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O duplo poder e os sovietes, uma questão de práticas e estratégias

Matías Maiello

O duplo poder e os sovietes, uma questão de práticas e estratégias

Matías Maiello

Matías Maiello suscita questões político-estratégicos do marxismo na atualidade a partir de debate com a resenha de seu livro "Da Mobilização à Revolução" [1] publicada por Agustín Santella na Revista Jacobin.

Agustín Santella publicou na revista Jacobin uma resenha do meu livro, De la movilización a la revolución. Quero agradecer a Agustín por seus comentários e considerações sobre o livro, ao mesmo tempo que aproveitar a oportunidade para enfrentar alguns debates que ele suscita. Existe um tema central que atravessa sua interpretação do Programa de Transição que pode ser sintetizado na seguinte crítica:

Parece-nos que o próprio Trótski começa a criar um obstáculo epistemológico em sua leitura da guerra civil espanhola, ao reivindicar o duplo poder nos “sovietes”, sem atentar às formas das lutas pelo poder na guerra civil. A Quarta Internacional, ao fazer desse obstáculo uma tradição, criou um sectarismo que a marginaliza do processo mundial.

Trótski, efetivamente, colocava em primeiro plano a perspectiva estratégica dos sovietes/conselhos. Tanto é assim que dizia: “todo o programa de transição deve preencher os espaços entre as condições atuais e os sovietes do futuro” [2]. Outra coisa muito diferente é se as diferentes tendências que se reivindicaram trotskistas desde a segunda metade do século XX até hoje se apropriaram dessa ideia. De fato, aquela centralidade que Trótski deu à perspectiva dos conselhos foi e é uma raridade entre as correntes que se reivindicam trotskistas; no máximo, é lembrada nos dias de festa, mas sem impacto nas táticas e estratégias concretas.

No que se refere à Revolução Espanhola, Agustín não propõe juntamente à sua crítica ao “duplo poder nos sovietes” uma abordagem estratégica alternativa, tampouco faz referência à política oposta à proposta por Trótski, a da Frente Popular. Isso representa um limite para o debate. Entretanto, parece pertinente voltar a ele, já que o caso espanhol é particularmente ilustrativo para abordar o significado da perspectiva “soviética”.

A questão do “duplo poder” na Revolução espanhola

Em 1936, chega ao poder a Frente Popular, composta principalmente pelo Partido Comunista, o Partido Socialista (PSOE) e um setor minoritário de burgueses republicanos (Partido Radical). Era uma frente de colaboração de classes, na qual, apesar do minúsculo peso relativo do setor burguês, todo o programa se adaptava às suas exigências, esclarecendo explicitamente que “os republicanos não aceitavam o princípio de nacionalização da terra e da entrega gratuita aos camponeses”; o mesmo aconteceu com o rechaço à independência de Marrocos. Quando ocorreu o golpe de Franco, a atitude da Frente Popular foi a de acalmar o movimento operário. Inclusive, no mesmo dia do levantamento, o presidente da Generalitat mandou guardas de assalto para vários sindicatos da CNT para requisitar as armas que os operários tinham procurado para resistir. Com altos custos e uma enorme demonstração de espontaneidade da classe trabalhadora, as tropas de Franco foram derrotadas em várias das principais cidades como Madri, Barcelona, Bilbao e outras. Começa, então, a guerra civil e o país se divide em dois: as regiões sob controle franquista em que o golpe havia triunfado e aquelas onde havia sido derrotado, nas quais se mantinha a república e o governo da Frente Popular.

Feito esse preâmbulo, podemos colocar-nos a primeira pergunta: essa divisão territorial foi uma situação de “duplo poder”? Claro. É uma situação de “soberania múltipla” - poderíamos dizer nos termos de Charles Tilly - na qual dois poderes disputam o controle do país. Segunda pergunta: o problema do “duplo poder” naquele momento se limitava a essa divisão territorial? Não, e aqui começa a questão. A forma que se derrotou o golpe em parte do território, com a ação do movimento de massas e a atitude tímida da Frente Popular, teve importantes consequências. O Estado republicano ficou quase falido, perdeu boa parte do exército e alguns corpos policiais permaneceram leais. Nesse quadro, era altamente dependente das milícias operárias organizadas pelos partidos e sindicatos. A classe trabalhadora empreendeu a constituição de múltiplas organizações que se encarregaram da ordem pública, do controle do abastecimento, do controle das empresas [3], do poder local e da justiça (comitês locais, patrulhas de controle, comitês de abastecimento, tribunais revolucionários). Todos eles constituíram uma nova institucionalidade paralela à do Estado republicano, embora, diferentemente deste último, não eram centralizados [4].

