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Ecologia e Comunismo

Esteban Mercatante

Ecologia e Comunismo

Esteban Mercatante

A maneira irrefreável na qual o capitalismo deslocou o metabolismo socionatural tornou-se talvez uma das mostras mais contundentes da necessidade de superar esse modo de produção. Sua continuidade tornou-se uma ameaça para a sobrevivência da humanidade e de muitas outras espécies. A sequência de eventos disruptivos, muitos deles vinculados à mudança climática, mas também a outros transtornos ambientais produzidos pela dinâmica desequilibrada da acumulação, colocam com urgência a necessidade de ativar os “freios de emergência”. A evidência de que não há um “planeta B”, e que o único que temos está sendo devorado pelo capitalismo de maneira cada vez mais acelerada, aproxima setores, especialmente a juventude, de posições anticapitalistas críticas. Os projetos do “capitalismo verde”, que afirmam a possibilidade de uma transição energética sob o comando dos empresários e que afirmam que é possível direcionar esse sistema para um caminho “sustentável” em termos ambientais, estão apoiados em pés de barro. Apesar do êxito cada vez maior de alguns setores com negócios rentáveis em energias “limpas”, estas caminham de mãos dadas com o desenvolvimento de novos desastres ambientais como, por exemplo, o gerado pelo extrativismo do lítio (que se desenvolve hoje com métodos altamente invasivos e que produzem numerosas consequências negativas). Ao mesmo tempo, o uso de energias de transição não significou uma diminuição na utilização de hidrocarbonetos, mas sim sua adição para aumentar a energia total consumida.

É este cenário que explica o dinamismo do ecossocialismo, uma das vertentes da crítica anticapitalista de grande vitalidade na atualidade. Não se trata de uma corrente homogênea, pelo contrário, encontramos posições divergentes sobre como devem ser respondidos os legados da crise ecológica que o capitalismo deixa e até onde se deve apontar para uma sociedade pós-capitalista, ou mais precisamente, comunista. Existem duas posições, que tendem a polarizar o debate no campo ecossocialista. Por um lado, aqueles que apontam para o decrescimento, e, por outro lado, os “ecomodernistas” que depositam um otimismo excessivo nas soluções tecnológicas para responder à crise ecológica e continuar com o aumento generalizado da produção e do consumo. Em contraposição a essas posições, propomos algumas coordenadas para pensar a perspectiva comunista diante da necessidade de responder ao transtornado metabolismo socionatural agravado diariamente pelo capitalismo.

Luxo totalmente automatizado?

Para a perspectiva sobre o consumismo que poderíamos chamar de ecomodernista, a resposta está na aceleração do desenvolvimento tecnológico. O diagnóstico central é que a inovação no capitalismo se encontra limitada no sentido de desenvolver todas as suas potencialidades, porque é cada vez mais difícil se expressar em modelos de negócios rentáveis que justifiquem os investimentos. Este é o diagnóstico de Aaron Bastani, autor de Comunismo de luxo plenamente automatizado. Liberar o desenvolvimento tecnológico dessas travas que as relações de produção capitalista lhe impõe permitiria, na opinião de Bastani, automatizar plenamente os processos produtivos. Mas essa automação comunista seria compatível com a resolução dos problemas ecológicos. Abundância (entendida como acesso a bens sem limite à vista) e sustentabilidade podem caminhar de mãos dadas graças a numerosas mudanças, grandes e pequenas, que em alguns casos já estão em andamento, mas que poderiam ser aceleradas sob novas relações de produção comunistas. Essas iniciativas vão desde a introdução em grande escala de energias renováveis, à implementação de melhores métodos de isolamento para manter as temperaturas sem precisar de aquecimento, ou aproveitar melhor o calor solar, passando pela substituição da pecuária em grande escala para a alimentação de consumo de carne sintética. Mas Bastani não para por aí. Como a automatização requer materiais, e especialmente fará falta a capacidade de armazenamento de energia, imagina que a mineração espacial (a extração de metais dos asteroides) pode oferecer respostas. Também devemos imaginar, embora não deixe isso tão claro, que o espaço pode ser o destino para o lixo que se acumula de maneira cada vez mais insustentável em numerosas partes do planeta.

