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Análise | Apoiar a resistência palestina não significa apoiar a estratégia e os métodos do Hamas

Depois da ofensiva palestina no último sábado, o governo e a imprensa francesa lançaram uma campanha para criminalizar os apoiantes da causa palestina. A manobra consiste em apresentar o apoio ao direito à resistência do povo palestino como apoio político ao Hamas e aos seus métodos.

sexta-feira 13 de outubro de 2023 | Edição do dia

Israel é um Estado colonial criado do zero em 1948 pelas potências imperialistas, com a cumplicidade da burocracia stalinista da URSS, que pretendia aproveitar a divisão da Palestina para ganhar novas zonas de influência. Esse projeto imperialista de criação de um estado judeu baseou-se nas correntes sionistas judaicas existentes, ativas desde o final do século XIX, muitas vezes encorajadas por líderes sionistas não-judeus que transmitiam ideias anti-semitas: criar um estado judeu na Palestina para ajudar a legitimar a expulsão de Judeus da Europa e dos Estados Unidos. Alguns judeus não-sionistas chegaram a denunciar o plano de criação de Israel como forma de criar um “gueto internacional”.

Contudo, gradualmente, o projecto sionista de criação de um Estado judeu assumiu outro significado: após a Segunda Guerra Mundial, Israel seria um enclave colonial ao serviço da preservação dos interesses imperialistas, ao mesmo tempo que desempenhava o papel de polícia dessas potências na região. Embora a população judaica representasse apenas 30% da população do território palestino, a maior parte das terras foi conquistada com base na limpeza étnica das populações palestinas pelas milícias sionistas. E desde sua criação o Estado de Israel só conquistou novas partes do território palestino através de guerras, ofensivas militares e expulsões de palestinos, em 1967, em 1973 e desde o final da década de 1990.

Os palestinos têm o direito de lutar contra o jugo colonial do Estado de Israel

Hoje, os territórios palestinos não têm continuidade territorial e são totalmente dependentes de Israel, que exerce um controle quase total sobre serviços vitais como a água potável, a eletricidade e até a ajuda humanitária internacional. A população palestina vive numa situação clara de opressão colonial e de apartheid, tal como denunciam ONGs reconhecidas internacionalmente, como a Anistia Internacional.

A isso soma-se que a Faixa de Gaza está sob bloqueio desde 2007, na sequência da tomada do poder pelo Hamas no território, e que sofreu seis guerras durante esse período. Desde o ano 2000, 10.500 palestinos morreram devido a intervenções militares israelenses ou ações policiais. Mesmo nesse contexto, apesar do enorme sofrimento e humilhação, o povo palestino nunca deixou de resistir e de lutar desde a criação do Estado de Israel.

O direito à resistência e à luta contra as agressões e ataques do colonialismo israelense é para nós indiscutível. Neste sentido, para além das nossas divergências políticas com a liderança palestina, defendemos incondicionalmente esse direito, por todos os meios ao seu dispor numa situação tão complexa, incluindo a luta armada. Dito isso, denunciamos a associação entre a resistência palestina e o terrorismo. Na verdade, consideramos que, no contexto da guerra permanente na Palestina, o Hamas deve ser considerado como uma organização beligerante e não como uma “organização terrorista”.

Esse nome é simplista e tende a confundir a natureza dessa organização com outras como o Daesh ou a Al-Qaeda. Politicamente, como salienta o jornalista israelense Larry Derfner, o Hamas é muito diferente destas organizações. O Hamas foi levado ao poder após um processo eleitoral e a sua base popular é muito real. Ele não é de forma alguma um pequeno grupo isolado de todos os vínculos com a população. Além disso, embora o Hamas governe Gaza de forma autoritária, ao contrário do Daesh, as minorias cristãs vivem no território que controla.

Recusar a qualificação de “terrorismo” não significa, portanto, relativizar e muito menos justificar os crimes do Hamas contra civis palestinos e israelenses, mas evitar que a leitura da situação na Palestina seja tendenciosa. É por esta razão que acadêmicos como Jean-Paul Chagnollaud defendem tal posição. Por sua vez, escreveu o jornalista Alain Gresh recorda num editorial recente: “lembremos, mais uma vez, que uma série de organizações terroristas, ridicularizadas ao longo da história, passaram do estatuto de párias ao de interlocutor legítimo. O Exército Republicano Irlandês (IRA), a Frente de Libertação Nacional da Argélia, o Congresso Nacional Africano (ANC) e muitos outros foram por sua vez descritos como "terroristas", uma palavra que visava despolitizar a sua luta, apresentada como um confronto entre o Bem e o Mal”.

