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Em defesa da revolução socialista: um debate com a Resistência-PSOL

Felipe Guarnieri - Diretor executivo de relações sindicais do Sindicato dos Metroviarios de SP

Em defesa da revolução socialista: um debate com a Resistência-PSOL

Felipe Guarnieri - Diretor executivo de relações sindicais do Sindicato dos Metroviarios de SP

A corrente Resistência-PSOL vem teorizando sobre a impossibilidade da revolução socialista na nossa época para justificar a sua adesão ao projeto petista de Frente Ampla, que além de Alckmin, agora também conta com Marta Suplicy em São Paulo. Recentemente, Henrique Canary, em seu artigo publicado no Esquerda Online "Pensando um pouco sobre a ’crise de direção do proletariado’", afirma que o conceito criado por Trótski não serve mais para explicar a atual realidade. Para enfrentar a conciliação que fortalece a extrema direita na crise capitalista, é necessário defender o legado revolucionário de Marx-Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo e Trótski, contra as tendências liquidacionistas em curso.

Logo nas primeiras linhas, Canary pretende construir uma justificação objetiva para defender a hipótese liquidacionista. Nas palavras dele:

“No presente artigo, levantamos a hipótese de que esse conceito – crise de direção do proletariado – já não mais corresponde à realidade. Seria necessária uma nova abordagem, capaz não apenas de explicar a ausência de revoluções socialistas vitoriosas desde meados dos anos 1970, mas também de apontar uma saída.”

Um leitor mais atento já perceberia a encruzilhada em que foi obrigado a entrar. Afinal, a ausência de revoluções socialistas vitoriosas reafirmaria o conceito de Trótski (como veremos adiante), e não o contrário. Vejam, o debate proposto não se trata de “atualizar ou problematizar” o conceito, o que poderia ser um caminho não dogmático, mas sim buscar outro que explique a realidade, como o próprio autor faz questão de frisar.

Segundo a Resistência-PSOL, a atual correlação de forças é a mesma “...que surgiu com a restauração capitalista no final da década de 1980”. Em que pese os efeitos subjetivos da herança de derrotas deixadas pelo stalinismo, parece que Canary esquece que o mundo passou por uma enorme crise capitalista desde 2008, de proporções históricas, com o colapso do sistema financeiro das grandes potências, aprofundado pela pandemia e marcado por guerras como a da Ucrânia, e que voltou a gerar importantes processos de luta de classes, revoltas em vários países, recolocando a necessidade de atualizar a perspectiva da revolução.

A nova geração está mais próxima da queda do Muro de Wall Street do que da queda do muro de Berlim.

A maior crise capitalista em décadas, naturalmente, não significa identificar a iminência revolucionária da situação atual, porém muito menos considerar que a correlação de forças é a mesma dos anos 90, período no qual eram mais que normais teorizações como a que Canary agora tenta elaborar para justificar o giro na prática da Resistência rumo ao reformismo. E ainda que fosse, caberia aos que se reivindicam trotskistas construir uma política independente por meio de tarefas preparatórias para o próximo ascenso revolucionário. Tão infantil quanto procurar “pequenos Lênin” nas atuais organizações, é relativizar o trabalho conspirativo de tomada do poder do revolucionário russo, nos momentos de maior reação czarista e burguesa. Exibir artigos no centenário de Lênin, como até a Resistência faz, é bom, mas melhor ainda é aprender com eles.

A procura de um novo conceito encontra sentido tão somente quando os objetivos finais passam a ser outros. Por isso, o “pensamento da crise de direção do proletariado” está inteiramente relacionado ao questionamento se as “revoluções ainda são possíveis”:

“Enfim, uma releitura dos termos da relação entre democracia e revolução, na qual a segunda estaria subsumida na primeira. A questão em Marx parece, no entanto, estar restrita à possibilidade de conquistar a democracia, sem recorrer aos métodos da revolução, o que é evidentemente muito diferente, de pensar a transição ao socialismo sem ruptura.”

Nesse artigo, Arcary tergiversou bastante, quis voltar a Marx em 1850, mas acabou encontrando Bernstein. Não vamos alongar muito aqui, porque as polêmicas com a social-democracia alemã foram saldadas por Rosa Luxemburgo, que ainda no início do século XX já fazia a pergunta de maneira mais correta: Reforma ou Revolução? A Resistência/PSOL ruma para tomar o lado da primeira, ao separar as tarefas democráticas dos métodos da revolução e subordinar a revolução socialista à democracia burguesa.