Um dos pressupostos que permite Bastani tirar suas conclusões – de que um comunismo de luxo completamente automatizado e ambientalmente sustentável é alcançável caso acabem com os limites que o capital impõe ao desenvolvimento tecnológico -, é o de que, em boa medida, o “luxo” tende a se desassociar do impacto ambiental. Embora não o explicite dessa forma, o autor subscreve a noção de que, com o peso crescente das tecnologias da informação nos mais variados âmbitos da vida, os processos de produção se desmaterializam e, portanto, a pegada ambiental é reduzida em relação ao crescimento econômico. A informação, uma vez produzida, pode se reproduzir com custo tendente a zero. Se extrapolarmos isso a todas as esferas de uma produção que aparece cada vez mais dominada pela informação no controle de distintos processos, podemos concluir que tende a ocorrer uma desmaterialização generalizada, ou pelo menos parcial.

São vários os que fornecem estatísticas de que essa dissociação é o que vêm ocorrendo nos países mais desenvolvidos, mas muitas dessas evidências são obtidas fazendo abstrações de como esses países ricos, imperialistas, sustentam sua reprodução (incluindo com esse termo, os processos de acumulação capitalista que suas multinacionais comandam a partir da exploração do trabalho e de recursos em todo o globo) em numerosos processos materiais que ocorrem fora de suas fronteiras. Não há desmaterialização, mas sim deslocalização dos processos materiais em países terceiros, onde “terceirizam” os impactos ambientais. Quando introduzimos essa “deslocalização” da pegada material na equação, não ocorre tal dissociação.

Sustentar a ideia de que o comunismo de luxo automatizado é uma perspectiva clara baseando-se nesses pressupostos fracos pode ser ruinoso.

Para Marx, nos recorda Terry Eagleton, a possibilidade do socialismo foi dada pelo desenvolvimento das forças produtivas levadas a cabo pelo capitalismo.

mas a tarefa de expandi-las não corresponde ao socialismo [...] O socialismo é construído sobre a base dessa riqueza material, mas não é o construtor nem o acumulador dela [...] O trabalho do socialismo não consiste tanto em estimular esses poderes como em submetê-los ao controle humano racional [1].

Bastani provavelmente não teria acordo com essas apreciações: seu “comunismo de luxo” abraça um crescimento da riqueza inclusive mais rápido que o do capitalismo, embora socializado para todos e todas.

O comunismo de luxo plenamente automatizado de Bastani prefigura uma mudança na distribuição que o capitalismo imprime nas formas de produção e consumo. É notável como não há protagonismo da força de trabalho, alienada sob o capitalismo, em sua rota rumo ao comunismo para pensar uma profunda reorganização e rearticulação de ambos os processos, de produção e de consumo, que sob o capitalismo se encontram separados pela transformação da força de trabalho em mercadoria, alienada dos meios de produção e obrigada a se vender em troca de um salário para conseguirem os meios de subsistência. A classe operária não aparece, para Bastani, como um agente capaz de entrar no terreno da produção para acabar com essa separação forçada. Limita-se a projetar uma automação plena da produção, processo onde a protagonista seria a tecnologia em si mesma mais do que a classe social, e a apontar paralelamente para uma extensão das formas de consumo vigentes para o conjunto da sociedade. Uma espécie de “comunalização” dos padrões de consumo capitalista, sustentada em projeções extravagantes sobre a possibilidade de expandir a extração de recursos para além das fronteiras planetárias. Não há uma crítica ao trabalho alienado sob o capitalismo, mas uma adesão pura e simples ao que Dave Beech chama de “discursos de rejeição do trabalho, do anti-trabalho e do imaginário pós-trabalho” [2], tendência para a qual se inclinam a maior parte dos pós-capitalistas contemporâneos. Disso se desprende, na opinião de Beech, que “a tendência política contemporânea do pós-capitalismo não alinha adequadamente a abolição do trabalho [que é pensada simplesmente como sua eliminação, como automatização; N e R.] com a superação do capitalismo” [3].