Ou seja, não houve uma situação de duplo poder, mas duas. Uma respondia à divisão territorial pós-golpe, outra à emergência de instituições de poder alternativas, ainda que dispersas, frente à crise do Estado burguês republicano. Neste segundo caso, podemos encontrar certas semelhanças com o que Trótski chamou de “o paradoxo da revolução de fevereiro” na Rússia de 1917 [5]. Produto do caráter conciliador das direções do movimento operário (PC, PS, CNT, POUM), a nova institucionalidade que emergiu da resistência ao golpe era a que “sustentava” o governo do Estado republicano em crise. A maioria daqueles novos organismos se formaram por meio de uma frente única “por cima” dos representantes dos sindicatos e partidos operários. Apenas em alguns casos se conforma com eleição direta das bases como os sovietes russos fizeram em 1917. Claramente, nenhuma organização buscou impulsionar essa segunda via, nem mesmo o POUM.

Por tudo isso, “recuperar o duplo poder nos sovietes”, ou, mais precisamente, a proposta de desenvolver os elementos de auto-organização para constituir sovietes - ou “juntas”, como propunha denominá-las-, estava muito longe de ser uma especulação fantasiosa de Trótski “sem atender às formas de luta pelo poder na guerra civil”. A luta em torno de como aquelas duas situações de duplo poder no campo republicano deveriam se articular foi central. O mesmo aconteceu nos termos de qual deveria ser a relação entre guerra civil e revolução. O lema das direções conciliadoras da Frente Popular era “primeiro a guerra, depois as reformas sociais”, a de Trótski era fazer a guerra e a revolução ao mesmo tempo. A primeira consistia em “normalizar” o campo republicano, acabando com os elementos de duplo poder “interior”. A segunda passava por desenvolver os elementos de auto-organização para construir um poder operário e camponês, e avançar em medidas revolucionárias - terra para os camponeses, expropriação das fábricas e oficinas sob controle operário etc.- chamando a replicá-las nas zonas dominadas por Franco, o que incluía a libertação das colônias africanas.

Em um primeiro momento, Largo Caballero (PSOE) passou a ocupar o posto de Presidente do Conselho de Ministros com o objetivo de desativar aqueles elementos de duplo poder de forma pacífica, sob a bandeira de “primeiro a guerra”. Como aponta Santiago Lupe, essa operação tinha pontos de contato com a política levada adiante pela social-democracia alemã em 1918 diante dos räte (conselhos): integrar os elementos de duplo poder à própria institucionalidade burguesa. O PSOE, a CNT-FAI e o PCE estavam amplamente comprometidos com essa política. O mesmo processo foi realizado na Catalunha sob a direção da Generalitat, com a diferença de que o enraizamento de socialistas e stalinistas era muito menor. Seu presidente, Luís Companys (Esquerda Republicana), navegou habilmente por aquelas águas repletas de comitês que em muitos municípios controlavam o poder local (em alguns, como o de Lérida, excluíram os partidos republicanos) [6].

Entre agosto de 1936 e fevereiro de 1937, tanto o governo central como o catalão aprovaram uma série de decretos para arregimentar ou diretamente liquidar os comitês e as conquistas revolucionárias de julho. Os dois mais importantes foram o de militarização das milícias para sua integração no novo Exército Popular e o de dissolução dos comitês locais que tinham substituído os ajuntamentos republicanos. Depois do momento da desarticulação pacífica dos elementos de duplo poder, a Generalitat da Catalunha preparou o golpe definitivo contra a vanguarda operária de Barcelona. A história é conhecida: no dia 3 de maio, o governo tenta tomar a central telefônica das mãos da CNT com os guardas de assalto e acontece uma enorme reação espontânea da classe trabalhadora. É proclamada a greve geral, se levantam barricadas e os trabalhadores ganham o controle territorial quase total da cidade. Tanto os dirigentes da CNT-FAI como os do POUM pedem calma, enquanto setores do movimento anarquista, como a Agrupação Amigos de Durruti, tiraram conclusões do processo anterior voltadas à luta pelo poder operário, mas não conseguiram a força suficiente para cumprir um papel decisivo.