Uma estratégia que aprofunda a crise de subjetividade

Canary, para afirmar sua tese, busca um interlocutor que existe na realidade. Trata-se dos setores do movimento trotskista que possuem uma concepção teórica objetivista da revolução. Ou até mesmo de correntes sectárias que aplicam os conceitos de Trótski como um dogma a ser seguido. Se o artigo de Canary pudesse merecer algum reconhecimento, esse seria o de refletir sobre o problema real da crise da subjetividade (que deriva de elementos que aponta como a fragmentação da classe trabalhadora ou da lógica do empreendedorismo neoliberal), contudo, ao invés de pensar como um revolucionário sobre essa problemática para contribuir na superação da crise de subjetividade, Canary propõe uma estratégia que a aprofunda. A tradição marxista sempre se enfrentou contra o status quo, nadou contra a corrente e combateu as variantes oportunistas que impediam a classe em si (a condição social do proletariado) se tornar classe para si (consciência política).

Dito isso, o problema da crise de subjetividade do proletariado merece atenção para a elaboração teórica da revolução nos dias de hoje, bem como deve orientar a atuação política. Por mais que ela assuma um aspecto central na atualidade, a reação burocrática e termidoriana que representava o stalinismo na URSS e do ponto de vista da revolução internacional, em suas distintas variantes, não foram impunes para a subjetividade da classe trabalhadora pelo seu papel de direção por várias décadas. Nos países atrasados onde as revoluções triunfaram, as burocracias, seguindo o modelo stalinista da URSS, tomaram o controle desde o início do processo.

A política dessas direções burocráticas de não desenvolver os conselhos operários (soviets), realizar a planificação burocrática da economia e abandonar o programa da revolução internacional, constituíram as raízes do problema que abordamos com maior proporção atualmente. Afinal, se o neoliberalismo se consolidou como uma corrente nos anos 90, com o fim do choque entre hegemonias operária (ainda que da fase degradada pelo stalinismo) e burguesa, preconizando o “fim da história”, fato é que décadas depois não estamos mais nesse mesmo estágio. A globalização que era símbolo inconteste da dominação norte-americana sofre um questionamento de potências onde se restaurou o capitalismo como a China e a Rússia (Guerra da Ucrânia), acentuaram-se os traços autoritários das democracias neoliberais com o avanço da extrema direita (marcado também por episódios como o Capitólio ou pela reedição brasileira do 08/01) e, principalmente pelo aumento exponencial das desigualdades após a crise de 2008, com o resgate estatal dos bancos e empresas.

Logicamente, essas crises não representaram a derrota do neoliberalismo, entretanto abriram novamente o questionamento do projeto hegemônico capitalista. Reafirmaram a situação de crises orgânicas nos países como interpretado por Gramsci, em última instância, como uma crise do empreendimento burguês à frente do Estado, mas que ainda sobrevive pela ausência de uma força que se contraponha em luta pela hegemonia operária. Como afirmamos em recente contribuição de Matías Maiello para a Conferência da Fração Trotskista, se no século XXI a ausência de hegemonias (socialistas ou capitalistas) marca a etapa atual, por outro lado, a restauração burguesa já é uma etapa anterior, o que leva à luta de ideologias reafirmarem não somente a necessidade, mas sim a possibilidade da revolução socialista:

“Agora, em contraste com a etapa anterior da Restauração Burguesa, há uma reabertura do terreno para uma luta de ideologias e, com ela, levanta-se como possibilidade o horizonte de transformar o projeto socialista em força material. Esta não é uma reedição da luta de ideologias tal como ocorreu antes da Revolução Russa, como afirmam os setores da esquerda norte-americana que promovem uma espécie de retorno à social-democracia das origens. É necessário partir do balanço do século XX e retomar os aspectos mais avançados dessa experiência. Recriar a perspectiva de um socialismo desde abaixo para o século XXI – em oposição à experiência stalinista – implica partir das realidades atuais do capitalismo, da classe trabalhadora e dos oprimidos para que possa ser vista como uma alternativa à crise civilizatória que o sistema capitalista nos impõe.”

Ou seja, a chave é pensar, como revolucionários, como renovar a perspectiva socialista no século XXI para elevar o nível de consciência da classe trabalhadora, e não aprofundar os elementos de sua crise de subjetividade, adotando a perspectiva de conciliação de classes, Frente Ampla, e de apostar em gerir o Estado Burguês como faz a Resistência, tentando justificar isso com a “crise de subjetividade” do proletariado.

