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Guerra na Ucrânia | A um ano do início de uma guerra reacionária

Além dos discursos de alguns sobre “liberdade e democracia”, outros sobre a luta contra o “nazismo ucraniano”, esta guerra decididamente não é dos trabalhadores e das classes populares. Adotar uma política de anti-imperialismo e independência de classe é mais fundamental do que nunca.

domingo 26 de fevereiro de 2023 | Edição do dia

Um ano após o início da guerra na Ucrânia e da invasão russa, o mundo mudou muito. Vivemos agora em um mundo mais beligerante, com o aumento da militarização de diversos Estados, especialmente os imperialistas, em um contexto de maior tensão entre as potências mundiais. A própria guerra teve consequências terríveis para milhares de pessoas que perderam a vida e para muitos milhões mais que tiveram que fugir de suas cidades e até de seus países. Mas os efeitos não param por aí.

A nível económico, assistimos à interrupção do abastecimento de gás e petróleo russos e de outras matérias-primas, às reduções da produção agro-alimentar (tanto a Rússia como a Ucrânia são grandes exportadores de produtos agrícolas), entre outros, que aprofundaram e alimentaram a inflação a nível internacional. A consequência direta disso não é apenas a queda do poder aquisitivo de milhões e milhões de trabalhadores no mundo. De fato, como consequência da guerra, milhões de pessoas estão ameaçadas de morrer de fome. E a situação promete piorar à medida que as potências imperialistas seguem uma política que alimenta o belicismo, levando a uma nova escalada militar.

Uma guerra ainda profundamente reacionária

Quanto ao caráter da guerra em si não houveram alterações profundas: continua sendo uma guerra reacionária, opondo dois campos que defendem os interesses das classes exploradoras. Se por um lado temos o regime de Putin que lançou uma guerra para subjugar a Ucrânia aos interesses do capitalismo russo, por outro lado não encontramos simplesmente um campo que defende a autodeterminação deste país. De fato, vimos, desde as primeiras horas da guerra, todas as potências imperialistas ocidentais monopolizarem a causa ucraniana. E isso nada tem a ver com seu suposto compromisso com a autodeterminação dos povos. Pelo contrário, as potências imperialistas da OTAN, lideradas pelos Estados Unidos, viram (e ainda veem) nesta guerra uma forma de enfraquecer a Rússia mas também a China, da qual Moscou se tornou um dos principais parceiros. Desta forma, não nos encontramos em uma situação em que as potências imperialistas, por puro oportunismo, apoiariam parcialmente os inimigos de seus concorrentes. Nesta guerra, o “lado ucraniano” foi totalmente dominado e de alguma forma “fundido” com os interesses da OTAN.

Durante este ano de conflito, vimos como Washington e seus aliados financiaram, armaram, treinaram o exército ucraniano e forneceram informações básicas, mas também participaram do comando da guerra e co-dirigim as operações. A ajuda militar e financeira ocidental obviamente implica a submissão do exército ucraniano às decisões ocidentais (Joe Biden, por exemplo, recusou-se a dar permissão ao exército ucraniano para avançar em direção à Crimeia). Portanto, o “campo ucraniano”, com uma liderança abertamente pró-OTAN e pró-UE, é também um campo reacionário, muito longe de falar de liberdade e autodeterminação. Por todos estes elementos consideramos que o campo ucraniano, apesar de lutar contra a agressão russa, não está travando uma “guerra justa” no sentido que Lênin deu a este termo quando falava de guerras anticoloniais ou de libertação nacional.

Precisamente, em termos de autodeterminação, a Ucrânia está parcialmente ocupada pelo exército russo e a outra parte do país é bombardeada todos os dias. A Ucrânia, portanto, parece ter se afastado de fato da influência russa, o que por si só constitui um golpe para a estratégia russa. Mas isso não significa que a Ucrânia tenha caminhado para qualquer forma de independência real. Pelo contrário, hoje o país depende das potências imperialistas ocidentais como nunca esteve da Rússia ou de qualquer outra potência. Para ilustrar essa dependência, basta imaginar a situação em que os imperialistas decidiram interromper seu apoio financeiro e militar. É claro que a Ucrânia duraria apenas alguns dias do ponto de vista militar, mas também econômico e político. Ou seja, o governo de Volodymyr Zelensky, longe de conduzir o país à autodeterminação, conduziu-o a outra situação de submissão e dependência quase total, desta vez face às potências ocidentais. Inevitavelmente, essa submissão só aumentará, possivelmente aumentando mesmo com o fim do conflito.