Não deveria nos surpreender, então que muitos pós-capitalistas que sonham com “eliminar” o trabalho, no qual rechaçam, em vez de pensar em sua profunda transformação, projetem a continuidade, para além do capitalismo, de formas de consumo que são intrínsecas deste modo de produção, contribuindo assim para sua naturalização e desistoricização. Como não podem ser universalizados de maneira sustentável nos limites impostos pelo planeta, não surpreende a necessidade de imaginar soluções intergalácticas aos desafios ambientais, como as que propõe Bastanim ao nos oferecer uma variante “comunista” (de luxo) aos delírios espaciais de Elon Musk e Jeff Bezos.

Comunismo de decrescimento?

Kohei Saito desenvolve, em sua crítica às posições comunistas ecomodernistas, uma posição diametralmente oposta. Embora em seu primeiro estudo sobre as obras tardias de Marx, A natureza contra o capital não a defenda de forma tão aberta, em seus livros mais recentes, como Marx in the Anthropocene, Saito manifesta claramente que o comunismo hoje deve ser de decrescimento, uma questão que é apresentada quase como senso comum. Com esse posicionamento, não está fazendo nada mais do que aderir a uma corrente que tem ganhado influência [4], na qual também encontramos outros autores de posições anticapitalistas e que flertam com a ideia de que o decrescimento só pode se tornar viável com alguma variante da socialização dos meios de produção, como é o caso de Jason Hickel e - em certa medida - de Giorgios Kallis, de quem já falamos em artigos anteriores. Nos últimos tempos, a publicação Monthly Review, pela qual John Bellamy Foster tem importante responsabilidade, também se filiou a uma perspectiva de decrescimento.

A posição comunista de decrescimento se distingue da corrente mais geral (e estendida) do decrescimento, que defende que é necessário uma drástica redução planificada da produção social com os fins de baixar a pressão sobre os recursos do planeta, mas não é muito clara a respeito do tipo de transformações necessárias para levá-la adiante. Embora essa redução do volume do metabolismo social esteja associada na maior parte dos enunciados do decrescimento a uma transformação nos modos de “como se produz”, nunca fica claro que tipo de organização da produção social, alternativa ao capitalismo, prefiguram, nem onde estariam os pontos de apoio ou os agentes sociais capazes de transformar em estratégia os postulados de “mudança qualitativa” que prescrevem. Apesar dessas sérias dificuldades para articular uma perspectiva coerente, a ideia de que a saída para os problemas contemporâneos passa por alguma variante do decrescimento ganha terreno entre setores do ecologismo crítico do capitalismo. Isso ocorre sobretudo nos países imperialistas desenvolvidos [5].

Aqueles que unem a defesa do decrescimento com a perspectiva do comunismo, como Saito, não são ambíguos neste aspecto; defendem claramente que este pode ser socialmente equitativo e hipoteticamente viável somente quando acabar com o capitalismo. Sua ênfase é que o comunismo e o decrescimento podem ser acoplados sem maiores contradições, minimizando ou ignorando as posições de alguns dos principais expoentes do decrescimento que contradizem ou rechaçam qualquer horizonte socialista. Obviamente que o fato de alguns defensores do decrescimento serem críticos do comunismo não é motivo suficiente para afirmar que uma estratégia comunista não deveria levar em consideração as posições do decrescionismo ou introduzir suas coordenadas.

Existem questões que levam estes autores a defenderem um “comunismo do decrescimento” que devem ser levadas muito a sério e não podem ser descartadas levianamente. Um exemplo é o nível de exploração da natureza alcançado pelo capitalismo que, além de se traduzir no aquecimento global e vários outros transtornos e que faz com que na atualidade sejam consumidos por ano o dobro de recursos que o planeta é capaz de repor, condiciona a maneira que podemos pensar o comunismo hoje. Se a ação revolucionária da classe operária conseguir expropriar o capital e impor uma transição ao comunismo em proporções consideráveis do planeta, terá que lidar com esse legado de deterioração do metabolismo socionatural produzido pelo capitalismo. Como entender, sob essas condições, a possibilidade de alcançar um mundo onde seja possível o lema “a cada um segundo as suas necessidades”?