As definições simplistas mobilizadas pelo governo israelense e transmitidas por todos os governos e meios de comunicação pró-imperialistas visam conferir uma aparência de legitimidade ao Estado israelense para travar uma guerra total contra a população palestina sob o pretexto da "luta contra o terrorismo", e permitir que os estados imperialistas ou alinhados com estes criminalizem qualquer apoio à luta palestina. O primeiro responsável por toda a violência é a potência colonial de Israel. As atrocidades cometidas pelo exército israelense, ou pelos colonos que protege, contra os palestinos em Gaza, na Cisjordânia ou no próprio interior de Israel, estão na origem de toda a violência cometida pela resistência palestina. Isto é precisamente o que os governos e o coro dos meios de comunicação social a serviço dos interesses imperialistas procuram obscurecer para melhor impedir qualquer mobilização em apoio à Palestina e para normalizar a situação colonial no Médio Oriente.

As estratégias do Fatah e do Hamas em questão

Durante a sua luta pela libertação nacional e pelo seu direito à autodeterminação, o povo palestino teve, e ainda tem à sua frente, organizações com as quais temos diferenças profundas e radicais quanto ao seu projeto político, à sua estratégia e aos seus métodos de ação.

A resistência palestina nem sempre teve organizações islâmicas à sua frente. A OLP (Organização para a Libertação da Palestina), uma frente de várias organizações palestinas, incluindo o Fatah, tem sido durante muito tempo a organização hegemônica da causa palestiniana, embora hoje se encontre numa crise total devido ao seu papel na assinatura dos Acordos de Oslo. Sob a liderança de Yasser Arafat, a assinatura destes acordos serviu para vender a causa palestina, o direito de regresso e a criação de um Estado palestino e transformá-lo num compromisso vago que resultou na criação da ficção da Autoridade Palestina sob supervisão israelense. Organização nacionalista de esquerda, com retórica por vezes socialistizante, a OLP acabou por capitular, ao longo do tempo, perante o colonialismo israelense.

Ao lado da OLP, a partir da década de 1980, diversas organizações político-religiosas ligadas em particular à Irmandade Muçulmana consolidaram a sua base. A sua audiência cresceu quando as lideranças nacionalistas tradicionais e a esquerda palestina estavam perdendo terreno devido às suas políticas. Israel incentivou e ajudou financeiramente o surgimento de organizações islâmicas como o Hamas, na esperança de enfraquecer a influência da OLP e de tendências mais radicalizadas à esquerda. O Hamas conseguiu, ao longo do tempo, estabelecer-se à frente de Gaza em 2006 e desde então tem tentado expandir a sua influência na Cisjordânia. No entanto, tal como o Fatah, e apesar de uma política menos abertamente conciliatória, a estratégia, os objetivos políticos e os métodos de luta do Hamas não são capazes de responder à questão da autodeterminação palestina.

Como escrevemos há alguns anos, “ao mesmo tempo que se opõe à ocupação sionista, [o Hamas] aposta em alianças com governos muçulmanos burgueses, como o Irã ou o regime do Qatar, que constituíram a vanguarda contra-revolucionária contra a Primavera Árabe, para quem o movimento palestino é uma moeda de troca nas suas transacções comerciais com o imperialismo. O programa do Hamas para construir um Estado islâmico é um projeto político reacionário”.

Esse caráter burguês e reacionário do Hamas não deixa de ter consequências na sua estratégia, nos seus métodos e nas ações que leva a cabo contra a ocupação israelense. Em 7 de Outubro, alguns dos alvos dos vários grupos militares que romperam as linhas israelenses eram objetivos militares (postos de controle, quartéis, posições das FDI, etc.) ou considerados como tal (assentamentos construídos em terrenos anexados depois de 1967). Isto deu origem às cenas de celebração que vimos, simbolizadas pela destruição do muro que separa Gaza dos territórios ocupados e pela neutralização ou ocupação temporária de posições militares inimigas recapturadas numa escala nunca vista desde 1973. As imagens tiveram um enorme impacto nas ruas dos países árabes onde as pessoas consideram a causa palestina como sua própria causa. Mas as incursões também deram origem a abusos contra as populações civis ali presentes, nos territórios ocupados nos limites de Gaza, que não poderiam, em caso algum, ser equiparados a objetivos militares ou políticos.

Esse método de atingir a população civil israelense é totalmente reacionário e prejudicial para a causa palestina: disparar sobre civis numa festa não é apenas um crime que denunciamos, como não contribui em nada para impedir a opressão israelense. Pelo contrário, embora Netanyahu e seu governo tenham se encontrado numa situação difícil nos últimos meses, contestados por uma parte da opinião pública israelense, tais ações só podem favorecer a reconstrução de uma unidade nacional sionista por trás do governo, como sempre aconteceu, infelizmente, desde 1948. Isso permite aos que estão no poder hoje legitimarem represálias brutais contra os palestinos e distancia ainda mais qualquer perspectiva de unidade de classe entre trabalhadores palestinos e judeus.