Do ponto de vista político, são as forças reacionárias que sairão fortalecidas, seja sob a bandeira do nacionalismo, seja sob a bandeira do liberalismo. E isso não apenas na Ucrânia, mas em toda a região. Essas correntes manipulam a história de opressão na Ucrânia e em outros países do Leste Europeu para inflamar sentimentos nacionalistas e reforçar alternativas políticas hostis aos interesses da classe trabalhadora e das classes populares. É assim que ocorre uma reaproximação geopolítica e militar entre os governos ucraniano e polonês. Em outras palavras, a guerra na Ucrânia é uma oportunidade para correntes políticas e governos ultrarreacionários resgatarem uma nova imagem muito mais aceitável, e até elogiada, no Ocidente. Não esqueçamos que o governo polonês, assim como o de Viktor Orban na Hungria, foi muito criticado pelas principais capitais europeias por causa de seu "autoritarismo". Hoje podemos observar como o governo polonês quase se tornou "mainstream" graças à sua posição em relação à Rússia e sua política de assistência militar à Ucrânia e recepção de refugiados (9 milhões de ucranianos retornaram à Polônia desde o início da guerra). Quanto a Orban, suas posições defendendo a “neutralidade” lhe renderam ainda mais pressão das potências imperialistas europeias.

A Nova Importância dos Estados da Europa Central e do Leste

Ao nível da União Europeia (UE) e das questões de defesa, a guerra na Ucrânia deu uma nova importância aos Estados da Europa Central e de Leste. O caso da Polônia e dos países bálticos é o mais notável devido à sua política hostil em relação à Rússia durante anos. A Polônia está considerando construir o exército mais poderoso da UE. No entanto, as análises que preveem uma mudança no centro de gravidade do poder da UE de oeste para leste nos parecem um exagero interessado. Com efeito, a Polônia, os países bálticos e os outros Estados da Europa Central e Oriental continuam a ser largamente dominados pelas potências imperialistas europeias do ponto de vista político e econômico. A Polônia, por exemplo, pode aspirar a se tornar uma potência regional, mas sua economia ainda é muito dependente do capital alemão e europeu.

No entanto, como já dissemos, os Estados da Europa Central e do Leste ocupam verdadeiramente uma nova posição a nível europeu em matéria de defesa. Isso se explica em grande parte pelo fato de que é por meio desses países e de sua integração na OTAN que os Estados Unidos fortalecem sua influência e liderança no “mundo ocidental” europeu. Não é por acaso que Joe Biden, em sua turnê européia pelo aniversário da eclosão da guerra, quis se encontrar com os países do bloco "Nove de Bucareste", formado por nove países da Europa Central e do Leste pertencentes à OTAN.

Um reforço considerável do Tratado Norte-Atlântico

Com efeito, embora falemos de “Ocidente” e apesar da partilha de orientações gerais entre as potências imperialistas ocidentais, existem divergências de interesses mais ou menos fortes em relação aos apoios. A presença da OTAN na Europa sempre foi um meio para os Estados Unidos garantirem sua hegemonia no continente. Na véspera da guerra na Ucrânia, a OTAN estava em estado crítico. O resultado da guerra desencadeada por Putin foi fortalecer os laços internos da Aliança do Atlântico Norte e assim fortalecer a hegemonia norte-americana na Europa, não sem contradições. Um dos efeitos notáveis ​​desse fortalecimento da OTAN foi o rearmamento e o aumento dos orçamentos militares de potências como Alemanha e França, entre outras. Nesta mesma dinâmica, países próximos da OTAN mas oficialmente “neutros” como a Finlândia e a Suécia solicitaram a sua integração na aliança.

Esse alinhamento dos imperialistas europeus com os Estados Unidos resultou na imposição de novas e mais duras sanções contra a Rússia; mas também pela submissão total à política armamentista de Washington, enviando armas cada vez mais sofisticadas e eficientes para a Ucrânia. Embora essa política muitas vezes vá contra os interesses de médio e longo prazo das potências da UE, o medo de se desentender com Washington em um momento em que a Rússia trava uma guerra em solo europeu empurra os europeus para trás dos Estados Unidos. Este é particularmente o caso da Alemanha, o imperialismo mais afetado nesta situação. Embora ela tenha sido criticada pela demora em fornecer armas ao exército ucraniano, seu governo deixou esse estigma para trás e agora é o segundo país em termos de ajuda à Ucrânia. No entanto, Berlim não toma nenhuma decisão sem que Washington tenha tomado uma decisão na mesma direção, como vimos com o exemplo dos tanques Leopard.