Mas a almejada síntese de perspectivas contida no “comunismo de decrescimento” acaba por restringir o horizonte de possibilidades com que podemos contar, se arrancarmos o controle dos meios de produção da minoria capitalista e os gerirmos coletivamente, para estabelecer um metabolismo socionatural equilibrado. Essa síntese leva a que apenas aquelas variantes compatíveis com os postulados do decrescimento sejam consideradas.

No caso de Saito, podemos ver que em seu “comunismo de decrescimento” existem, por vezes, declarações sobre o papel do desenvolvimento tecnológico que podem ter características unilaterais. O autor critica corretamente as dimensões despóticas impostas ao desenvolvimento tecnológico no capitalismo, onde o desenvolvimento “depende do caráter antidemocrático e vertical do processo de produção, com a concentração do poder nas mãos de uns poucos” [6]. Partindo dessa advertência correta, por vezes parece subestimar a importância que pode ter um maior desenvolvimento das forças produtivas em uma sociedade comunista, na qual o metabolismo equilibrado com a natureza seja um objetivo central. Nos adverte que “para Marx na década de 1870, em uma sociedade pós-escassez, não teria porque se basear no desenvolvimento tecnocrático das forças produtivas” [7]. Por vezes ele dá a impressão de equiparar todo o aumento da produtividade com aumento do volume de produção, quando na realidade pode seguir produzindo o mesmo em menos tempo para poupar trabalho social. É a isso que uma sociedade não baseada na exploração do trabalho poderia se propor. Ao sugerir esse tipo de identificação, Saito tende a enfatizar que a abundância pode ser alcançada mesmo através da redução da produtividade, o que, em algum sentido, pode ser verdade e necessário, mas não pode necessariamente se converter em norma. Não podemos virar as costas à possibilidade de desenvolver novas tecnologias mais produtivas em uma sociedade comunista, embora esta não busque produzir sempre mais e mais como um fim em si mesmo - como ocorre no capitalismo-, mas com a meta de aumentar o rendimento do trabalho para economizá-lo. Ou seja, determinados desenvolvimentos tecnológicos podem ser aliados de uma sociedade que busque reduzir o trabalho necessário sempre e quando se tenha, a todo o momento, presente a meta de sustentar uma relação racional e equilibrada com o metabolismo natural. Ao mesmo tempo, as “soluções tecnológicas” aos problemas ambientais que o capitalismo está deixando como legado a qualquer formação econômico-social que o suceda (que podem ser falaciosas, como a estratégia e mitigação proposta pelo capitalismo verde para seguir crescendo desenfreadamente, ou na maneira como são encaradas pelos pós-capitalistas com seu fetichismo tecnológico), podem ser parte do arsenal necessário de uma sociedade de transição ao comunismo. Não se pode confiar na ideia de que a tecnologia por si só resolverá os transtornos do desenvolvimento capitalista; a tecnologia nunca é neutra, mas o seu desenvolvimento depende da sociedade na qual está inserida. Porém, também não devemos dar as costas à possibilidade de introduzir, sob o domínio de outras relações sociais baseadas no desenvolvimento mais pleno das pessoas e na busca do equilíbrio com o metabolismo natural, melhorias tecnológicas que ajudem a alcançar estes objetivos e para reverter os fardos deixados pelo capitalismo.

Impor que o comunismo seja de decrescimento acaba limitando uma perspectiva mais rica das decisões que podem surgir em uma sociedade baseada na socialização dos meios de produção para assegurar um bem-estar material para o conjunto da sociedade, e lidar ao mesmo tempo com o legado da crise climática, visando alcançar e sustentar um metabolismo socionatural equilibrado, sem renunciar à ideia de garantir o bem-estar. Embora a “herança” de desastres ambientais que o capitalismo lega restrinja as opções, elas são bem mais amplas do que pode ser compatibilizado com as posições do decrescimento, mesmo em suas variantes mais “comunistas”.

