XXI”, em León Trotsky, La revolución traicionada y otros escritos, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2014.

[12Esse entrismo era definido como sui generis porque não era a tática de um entrismo episódico para ganhar os elementos de vanguarda e construir um partido revolucionário independente, mas o objetivo era permanecer dentro daqueles partidos durante um longo período.

[13A resistência inicial ao documento de Pablo veio da seção francesa. Em junho de 1951 Marcel Bleibtreu publica “¿Adónde va el camarada Pablo?”. O SWP se opôs a Pablo apenas quando este começa a estimular um setor interno, a “tendência Cochran-Clarke”, dentro do partido estadunidense.

[14Esse questionamento não implica, no nosso caso, a recusa de ter diversas táticas, inclusive diferentes formas de “entrismo”, para que pequenos núcleos revolucionários se desenvolvam até poder constituir partidos revolucionários independentes. É uma crítica precisa ao emprego generalizado de uma tática determinada e aos fundamentos equivocados sobre os quais se apoiou.

[15Na biografia de Stuje há um capítulo muito interessante e detalhado sobre a relação de Mandel com Che Guevara, suas duas estadas em Cuba e sua intervenção nos debates sobre a planificação econômica no novo Estado operário cubano.

[16Esclareçamos que o conceito de “capitalismo tardio”, por sua vez, teve um deslocamento a partir da obra de Fredric Jameson, que define o pós-modernismo como a “lógica cultural do capitalismo tardio”. A verdade é que o “pós-modernismo” se relaciona mais com o período neoliberal do que o estudado por Mandel. Assim, muitos textos falam de “capitalismo tardio” englobando todo o ocorrido da pós-guerra até a atualidade, embora os traços do capitalismo neoliberal difiram em aspectos relevantes com o período analisado por Mandel.

[17Ernest Mandel, Las ondas largas del desarrollo capitalista, Madrid, Siglo XXI Editores, 1986, p. 2.

[18Ibídem, p. 10.

[19Ibídem, p. 11.

[20Ernest Mandel, El poder y el dinero, México, Siglo XXI Editores, 1994, pp. 287-288.

[21Ernest Mandel, Marxismo Abierto, Barcelona, Grijalbo, 1982, p. 42.

[22Ernest Mandel, “Pourquoi je suis marxiste”, en G. Achcar (ed.), [Le marxisme d´Ernest Mandel, París, PUF, 1999, p. 230.
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Christian Castillo

Dirigente do PTS, sociólogo e professor universitário
Dirigente do PTS, sociólogo e professor universitário
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