Essa “discussão” sobre a articulação entre as duas situações de “duplo poder” acabou se resolvendo no levante armado dos trabalhadores catalães para defender suas posições dos ataques dos guardas de assalto dirigidos pelos stalinistas. Trótski opinava que em maio de 1937 ainda era possível evitar a derrota, não apenas da Catalunha, mas da Revolução espanhola. “Se o proletariado da Catalunha - dizia - tivesse se apoderado do poder em maio de 1937, teria encontrado o apoio de toda a Espanha. A reação burguesa stalinista não teria encontrado nem dois regimentos sequer para esmagar os operários catalães” [7]. Tratava-se de uma perspectiva de constituir um “governo operário” na Catalunha, e Trótski chamou o POUM e a esquerda da CNT para impulsioná-la. A hipótese estratégica era a de que o governo operário fosse erguido como uma “fortaleza revolucionária” para, a partir de sua defesa, desenvolver a revolução em escala nacional e alçar o programa de nacionalização da terra, da libertação do Marrocos, etc, ou seja, as demandas que a Frente Popular tinha negado explicitamente, e assim desatar as forças revolucionárias que ela se propunha a conter [8].

A derrota de Barcelona e, portanto, a liquidação definitiva do duplo poder no campo republicano, selou o triunfo da perspectiva de “primeiro a guerra, depois a revolução” e, com ela, a derrota tanto da revolução como da guerra civil.

Espontaneidade e consciência de classe: o lugar dos “sovietes”

Sem esse problema dos “sovietes” e da auto-organização da classe trabalhadora e do movimento de massas, é impossível compreender o Programa de Transição. Apesar disso, o que prevaleceu e prevalece, tanto entre os que o reivindicam ou os que o criticam, é o divórcio entre “programa” (os objetivos a serem conquistados) e “estratégia” (como fazer), entre o conteúdo e a realização das demandas e a constituição de uma força e identidade política hegemônica da classe trabalhadora. A crítica de Agustín não é alheia a essa constelação, tampouco o acadêmico britânico John Kelly, que ele traz como referência para o debate. Segundo Kelly, o modelo “trotskista” de abordar esses problemas seriam tão simples e abstratos como: ação coletiva + partido revolucionário = aumento da consciência de classe revolucionária. Um dos problemas básicos da proposta de Kelly é que seu “objeto de estudo”, um “movimento trotskista mundial”, não existe como tal. Daí seu argumento frágil, baseado em citações parciais de periódicos de todo um conjunto de organizações cuja prática, estratégia, programa e teoria têm pouco ou nada a ver entre si.

O autor recomenda aproveitar a literatura sobre os movimentos sociais para enriquecer aquele suposto esquema com conceitos que abordam diversos problemas. A saber: os motivos para a participação na ação (ideológicos, sociais ou instrumentais), a natureza das demandas (defensivas ou ofensivas, singulares ou plurais), as formas de ação (pacífica ou violenta, esporádica ou sustentada), a escala do protesto, à natureza e coesão dos protagonistas e dos oponentes, às estratégias do oponente (negociação, contestação ou repressão), a estrutura das oportunidades políticas, os resultados (vitória, compromisso ou derrota), etc. De fato, dentre os autores que se reverenciam, como Sidney Tarrow e Charles Tilly, podemos encontrar diversos conceitos úteis para uma apropriação crítica, no nosso caso, a partir do marxismo. Entretanto, diferentemente de outros teóricos do conflito como Tilly, que tomou a obra de Trótski como referência para elaborar conceitos importantes de sua teoria como o de “soberania múltipla” [9], Kelly constrói um Trótski de palha para fundamentar sua tese de que ele foi incapaz de compreender a relação entre luta de classes e consciência de classe [10].

De fato, Trótski desenvolveu muitas das questões às quais Kelly faz alusão em sua análise de caso (Revolução Russa de 1905 e 1917, Revolução alemã de 1918 a 1923, ascensão do nazismo, ascenso da luta de classes na França de 1934 a 1938, Revolução e guerra civil espanhola, reação stalinista na URSS, entre muitos outros). Também o fez em termos conceituais, muito ligados a uma apropriação crítica de clássicos da estratégia como Carl Clausewitz, embora nem sempre tenha sistematizado esses conceitos. Trabalhamos um pouco disso no livro Estratégia socialista e arte militar [11] com Emilio Albamonte, e depois no De la movilización a la revolución. Claro que a abordagem de Trótski é indissociável de uma perspectiva socialista e revolucionária. O ponto de vista de Kelly é totalmente diferente: por um lado, argumenta a impossibilidade de qualquer estratégia revolucionária em países com regimes democrático-burgueses e, por outro lado, faz uma aposta estratégica com “reformas radicais” dentro do capitalismo. A defesa dessa perspectiva limita suas investigações e tinge toda sua interpretação do marxismo.