Planificar o metabolismo socionatural

Nos debates entre os expoentes das posições mencionadas, há uma tendência por eliminar a complexidade por trás da polarização, como apontou corretamente Stale Holgersen. Simplificam as posições criticadas, desmerecendo os pontos válidos que cada perspectiva tem a contribuir. A questão está atolada em binarismos sobre se uma sociedade pós-capitalista deveria visar “mais” ou “menos”. Mas, “para os socialistas, a questão principal não é se estamos a favor ou contrários ao crescimento. Essa não deveria ser a linha divisória dos movimentos desde o começo” [8].

O que precisamos, continua Holgersen, é

programas de transição ecossocialistas para planificar, construir e organizar uma nova hegemonia e um movimento ecossocialista para torná-la realidade, para criar um mundo que dê prioridade às necessidades humanas dentro dos limites ecológicos. Podemos fazer isso sem ficar presos no “crescimento” [9].

Quais são as coordenadas pelas quais se deveria guiar este “mundo que prioriza as necessidades humanas dentro de limites ecológicos”? Troy Vettese e Drew Pendergrass levantam algumas pistas interessantes em seu recente Half-Earth Socialism (Socialismo de Meio Planeta). Os autores mostram uma inclinação claramente para o decrescimento, e o livro poderia ser criticado por atribuir a Marx uma visão inteiramente prometeica, minimizando os matizes e tonalidades que sempre caracterizam o autor de O capital. Isso leva os autores a subestimar a centralidade dos aportes marxianos à crítica ecológica, e em muitos casos vemos ideias claramente alinhadas com o pensamento de Marx que não são justamente reconhecidas. Mas para além das discussões que poderiam ser abertas por estes e outros pontos, Vettese e Pendergrass acertaram em mostrar a força de uma planificação socialista do conjunto dos recursos para encarar a emergência ecológica com a rapidez que essa exige, o que inclui destinar vastas áreas do planeta à regeneração da vida silvestre. Daí a ideia do “meio planeta”, que tiraram do biólogo Edward Osborne Wilson e que é essencial para assegurar a biodiversidade e pôr limites à sexta extinção em curso.

Os autores destacam que é a única maneira de compatibilizar os objetivos de “fornecer a todas as pessoas as bases materiais para uma boa vida - sustento, refúgio, educação, arte, saúde - ao mesmo tempo em que se protege da biosfera da desestabilização” [10]. Este é o desafio colocado pelo estudo dos “limites planetários”, que na opinião de Vettese e Pendergrass apenas pode ser um programa de investigação “incompleto se fracassa em reconhecer a impossibilidade de alcançar essa meta dentro do capitalismo” [11].

Os autores constroem seu argumento na crítica direta do ambientalismo mainstream, para além das nuances que podem existir entre políticas mais de livre mercado ou de natureza mais keynesiana, cujos limites estão marcados pelo que resulta compatível com o capitalismo. Mas o capital, essa personificação impessoal que se guia simplesmente pela busca da acumulação de capital em escala cada vez maior, “dirige cegamente a nave dos tontos em direção ao desastre ecológico [...] o capital pode sentir apenas sinais de preços para guiar sua orientação”. Essa passagem nos remete claramente ao que Marx aponta em O capital quando analisa o fetichismo da mercadoria, que determina uma objetivação das relações sociais e que os indivíduos personificam, mas não podem alterar sem modificar suas bases.

Se o capitalismo é uma sociedade caracterizada pelo controle inconsciente, então o socialismo deve ser a restauração da consciência humana como uma força histórica. Na prática, isso significa que o mercado deve ser substituído pela planificação [12].

