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SEMANÁRIO

A radicalização estudantil pró-Palestina e a farsa do reformismo lulista

André Barbieri

A radicalização estudantil pró-Palestina e a farsa do reformismo lulista

André Barbieri

A política concreta de Lula no tema da Palestina vai na contramão de tudo o que a juventude norte-americana está fazendo nos campi universitários. O espírito sessentaoitista da juventude norte-americana, que se inspira no movimento contra a Guerra do Vietnã, antecipa fenômenos de radicalização política que atuam como “caixa de ressonância” dos avanços subjetivos na classe trabalhadora. Um governo de conciliação de classes que manteve todas as relações diplomáticas e comerciais com Israel não tem interesse no efeito contágio dessa radicalização no Brasil, que ameaça com a luta de classes a “paz social” estabelecida por Lula e as burocracias petistas.

Um fantasma percorre os Estados Unidos. Não só percorre, ocupa. Estudantes universitários da universidades mais prestigiadas do mundo (Harvard, Columbia, Yale, Princeton, MIT, e um longo alfarrábio de instituições) enfrentam suas reitorias, a polícia e o Estado imperialista norte-americano para se irmanar com a população palestina em Gaza, sufocada pelo genocídio sionista. A geração estudantil de 1968 se orgulhava, com razão, em dizer que ao viver no ambiente universitário durante a Guerra do Vietnã, ninguém se ocupava em saber que tipo de emprego teria no dia seguinte. Para aqueles que ocuparam as dependências da Universidade de Columbia no ano do Maio Francês, tudo era secundário diante da oposição ao militarismo imperialista dos Estados Unidos, que havia surpreendido com a Ofensiva do Tet. Muito disso ressoa hoje. A juventude estudantil norte-americana não aceita mais a barbaridade da colaboração imperialista no genocídio de um povo submetido há 75 anos a uma limpeza étnica incremental, nos termos de Ilan Pappé, pelo exército colonialista de Israel.

Diferenças subjetivas importantes medeiam esse intervalo que separa aquele 1968 das mobilizações estudantis atuais. A cumplicidade do governo Biden no genocídio é direta, e os Democratas compartilham com os trumpistas no Congresso a responsabilidade por votar novos créditos militares aos sionistas depois de 35.000 mortos. Mas não há uma participação direta de soldados norte-americanos no cenário de Gaza. Como diz o pesquisador vietnamita Hoang Minh Vu, o movimento pelo desfinanciamento universitário nas empresas de fabricação de armas para Israel é um grave golpe no mito da hegemonia individualista neoliberal: revela que a nova geração é capaz de se mobilizar nas ruas, arriscando suas carreiras e por vezes a própria vida, sem que seus interesses imediatos estejam em jogo. O sacrifício pessoal por valores de solidariedade e cooperação soa como anátema para os herdeiros de Mises, Hayek e Friedman, esse caldeirão ideológico da reação neoliberal. A identificação dos estudantes com os palestinos diz respeito aos valores de uma geração crescentemente enojada com as intervenções imperialistas norte-americanas no Oriente Médio e no mundo, e que se opõe às corridas armamentistas e campanhas governamentais pelo alistamento para a participação em novas guerras. Mesmo o ultraliberal The Economist é obrigado a reconhecer que nunca foi tão baixa a associação da juventude à ideologia da “defesa nacional”.