Assim, por exemplo, ao analisar a relação entre consciência sindicalista (“tradeunionista”) e consciência socialista que estabelece Lenin em O que fazer?, Kelly busca relativizar as críticas do dirigente bolchevique ao sindicalismo partindo de uma abordagem evolutiva do problema. Sua forma de argumentação é muito problemática, já que consiste em demonstrar a importância que dava Lênin à intervenção nos sindicatos e nas lutas econômicas, o qual é evidente para qualquer um que conheça sua obra [12]. A questão é a de com qual forma e finalidade intervir ali.

Naquele texto, Lênin defendeu que “A história de todos os países demonstra que a classe operária, exclusivamente com suas próprias forças, está em condições de elaborar apenas uma consciência tradeunionista, ou seja, a convicção de que é necessário se agrupar em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo a promulgação de leis necessárias aos operários, etc.” [13]. Em 1905, com a emergência do Soviete de San Petersburgo, ele revisa aquele diagnóstico e incorpora o desenvolvimento desse tipo de organismos de auto-organização ao arsenal espontâneo da classe trabalhadora. Contra os bolcheviques, que opunham o novo “soviete” ao partido revolucionário, Lênin defendeu que a equação estratégica é “soviete e partido” [14].

Kelly, em toda sua análise sobre a dinâmica da consciência de classe em Lênin, omite essa importante questão. Mas a verdade é que sob o ponto de vista de que o “elemento espontâneo” é uma forma embrionária do consciente, alguns anos depois de O que fazer?, Lênin incorpora rapidamente os sovietes em sua concepção da política revolucionária. Ele vê neles uma nova prática política desenvolvida pelo movimento de massas, antagônica à prática burguesa da política, e que permite articular as diversas reivindicações e formas de luta em novas instituições de auto-organização para criar um poder alternativo. Essa mesma questão atravessa toda a obra de Trótski. Sem ela, o Programa de Transição se reduziria, utilizando os termos de Agustín, a alguma espécie de “consignismo”. Como condição necessária para triunfar, a classe trabalhadora deve articular um poder próprio capaz de “substituir” o aparato estatal burguês. Ou seja, não se trata simplesmente de “tomar posse” deste último para implementar um “programa de governo socialista”. A grande questão relegada por todas as visões que dividem -implícita ou explicitamente- programa mínimo e programa máximo é que, para “tomar o poder”, é necessário desenvolver um poder alternativo que não surge do nada.

Porém, o fato de existir uma tendência espontânea ao desenvolvimento de organismos de auto-organização - que vai além da “consciência tradeunionista”- não significa, longe disso, que este processo se dê automaticamente. Como apontamos em torno do exemplo da Revolução espanhola, seu desenvolvimento implica uma enorme luta política - inclusive física. O que encontramos historicamente são duas tendências contrapostas que atravessaram a luta de classes e, especialmente, seus momentos mais agudos. Por um lado, a tendência ao desenvolvimento de organismos de auto-organização de tipo “soviético” ou “conselhos”, com contornos particulares segundo os países, suas tradições e as características próprias de cada processo (pensemos nos räte alemães, nos conselhos húngaros de 1956, nos shoras iranianos, nos Cordões Industriais chilenos, etc). Por outro lado, uma tendência contrária à perda de autonomia da classe trabalhadora, à sua fragmentação e “integração” ao Estado burguês, baseada na estatização das organizações de massas cujo agente privilegiado são as burocracias em seu interior. Da equação entre essas duas tendências surge uma verdadeira “guerra de posições” que é determinante para os processos revolucionários.