Half-Earth Socialism levanta a hipótese de como poderia ser levada adiante uma planificação in natura, isto é, em termos materiais (ou seja, sem a necessidade de recorrer a valores). Baseiam-se nos esquemas propostos por Otto Neurath, um social-democrata alemão que em 1919 foi nomeado chefe de Gabinete de Planejamento Econômico destinado a promover a socialização da economia bávara. Se o objetivo do socialismo “é permitir à humanidade regular conscientemente a si mesma e seu intercâmbio com a natureza”, a melhor forma de alcançar esse objetivo é eleger entre planos alternativos que representem “distintas visões de como a capacidade produtiva da sociedade pode ser desenvolvida”. Half-Earth Socialism encontra na programação linear desenvolvida pelo economista e matemático soviético Leonid Kantoróvich um método possível para apresentar distintas alternativas de acordo como se combinam de maneira concreta as “duas restrições essenciais” que surgem do corpus científico dos limites planetários: “limitar a extração para manter a biosfera saudável, e ao mesmo tempo distribuir de maneira equitativa suficientes recursos naturais para satisfazer as necessidades humanas”. São objetivos gerais que podem ser traduzidos em múltiplas combinações, que através de instrumentos como a programação linear podem se converter em planos alternativos. A planificação, sobre as bases socialistas, “pode trazer vários caminhos para um planeta sustentável e igualitário”. A cibernética de Norbert Wiener, Andrey KLolmogorov, Anatoly Kitov, entre muitos outros investigadores, assim como os aprendizes que deixaram o projeto Cybersyn realizado por Stafford Beer no Chile durante o governo Salvador Allende, também contribuíram para que a planificação possa ser desenvolvida e as correções necessárias aplicadas conforme o avanço. Vettese e Pendergrass mostram também como desenvolvimentos mais recentes, como os modelos de avaliação integrada utilizados pelos cientistas do clima, também podem enriquecer os mecanismos de planificação.

O interessante do exercício proposto pelo Half-Earth Socialism é que sai dos binarismos entre ecomodernismo e decrescimento. Sem confiar em um prometeísmo tecno-otimista do “consumismo de luxo automatizado” nem nos resignar à estreiteza que propõe o decrescimento, colocar o eixo na planificação socialista pode permitir discussões mais sóbrias sobre a maneira que uma sociedade baseada na socialização dos meios de produção, que hoje estão nas mãos de uma minoria de exploradores, pode compatibilizar os objetivos de (re)estabelecer um metabolismo socionatural equilibrado e a satisfação mais plena das necessidades sociais.


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FOOTNOTES

[1Terry Eagleton, Por qué Marx tenía razón, Barcelona, Península, 2011, pp. 222-223

[2Dave Beech, Art and labour. On the Hostility to Handicraft, Aesthetic Labour and the Politics of Work in Art, Londres, Brill, 2020, p. 13. Traducción propia del original.

[3Ibídem, p. 245.

[4Com a particularidade que Saito afirma ter descoberto que o próprio Karl Marx descobriu em seus últimos anos a perspectiva de um “consumismo de decrescimento”, como se podia ler segundo a sua opinião nos últimos textos manuscritos do revolucionário alemão. Já apontamos os constrangimentos que Saito incorre para sustentar estas conclusões que ele afirma encontrar no percurso teórico de Marx.

[5Nos países dependentes, o decrescimento tem sua tradução em algumas das correntes ecologistas que rechaçam legitimamente os projetos extrativistas por ser uma falsa via de desenvolvimento; mas, como acontece nos países ricos, neste caso a proposta de uma necessária transição pós-extrativista não se insere em uma estratégia articulada de ruptura com o imperialismo e seus aliados locais, fundamentos sem os quais não é possível lançar as bases de uma alternativa aos projetos de “modernização” capitalista-imperialista.

[6Kohei Saito, ob. cit., p. 241

[7Ibídem, p. 247.

[8Ståle Holgersen, “Neither Productivism nor Degrowth. Thoughts on Ecosocialism”, Spectre, consultado e 30/10/2023 en https://spectrejournal.com/neither-productivism-nor-degrowth/.

[9Ídem. Os destaques são do autor.

[10Troy Vettese y Drew Pendergrass, Half-Earth Socialism. A Plan to Save the Future from Extinction, Climate Change, and Pandemics, Londres, Verso, 2022, livro eletrônico sem paginação, tradução própria.

[11Ídem.

[12Ídem.
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