A UE, por sua vez, também iniciou um processo doloroso (e caro) para reduzir sua dependência do gás russo. O gás russo barato foi uma das chaves para o sucesso industrial (e político) alemão. A guerra na Ucrânia abalou as bases econômicas da principal potência europeia, ao mesmo tempo que favorece as exportações de GNL de outras potências como os próprios Estados Unidos, mas também da Noruega. Sem dúvida, o evento que marca mais graficamente esta nova situação foi a espetacular sabotagem dos oleodutos Nord Stream 1 e 2. Nas últimas semanas, o respeitado jornalista americano Seymour Hersh publicou um longo relatório no qual afirma em termos inequívocos que os Estados Unidos estavam por trás da sabotagem. No momento, essas afirmações, que permanecem como alegações, não foram levadas em consideração por vários motivos. No entanto, o assunto é delicado e constitui um verdadeiro "calcanhar de Aquiles" para a unidade da OTAN, pois é um ato de guerra não só contra a Rússia, mas contra a própria Alemanha.

Um recrudescimento reacionário dentro da Rússia

Quanto à Rússia e Putin, a guerra foi um fiasco no que diz respeito ao seu primeiro objetivo visualizado na prática: a queda de Kiev. O exército russo perdeu muito prestígio no campo de batalha ucraniano. Putin foi forçado a se concentrar no leste do país e tentar expandir seu controle no Donbass e em outras partes do sudeste da Ucrânia. Hoje, depois de vários contratempos, o exército russo parece estar na ofensiva e vários analistas indicam que Moscou prepara uma nova ofensiva para a primavera (março-junho). Para além do sucesso ou não desta possível ofensiva, até agora a guerra na Ucrânia obrigou o regime de Putin a realizar uma mobilização parcial da população (300.000 pessoas!), e mesmo que a oposição à guerra tenha sido pouco expressa, vimos o reforço de uma ala dura do regime, de tipo nacionalista, pressionando à direita Putin. Essa pressão também se reflete em uma política mais reacionária no plano interno: permeado por direcionar discursos contra minorias étnicas e, em meio à guerra, o governo russo decidiu endurecer as leis repressivas contra as pessoas LGBT.

O discurso do Kremlin para explicar a eclosão da guerra era centrado uma resposta à política agressiva da OTAN. Na mídia ocidental, decidiu-se zombar dessas declarações, poucos analistas as levam a sério. No entanto, mesmo que essas declarações revelem o cinismo tão característico de Putin, a realidade é mais complexa do que a apresentada pelos ocidentais. Ao contrário do que se fala de uma “guerra não provocada”, existe de fato uma política agressiva de cerco à Rússia levada a cabo pela OTAN há anos. Basta observar um mapa com os novos membros da OTAN desde a dissolução da URSS. As potências imperialistas ocidentais construíram seus próprios “enclaves” em torno da Rússia. Essa política se aprofundou após o movimento Maidan na Ucrânia e a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Desde então, Kiev tem se aproximado inquestionavelmente política, econômica e militarmente da OTAN e da UE, ainda que com contradições e atritos significativos. A guerra na Ucrânia e a política de opressão de Putin são uma resposta reacionária a essa realidade. No entanto, o resultado da guerra de Putin foi o fortalecimento da OTAN e uma aproximação ainda maior entre a Ucrânia e os imperialistas ocidentais. Deste ponto de vista, pode-se dizer que a Rússia de alguma forma já sofreu uma derrota em pontos estratégicos importantes na Ucrânia: a Ucrânia tornou-se um estado próximo ao Ocidente, ultramilitarizado e hostil à Rússia e cuja população também percebe Moscou como uma força inimiga.

Quais perspectivas?

Para a continuação do conflito, a opção atualmente preferida pelas potências ocidentais parece ser fornecer o máximo possível de armamentos à Ucrânia, mesmo que isso signifique precipitar uma perigosa escalada com a Rússia. Isso não significa que a única opção para o Ocidente seja impor uma derrota total à Rússia e derrubar Putin. Mas mesmo no caso de negociações de paz, a relação de forças no terreno militar é decisiva. O fato é que a “escalada sem fim” pode se tornar um caminho sem volta para um confronto direto muito perigoso e catastrófico com a Rússia. E tanto mais que Putin acaba de anunciar a suspensão da participação da Rússia em um programa de controle da proliferação de armas nucleares com os Estados Unidos. Em outras palavras, a ameaça de conflito nuclear continua sendo uma perspectiva que deve ser levada a sério.