A atualidade do problema

Ao contrário de aproximações evolutivas como a ensaiada por John Kelly, Trótski, em seu prólogo da História da Revolução russa, toma como ponto de partida o caráter profundamente conservador da psique humana para explicar as mudanças que se produzem na consciência em momentos revolucionários. As instituições nunca mudam na medida em que a sociedade precisa delas. Mesmo quando estão em crise profunda, podem passar longos períodos em que as forças de oposição não fazem mais do que servir de válvula de escape para descomprimir o descontentamento das massas, e assim garantir a produção do regime social dominante; é o caso hoje de todo tipo de “progressismos" ou “populismos de esquerda”. Esse caráter cronicamente atrasado das ideias e das relações humanas sobre as condições em que elas estão imersas faz com que, quando essas condições desmoronam e as grandes maiorias irrompem no cenário político, as mudanças na subjetividade superam em poucos dias as de anos de evolução pacífica [15].

O enfoque do Programa de Transição parte, justamente, dessa discordância de tempos entre as crises econômicas, políticas, militares e a subjetividade dos diferentes setores do movimento de massas. Assim, busca estabelecer uma ponte entre as demandas imediatas que surgem de um determinado estado “atual” da mobilização e aquelas consignas que são “necessárias”, a partir de um ponto de vista anticapitalista e socialista, para enfrentar determinada situação de crise. Da mesma forma, visa construir uma ponte na organização para articulação das forças políticas e sociais capazes de alcançar a “realização” daquelas demandas. Por isso, atribui uma importância central à intervenção nos sindicatos ligada ao combate contra todo conservadorismo e adaptação das burocracias sindicais, assim como à promoção de instituições de auto-organização, desde comitês de fábrica até conselhos/sovietes.

Aqui nos concentramos, sobretudo, neste último aspecto, e vale a pena fazê-lo porque se trata de um elemento chave diante de um problema que tem sido colocado sistematicamente nos processos de luta de classes dos últimos anos. A maioria deles permaneceram no estado de revoltas. Apesar da energia depreendida pelo movimento de massas, terminaram configurando um espécie de ecossistema de reprodução de regimes burguesas em crise, onde, enquanto se desenvolvem fenômenos de direita e ultradireita, se sucedem frentes “anti” tais variantes - “antineoliberais” ou “populismos de esquerda” - que funcionam como válvulas de escape para sustentar politicamente um capitalismo cada vez mais impossível de consolidar novas hegemonias. Sem o desenvolvimento de instituições de unificação e coordenação dos setores em luta e, em perspectiva, de conselhos/sovietes, é praticamente impossível quebrar esse esquema.

A França é, sem dúvida, o grande laboratório onde as tendências que debatemos neste artigo melhor podem ser analisadas hoje. A luta contra a reforma da previdência de Macron se transformou em um verdadeiro movimento de massas de amplas camadas da classe trabalhadora, estendidas à escala nacional. O governo, em crise, apela cada vez mais aos mecanismos bonapartistas da V República. Frente a isso, a direção do movimento operário, encarnada na Intersindical, se mantém inalterada chamando Macron para negociar enquanto leva adiante uma estratégia de desgaste com mobilizações que se sucedem sem uma perspectiva para triunfar, e busca circunscrever o programa ao não aumento da idade de aposentadoria, deixando de lado as reivindicações salariais generalizadas diante da inflação e das condições de trabalho e as demandas democráticas diante de um governo cada vez mais autoritário. Por seu lado, a perspectiva neorreformista encarnada por Mélenchon visa canalizar o processo nos marcos do regime, apostando em novas eleições para lutar contra o lepenismo.

Se hoje analisarmos o panorama da extrema esquerda francesa, nem o que restou do Novo Partido Anticapitalista (NPA) nem o Lutte Ouvrière (LO) impulsionaram nenhuma luta pela auto-organização e coordenação dos setores em luta para poder incidir no processo. Neste sentido, é muito significativo o desenvolvimento da Réseau pour la grève générale (Rede pela Greve Geral), impulsionada originalmente pela Révolution Permanente, organização irmã do MRT e do Esquerda Diário na França. Hoje se reúne na Rede setores de diferentes ramos do movimento operário: do transporte (RATP); ferroviários (SNCF); coletores de lixo e esgoto; das centrais nucleares de Paluel e Nogent-sur-Seine; trabalhadores da eletricidade (Enedis e RTE); setores da metalurgia (como Airbus e fábricas como Sidel, Safran e Stellantis/PSA); trabalhadores dos aeroportos de Roissy e Orly; trabalhadoras e trabalhadores da educação; também setores da juventude combativa e intelectuais como Frédéric Lordon, entre outros. Vários desses setores aparecem comprometidos em um dos combates centrais do momento´: impedir que a repressão estatal derrote as duras greves em locais estratégicos, por meio da chamada “requisição de trabalhadores”.