Deve se acrescentar que a política militar e repressiva do Hamas em Gaza impede o desenvolvimento da auto-organização dos trabalhadores e das massas palestinas na sua luta contra o apartheid israelense. Nos últimos anos, o Hamas tem, por exemplo, reprimido sistematicamente as mobilizações sociais contra a pobreza na Faixa de Gaza, sejam movimentos populares que denunciam a corrupção das autoridades, as desigualdades na faixa ou o papel da organização numa distribuição clientelista de ajuda humanitária, ou greves de funcionários públicos locais que protestam contra salários não pagos e atrasados. Neste sentido, o Hamas desempenha o papel de obstáculo à construção de mobilizações de massas, mas também ao surgimento de organizações operárias e socialistas na Palestina, da mesma forma que o Fatah. Assim, pelos seus objetivos políticos, pelos seus métodos e pelas suas estratégias, tanto o Fatah como o Hamas são os antípodas daquilo que defendemos.

Por uma estratégia operária e revolucionária para a libertação nacional da Palestina

Como revolucionários da tradição de luta trotskista, defendemos o direito à autodeterminação nacional da Palestina, que foi pisoteado pelos imperialistas e pelos seus cúmplices na região com a criação do Estado de Israel, com base numa base limpeza étnica dos palestinos, denunciada por historiadores israelenses como Ilan Pappé. A concretização desse projeto sionista, que reivindica fraudulentamente a representação de todos os judeus em todo o mundo, causou uma profunda divisão entre as populações palestinas muçulmana e judaica, mas também da mesma forma as minorias árabes ou cristãs que habitam a região há séculos.

A Nakba, a grande limpeza étnica que levou à criação do Estado de Israel, as sucessivas guerras, expulsões e deportações, e a apropriação de terras palestinas pelo Estado de Israel só agravaram essa situação até hoje. Atualmente, os árabes nos territórios palestinos estão sujeitos a um verdadeiro sistema de apartheid e vivem sob ocupação militar. Os palestinos em Israel são cidadãos de segunda categoria ou pior, para não falar dos milhões de palestinos que vivem em campos de refugiados em países vizinhos e cujo direito de regresso é negado.

Para garantir os direitos nacionais dos palestinos, lutamos por um Estado laico, socialista e operário em toda a Palestina histórica; um estado em que os palestinos, muçulmanos, cristãos e judeus, ou atualmente os cidadãos israelenses, possam viver juntos, em paz, sem opressão ou violência. Isso envolve atacar as bases materiais da opressão e exploração dos trabalhadores palestinos, mas também das massas trabalhadoras judaicas: a propriedade privada e as classes capitalistas de Israel, mas também da Palestina, bem como os interesses das potências imperialistas, principais responsáveis ​​pelo drama que dura há 75 anos na região, para não falar da cumplicidade da burguesia árabe que, para além da sua posição retórica de apoio à causa palestina, continua um processo de traição para, hoje, buscar normalizar suas relações com Tel Aviv.

É por isso que lutamos pela mais profunda unidade entre trabalhadores, juventude explorada e oprimida, os camponeses e as classes populares da Palestina e todo o movimento operário do oriente médio e próximo, mas também com os trabalhadores de Israel dispostos a quebrar com o sionismo, do qual também eles são, em última análise, vítimas, o que constituiria um passo a frente para pôr fim a essa ideologia reacionária.

Esse programa e estratégia se opõe totalmente à existência de um Estado colonialista, teocrático e de supremacia judaica, como é atualmente o caso de Israel. Mas a nossa perspectiva também se opõe às perspectivas ilusórias e reacionárias da criação de dois Estados ou mesmo da criação de um Estado muçulmano teocrático no lugar de Israel ou mesmo simplesmente nos territórios palestinos de antes de 1967, como é reivindicado pela ala pragmática da liderança do Hamas e que se basearia numa lógica de purificação e/ou opressão dos opositores dos islamitas. O que é certo é que a primeira condição para a coexistência pacífica entre árabes e judeus é o fim do sistema colonial e de apartheid de Israel. E para nós isso só é possível lutando por uma Palestina livre, trabalhadora e socialista. Um projeto que não é o do Hamas e dos seus aliados islâmicos. Mas um projecto que implica, em princípio, a plena solidariedade com a causa palestina, com o direito ao regresso dos palestinos, à sua autodeterminação e à resistência contra a opressão e ocupação sionista.




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