Neste sentido, uma questão importante reside na resposta da OTAN na possibilidade, considerada baixa hoje, de um avanço russo em direção a Kiev. De fato, a guerra na Ucrânia não é mais um assunto ucraniano, mas um assunto internacional, e esse aspecto é reforçado à medida que a guerra avança. Além disso, muito progresso da Rússia abrindo a possibilidade de uma derrota para Kiev poderia provocar uma resposta direta da OTAN. Esta é uma possibilidade que também considera o analista internacional norte-americano George Friedman: “se as defesas da Ucrânia ruírem, os Estados Unidos terão de tomar decisões rápidas (ou implementar rapidamente as decisões já tomadas). Eles poderiam enviar forças para a Ucrânia para tentar forçar os russos a recuar, ou poderiam recusar o combate. O engajamento direto das tropas russas com uma força limitada pode ser um engajamento longo, doloroso e incerto. Mas aceitar o resultado abre as portas para a Rússia reorganizar a Europa novamente. Uma segunda Guerra Fria seria um resultado necessário, mas indesejado. Fortalecer a Ucrânia antes de seu colapso seria, portanto, a opção menos arriscada e menos custosa”.

Os cenários são múltiplos e não podemos discuti-los todos aqui. No entanto, tudo indica que uma rápida abertura das negociações e o fim dos combates não é a perspectiva mais provável. As previsões mais otimistas estimam que essas negociações só possam começar dentro de alguns meses, ou seja, após uma possível ofensiva russa e uma provável contra-ofensiva ucraniana. Ou seja, as populações locais ainda vão sofrer muito antes do fim da guerra, mesmo segundo os mais otimistas.

O desafio da política independente da classe trabalhadora

É por esta razão que continuamos a considerar que a classe trabalhadora e as classes populares não só na Ucrânia e na Rússia, mas em todo o continente devem adotar uma posição resolutamente anti-imperialista e de independência de classe. Ou seja, uma posição independente dos interesses do regime de Putin, mas também dos interesses dos imperialistas ocidentais. A maneira mais eficaz de acabar com a guerra continua sendo a mobilização independente da classe trabalhadora russa contra o regime reacionário de Putin, deixando a guerra quebrar a passividade das massas e estimulá-las à ação. No entanto, tal perspectiva não pode ser acompanhada de uma aliança com forças pró-imperialistas, fortalecendo as potências ocidentais e impondo mais sofrimento aos explorados e oprimidos em todos os cantos do mundo.

É por isso que, apesar da guerra, os interesses dos trabalhadores ucranianos não são os de Zelensky. Pelo contrário. Este último nunca se esqueceu de travar uma guerra contra os direitos dos trabalhadores, apesar da guerra. A classe trabalhadora ucraniana não deve ter ilusões sobre o governo de Zelensky e se organizar de forma independente tanto quanto possível em uma situação de guerra. Nos Estados imperialistas, o movimento operário deve exigir, além da retirada das tropas russas da Ucrânia, a dissolução da OTAN, uma aliança imperialista reacionária.

A classe trabalhadora e os setores populares continuam sendo os principais afetados pela guerra. Na Ucrânia, são os setores da população mais diretamente afetados pela guerra, pela morte, pela destruição, pelo exílio forçado. Na Rússia, as classes populares e as minorias étnicas são as principais vítimas da mobilização de Putin, sem contar as dificuldades econômicas, produzidas em parte pelas sanções antipopulares impostas à Rússia pela UE e pelos Estados Unidos. Nos países imperialistas, os trabalhadores já estão pagando do próprio bolso o aumento dos preços de todas as mercadorias essenciais. É por isso que vemos cada vez mais movimentos de protesto direto ou indireto contra a inflação: no Reino Unido, em Portugal ou na França, onde a mobilização massiva contra a reforma da previdência também expressa um sentimento de perda diante dos baixos salários e da inflação, mas também na Espanha, entre outros.

Essas mobilizações populares e da classe trabalhadora, mesmo que não apontem diretamente para a guerra como causa de inquietação social, constituem um ponto de apoio justamente para o desenvolvimento de uma posição de classe independente contra a guerra. Uma mobilização contra a guerra que pode se tornar um trampolim para ir mais longe no questionamento do capitalismo. Porque a realidade é que na era imperialista a questão da autodeterminação nacional, como na Ucrânia, está intrinsecamente ligada à luta pelo socialismo. Como já expressamos no início da guerra, os trabalhadores, a juventude e as classes populares não devem escolher “o mal menor”, ​​entre Putin e a OTAN. Continuamos a considerar o anti-imperialismo e a independência de classe fundamentais para fornecer uma saída verdadeiramente progressiva e revolucionária para os horrores da guerra.

Traduzido do original Ukraine. A un an du début d’une guerre réactionnaire por Caio Silva Melo




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