Essas experiências são muito importantes porque a discussão sobre a aposta estratégica de desenvolvimento de instâncias de tipo “sovietes” ou conselhos não se limita ao dia da revolução: faz parte de uma perspectiva muito mais ampla de auto-organização, da qual os conselhos são um ponto de chegada. Os “sovietes” são organismos de frente única das massas. A luta pela frente única da classe trabalhadora frente às direções burocráticas e reformistas requer a articulação de volumes de forças suficientes para impô-la. Em um contexto de fragmentação da classe trabalhadora e do movimento de massas, assim como de debilidade das forças de esquerda revolucionária, ganham especial relevância táticas complementares à frente única como a desenvolvida por Trótski em torno dos “comitês de ação”. Longe de qualquer esquematismo, com os “comitês de ação” Trótski desenvolve, em seus escritos sobre a França, uma concepção original da articulação da vanguarda e setores de massas a partir da generalização de instituições de unificação e coordenação das lutas e, por sua vez, uma via de fortalecer a influência da esquerda revolucionária a partir da confluência com eles.

Na atualidade, o primeiro passo para que emerja uma nova esquerda revolucionária é uma ruptura com a concepção da política como sinônimo de integração ao Estado e às formas em que este “organiza” o consenso ativo das massas. Até agora, no século XXI, grande parte da esquerda, nas mais diversas latitudes, apostou em diferentes projetos neorreformistas ou populistas de esquerda que fracassaram sistematicamente. Se considerarmos isso, poderemos inverter a afirmação de Agustín de que os “sovietes” são um obstáculo epistemológico: o que há, antes, é um obstáculo epistemológico que impede apreciar a significação estratégica dos sovietes/conselhos. Estes não respondem a uma norma estabelecida abstratamente por fora da experiência; ao contrário, surgem da necessidade de desenvolver as tendências de auto-organização das massas para criar um poder alternativo capaz de derrotar o Estado capitalista e depois ser os organismos democráticos de poder dos trabalhadores. É disso que se trata.


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FOOTNOTES

[1O livro foi publicado pelas Ediciones IPS da Argentina, sem ainda uma publicação em língua portuguesa, mas consideramos que o debate trazido pelo autor neste artigo tem enorme relevância e pode ser compreendido pelo público brasileiro.

[2León Trotsky, “Un resumen sobre las reivindicaciones transitorias”, no El Programa de Transición y la fundación de la IV Internacional, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP León Trotsky, 2017, p. 120.

[3Sobre a questão do controle operário, ver: Micheal Seindman, Los obreros contra el trabajo, La Rioja, Editorial Pepitas de Calabaza, 2014.

[4Sobre essas discussões, recomendo o trabalho de Santiago Lupe, no qual se encontram desenvolvidos muitos dos elementos que me refiro aqui (Santiago Lupe, “Prólogo”, em Trotsky, León, La victoria era posible. Escritos sobre la revolución española [1930-1940], Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP León Trotsky, 2014).

[5Ver: León Trotsky, Historia de la Revolución rusa, Tomo I, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP León Trotsky, 2017.

[6Ver Santiago Lupe, ob. cit., pp. 35 y ss.

[7León Trotsky, “La verificación de las ideas y de los individuos a través de la experiencia de la Revolución española”, La victoria era posible. Escritos sobre la revolución española [1930-1940], ob. cit., p. 330.

[8Ver capítulo 3 de Emilio Albamonte y Matías Maiello, Estrategia socialista y arte militar, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2017.

[9Ver Charles Tilly, From Mobilization to Revolution, New York, Random House, 1978, p. 190 y ss.

[10Ver John Kelly, The Twilight of Word Trotskyism Londres/Nueva York, Routledge, 2023.

[11Publicado no Brasil pelas Edições Iskra.

[12Aqui faço referência ao livro de John Kelly, Trade Unions and Socialist Politics (Verso Books, 1988, pp. 26 y ss.). Agradeço Agustín por ter me facilitado este texto.

[13V. I. Lenin, “¿Qué hacer?”, Obras selectas, Tomo 1, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP León Trotsky, 2013, p. 89.

[14Ver V. I. Lenin “Nuestras tareas y el Soviet de Diputados Obreros”, Obras selectas, ob. cit.

[15Ver León Trotsky, Historia de la Revolución rusa, Tomo I, ob. cit.
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