Crise de direção e crise de subjetividade

Ao colocar a crise de subjetividade pensada em termos revolucionários, aprofundemos no problema da hipótese de Canary: o abandono do paradigma de crise de direção. Para cumprir tal objetivo, ele promove uma separação mecânica entre o conceito de crise de direção do proletariado e a crise do proletariado. Vejamos:

“A característica determinante da etapa histórica que vivemos não é, portanto, a ‘crise de direção do proletariado’, mas sim uma crise do próprio proletariado. Essa crise, que poderíamos chamar de crise de subjetividade, produto de toda a realidade que descrevemos acima, resulta em um profundo retrocesso na consciência e na disposição de luta.”

A crise de subjetividade seria, portanto, o substitutivo determinante que explicaria a atual realidade, em contraposição ao conceito de crise de direção. Mais uma vez, não se trata de advogar na causa da inexistência dos elementos de crise subjetiva do proletariado. Pelo contrário, como desenvolvemos acima, eles existem, são fortes e provenientes da combinação entre o avanço do neoliberalismo nas últimas décadas e as derrotas produzidas pela reação burocrática do stalinismo e da socialdemocratização dos PCs, o mesmo caminho escolhido atualmente pelo PSOL, com bases muito mais débeis. Mas ainda vamos chegar lá.

O que vale destacar, que não foi mencionado pelo autor, é o papel do próprio centrismo trotskista nesse processo em aprofundar a crise de subjetividade e de direção. O mandelismo passou a discutir o fim da era da revolução russa e da era dos partidos de tipo bolchevique, desenvolvendo a tese da centralidade dos movimentos sociais dissociados da classe trabalhadora; seja por meio de se entregarem à oposições burguesas aos governos ditatoriais, com retórica "socialista", ou a frentes amplas com todo tipo de partidos burgueses. De outro lado, outras correntes centristas como o lorismo exacerbaram seus traços sectários e dogmáticos, repetindo o Programa de Transição e considerando que um dia as massas vão até eles. Todas as correntes do movimento trotskista reduziram a zero a importância da auto-organização e da unificação das fileiras operárias com os movimentos sociais, o que só pode se dar em combate contra as burocracias sindicais e políticas.

Muitos, como a Resistência agora, também sacrificaram a independência de classe no altar da miséria do possível. O ponto de convergência que unifica esses setores do centrismo é a revisão da teoria da revolução permanente, na sua função estratégica fundamental: a construção da hegemonia operária nos processos revolucionários. Um balanço que a Resistência/PSOL nunca realizou do morenismo após a sua ruptura com o PSTU. Afinal, no Brasil foram parte da capitulação no desvio do ascenso operário de 1978-1981 da ditadura militar para a democracia burguesa, permitindo que a burocracia lulista levasse a classe trabalhadora a reboque das direções burguesas.

Se as direções social-democratas e stalinistas, como as principais direções do movimento de massas, e o PT no Brasil nos anos 80 que nos referimos, são os principais agentes em desviar ou derrotar os processos de mobilização, o fato é que as correntes do centrismo trotskista colaboraram com a crise de subjetividade, porque como direção também negaram a perspectiva revolucionária. Ou seja, ao contrário de a crise de subjetividade se sobrepor ao papel da direção, a crise do proletariado se apresenta dialeticamente como subproduto da evolução histórica da crise de direção.

Cabe agora ver quais as tarefas que derivam dessa problemática.

Tarefas colaboracionistas no lugar das preparatórias?

O encadeamento dos conceitos segue contrapostos ao analisar as tarefas de agora. Como se a crise da subjetividade histórica do proletariado não passasse, necessariamente, pela crise das suas direções políticas:
“A tarefa elaborada no Programa de Transição era a superação da crise de direção do proletariado por meio da mobilização permanente das massas e da disputa de direção. A tarefa do presente período histórico é a recomposição da subjetividade histórica do proletariado.”

A adesão liquidacionista à Frente Ampla aparece como justificativa para uma suposta recomposição subjetiva do proletariado. Ao invés de combater, propõe uma “atividade colaborativa” com as direções oportunistas e reformistas da esquerda dentro de uma aliança com a fração supostamente democrática da burguesia.