Outro ponto diferencial é a sensibilidade do tema para os Estados Unidos. A sustentação do Estado genocida de Israel é um shared value pelo regime bipartidário de Democratas e Republicanos. Disputam sionismo. Enquanto Trump aplaude a orgia de repressão policial em Nova York e Los Angeles como “uma coisa maravilhosa”, Biden decidiu se pronunciar com o mesmo tom de desprezo que manifestara diante da luta contra a Guerra do Vietnã. Atacou as ocupações pacíficas dos estudantes como “violentas” e autorizou a repressão àquelas manifestações que julgar como “ofensivas à ordem” (leia-se, que apoiem os palestinos contra o genocídio) sem dizer nada sobre os sionistas que atacaram o acampamento em Los Angeles. Para além da motivação eleitoral - preservar a base conservadora e sionista do Partido Democrata da influência trumpista - a atuação de Biden é um emblema da simbiose inextricável que se formou entre Washington e Tel Aviv desde 1948, e mais ainda desde o final da Guerra Fria. Israel depende do financiamento e das armas estadunidenses para sobreviver como Estado artificial colonialista. Os Estados Unidos dependem de Israel como sua polícia militar no Oriente Médio e porto seguro de investimentos financeiros. Mesmo a geração de 1968 não tinha uma opinião majoritária desfavorável a Israel, e os sindicatos conduzidos pelas burocracias da AFL-CIO eram alguns dos principais detentores de investimentos na máquina terrorista israelense.

Longe estamos desse momento. Nunca a aprovação de Israel nos Estados Unidos esteve tão baixa na sociedade civil: apenas 36%. Em especial, a distância cada vez maior entre a direção imperialista e pró-Israel do Partido Democrata e sua base eleitoral está atingindo proporções “sessentaoitistas”. No final de fevereiro, há quase dois meses, o site de pesquisas Data for Progress informou que cerca de dois terços dos eleitores (67%) - incluindo maiorias de Democratas (77%), de Independentes (69%) e de Republicanos (56%) - apoiam um cessar-fogo permanente e a desescalada militarista de Israel em Gaza. Se tomamos apenas a juventude estudantil, as propostas se tornam significativamente mais radicais, como a que envolve o ataque aos investimentos empresariais das universidades em Israel. Em uma dimensão superior a 1968, a nova geração estudantil estabelece as premissas de uma ruptura categórica com o status quo ante do apoio a Israel. A simpatia pela causa palestina passa a ser um valor definidor da subjetividade progressista. Um terremoto na maior potência imperialista do mundo, e uma base subjetiva muito favorável para a reconstrução de um imaginário socialista revolucionário.

Com todas as diferenças de gradação, é chocante a distância desse espírito sessentaoitista com a demagogia lulista. Lula parece crer em uma espécie de “platonismo político” na questão Israel-Palestina, dividindo o mundo sensível do mundo inteligível. Em palavras, havia criticado o terrorismo sionista. Nos atos, continua o business as usual com Israel. Em outras palavras, Lula acredita que com alguns esparsos discursos dá a si mesmo um salvo-conduto para seguir normalmente as relações comerciais, econômicas, militares e diplomáticas com os sionistas. Relações que, diga-se, colaboram com os recursos necessários para que Netanyahu e o governo do Likud extermine a população palestina.

Enquanto os estudantes ocupam universidades nos Estados Unidos, na França e em todo o mundo pela Palestina, o Exército brasileiro acaba de firmar um contrato com a Elbit Systems, empresa de fabricação de armas do sionismo, para o fornecimento de 36 veículos blindados israelenses, modelo Atmos. O dinheiro para essa transação indecente virá do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), uma nave insignia de Lula, e custará quase R$1 bilhão. Pouco depois de ter comparado o genocídio em Gaza com o Holocausto, tornou-se público que a Força Aérea Brasileira adquiriu veículos não tripulados (drones) da Israel Aerospace Industries (IAI), estatal ligada ao Ministério da Defesa de Israel. O gerente da IAI, Boaz Levy, disse publicamente que os drones VANT Heron negociados com o Brasil “desempenharam um papel fundamental” no genocídios contra os palestinos em Gaza, ativo em operações de ataque.

Mas a relação financeira não cessa aí. Segundo o BDS (Boycott, Divestment, Sanctions), o Brasil está entre os quatro maiores exportadores de petróleo para Israel, algo fundamental para alimentar sua máquina de guerra. Desde outubro de 2023, mais de 260 mil toneladas de petróleo saíram de áreas de exploração da Shell, da Chevron e da Petrobras no Brasil. Efetivamente, quase 30% das exportações brasileiras para Israel são feitas pela Petrobrás. A extinção dos contratos petrolíferos com Benjamin Netanyahu significaria um golpe substancial nas relações comerciais entre Brasil e Israel, e poderia ser feito com uma decisão simples da estatal, sob comando de Lula. Ao contrário disso, o fluxo petrolífero brasileiro a Israel segue ininterrupto.

A política é “economia concentrada”, diria Lênin. No âmbito dos despudores, pouca coisa ultrapassa a relação de afinidade que Lula busca estabelecer com figuras sionistas como Tarcísio de Freitas. Em evento no Porto de Santos, Lula agraciou Tarcísio com mostras de amizade, dizendo que o governo federal dará “tudo que fosse necessário à gestão paulista”. Quase ⅓ (R$10 bilhões) das verbas auxiliares aos governadores concedidas pelo BNDES, sob comando do governo federal, vai para projetos de privatização de Tarcísio em São Paulo. Se tivesse aceitado o convite das centrais sindicais ligadas ao PT, o sionista Tarcísio estaria lado a lado com Lula na celebração governamental do 1º de Maio, absolutamente esvaziado de seu conteúdo operário internacionalista. Nunca é demais lembrar que o governador de São Paulo é um representante da extrema direita bolsonarista, que visitou Netanyahu em março para assegurar sua simpatia ao gabinete de guerra israelense.

Daqui vemos a franca oposição entre a normatividade refromista lulista e o caráter anti-sistêmico e anti-imperialista do espírito estudantil que ferve nos Estados Unidos pela Palestina. Isso é assim porque um movimento estudantil ativo anti-imperialista é uma ameaça à “paz social” estabelecida por Lula e as burocracias petistas. O lulismo senil dentro de um regime degradado tem como marca não só a preservação da ordem, mas também a administração da agenda econômica e institucional conservadora herdada do golpe institucional de 2016. Dentro disso se encontra o mais pervasivo conservadorismo com respeito ao imperialismo norte-americano, expresso na relação com Joe Biden e seus emissários como Antony Blinken.

As ilusões do reformismo lulista no tema da Palestina são desmanchadas pelo caráter contundente da ação estudantil norte-americana. Ela significa a abertura de um novo período de radicalização política da juventude estudantil que se sucederá pelos próximos anos (uma juventude que já acumula a experiência de um avanço de consciência durante o Black Lives Matter em 2020). O ciclo na década de 1970, que envolveu o choque de revoluções e contrarrevoluções em todo o mundo - da Primavera de Praga de 1968 à Revolução Iraniana de 1979 - afigurava ao mundo um cenário não assimilável ao atual, muito longe das tertúlias da Guerra Fria. Entretanto, politicamente, a radicalização do movimento contra a Guerra do Vietnã originou, entre outros fenômenos, o ressurgimento do Socialist Workers Party (SWP) nos Estados Unidos, assim como o Maio Francês deu origem à Liga Comunista Revolucionária (LCR) na França. A entrada de batalhões da juventude na arena da luta de classes alimentou tendências políticas radicais, mesmo ligadas ao trotskismo (ainda que no segundo pós-guerra tenha sido atravessado pelo abandono da independência de classes).

Guardadas as diferentes circunstâncias que regem a diversidade dos fenômenos atuais, nada disso interessa a um governo de Frente Ampla, que busca assegurar ao capital financeiro o mais irrestrito sufocamento da luta de classes. Em meio às greves das universidades e institutos federais, ou a rebelião dos professores do Ceará contra a burocracia petista, a radicalização do movimento estudantil brasileiro no espírito sessentaoitista, em aliança com os professores, poderia desenvolver tendências antiburocráticas e de autoorganização pela base que colocassem em perigo a ordem pela “paz social” que o terceiro governo Lula mantém com o grande capital nacional e estrangeiro. Poderia também exercitar ensaios políticos que ameaçassem o controle do PT sobre aquilo que se entende por um ideário de esquerda no país, um passo chave para a tarefa histórica da sua superação por um programa socialista e revolucionário.

Na Argentina, o movimento estudantil está mostrando capacidade de enfrentamento nas ruas contra Javier Milei e os cortes na educação pública. Aliados com professores, personalidades da cultura e distintos segmentos da classe trabalhadora, desafiaram o governo com uma manifestação histórica de mais de 1 milhão de pessoas em defesa da universidade pública. As memórias do Cordobazo, o “ensaio geral” insurrecional de 1969 contra a ditadura de Onganía, em que os estudantes se aliaram aos trabalhadores, surge nas ruas. Conta com o apoio irrestrito da esquerda organizada na Frente de Esquerda e dos Trabalhadores, cujas referências parlamentares como Myriam Bregman, Nicolás Del Caño, Christian Castillo e Alejandro Vilca, do PTS, e Romina del Plá, do PO, vem enfrentando duramente todo o conjunto do projeto de ajustes de Milei dentro do Congresso e impulsionando a luta de classes extraparlamentar. O contraste é categórico com a política do governo Lula Alckmin, de passivização, despolitização e desmobilização, obstáculos centrais no combate contra a extrema direita.

Lula expressa com sua política uma oposição direta à radicalização política da juventude estudantil pela Palestina e contra a extrema direita. Os acampamentos estudantis e seus enfrentamentos físicos com a polícia e os sionistas escancaram a farsa da política lulista. É um atestado, sutil mas simbólico, da ojeriza à luta de classes inerente ao DNA de Lula e do PT, garantidores da governabilidade capitalista em um país devastado pela obra econômica do golpe institucional e do bolsonarismo. Isso deve levar a um desmanche de todas as ilusões na conciliação reformista diante de um tema internacional vital como o da Palestina.

A juventude estudantil brasileira precisa tomar a causa palestina nas suas mãos, inspirada no movimento estudantil norte-americano e internacional. As burocracias das organizações de massas dos estudantes, como a UNE e a UBES, sequer promoveran discussões nas estruturas em rechaço à repressão policial aos acampamentos universitários nos EUA e na França, menos ainda mostram qualquer disposição a organizações ações pela base dos estudantes em defesa da Palestina. Sua integração ao governo de conciliação Lula-Alckmin implica o compartilhamento dos seus objetivos, e do grande receio à radicalização estudantil. A batalha pela Palestina é um princípio de honra para a geração marcada pelo genocídio em Gaza, assim como a geração de 68 havia sido marcada pela luta contra a Guerra do Vietnã.

Um movimento estudantil independente precisa romper todos os laços com a conciliação petista. Isso se prova real também em termos de solidariedade internacional aos palestinos, que exige a ruptura imediata e incondicional de todas as relações comerciais e diplomáticas que Lula mantém com Israel, a abolição da compra de armas israelenses e a entrega do petróleo brasileiro aos arquitetos do genocídio. Um programa assim está dotado depende de uma luta política aberta contra um governo que se negou, nos últimos sete meses de limpeza étnica em Gaza, de passar das palavras aos atos. É necessário acolher o espírito de radicalização e revolta política dos estudantes pró-palestina que tanta desconfiança e receio gera num governo alheio às transformações na subjetividade da juventude, e transformá-lo num grande movimento internacional em defesa da autodeterminação dos palestinos, na luta por uma Palestina livre, operária e socialista, do rio ao mar.

A luta anti-imperialista e anti-sistêmica nos Estados Unidos em defesa dos palestinos é um enorme fator de moralização para a esquerda global, e um ponto de apoio para a construção de partidos revolucionários a nível nacional e internacional. Como alentava Trótski, “adquirir conhecimento e experiência e ao mesmo tempo não dissipar o espírito lutador, o auto sacrifício revolucionário e a disposição para ir até o final, é a tarefa da educação e da auto educação da juventude revolucionária”. Essa disposição ao espírito lutador e ao auto sacríficio, junto ao estudo teórico e científico, é uma condição para aproveitar esse novo ciclo que se abre.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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