Essa política já foi provada pelo fracasso contundente e lamentável dos neorreformismos (Syriza, Podemos) ou dos rumos que trilham a Frente Ampla no Chile e Mélenchon na França, que em todos os casos fortaleceram o peso da extrema direita na subjetividade das massas, porque se ligaram com forças burguesas que buscam preservar as condições da crise capitalista. Aquilo que a Resistência apresenta como novidade foi o caminho de conciliação de classes que fortaleceu Trump nos EUA, LePen na França, Milei na Argentina e Bolsonaro no Brasil. Nada mais do que a já requentada ideologia social-democrata, entretanto sem nenhuma das virtudes das origens (relação orgânica e inserida no movimento operário).

Trótski nos anos 1930 na América Latina contra Haya de la Torre já alertava que “ao invés de contar com muitos amigos perderá os poucos que tem”. Ou seja, naquele momento, de nada adiantava defender a democracia do imperialismo norte-americano contra o avanço fascista no continente. Assim como chega a ser uma piada de mal gosto pensar que o bolsonarismo será derrotado, abandonando a luta de classes e compondo uma mesma frente com Alckmin e Marta Suplicy. A estratégia Boulos não passa de uma cópia mal-feita do já batido “Lulinha paz e amor”. Alimentado uma ilusão de que é possível combater o “neofascismo”, aliando-se com setores golpistas e que foram protagonistas na aprovação de ataques históricos a classe trabalhadora brasileira, como a reforma trabalhista e da previdência.

As tarefas colaborativas também se manifestam com a burocracia sindical.

“Lembremos as últimas assembleias das quais participamos ou mesmo a situação geral de nossa categoria. Quantas vezes a direção do sindicato, apoiada por todos os partidos de esquerda, tentou construir uma mobilização, mas não foi possível? As “direções majoritárias” foram as culpadas? Em todos os casos? Estamos seguros disso? Ora, todo ativista sabe que construir uma mobilização é uma das coisas mais difíceis que existem. A posição de diretor do sindicato pode oferecer alguma vantagem, mas nem de longe resolve o problema da disposição de luta de uma categoria.”

Antes de lembrar das assembleias que participamos, precisamos lembrar de quais assembleias foram convocadas pelas direções majoritárias da classe operária para organizar a luta desde que Lula foi eleito. Sim, poucas. A principal atividade da burocracia sindical é institucional, integrando-se ao ministério do Trabalho junto a setores burgueses e buscando paliativos na administração neoliberal. E nas lutas que ocorrem prevalece a política de isolamento, essa a verdadeira responsável para neutralizar a disposição de luta de uma categoria.

O exemplo podemos ver nos poucos sindicatos que não são dirigidos pela burocracia sindical. Faltou disposição de luta para os metroviários realizarem pelo menos 3 greves contra Tarcísio em SP? A primeira, inclusive a revelia da ala majoritária do sindicato da própria Resistência/PSOL. As outras 2, juntos com os trabalhadores da Sabesp e da CPTM, que nem uma “nota de apoio das centrais” teve. Enquanto a burocracia sindical isola uma luta que tem potencial enorme de aliança com a população contra as privatizações, a Resistência-PSOL no máximo da política de colaboração batalha em todas as assembleias para que nem um chamado as principais Centrais a construir uma paralisação Unificada em SP seja colocado para votação.

Ao colaborar com as direções reformistas, abre-se mão de construir as tarefas preparatórias necessárias para o momento histórico atual. Pois se é verdade que a classe trabalhadora está mais fragmentada, fato é que ela também cresceu significativamente, tornou-se mais heterogênea, mais feminina, com imigrantes de várias etnias, aumentando assim a sua capacidade hegemônica, além da sua localização estratégica.

O caminho percorrido por aqueles que “vieram antes de nós” não possui atalhos que substituam a construção de frações revolucionárias no movimento operário, as batalhas pela auto-organização e a construção da Frente Única Operária e, menos ainda, a construção do projeto socialista na nossa época. O legado deixado pelo partido bolchevique, e por revolucionários como Marx-Engels, Lênin, Trótski, Rosa Luxemburgo e Gramsci, faz parte de uma tradição marxista que não relegou a possibilidade da revolução socialista, em detrimento de colaborar com as direções conciliadoras. Pelo contrário, Marx foi defensor ferrenho da revolução contra Phroudon e o Lassalismo. Engels, um implacável Anti-Duhring diante da intenção deste em substituir o marxismo por outra “versão do socialismo”. Lênin renegou Kautsky e decretou a falência da II Internacional. Rosa desautorizou Bernstein e a ilusão de chegar ao socialismo pela via pacífica de reformas. Gramsci desmistificou Croce e Trótski representou a alternativa revolucionária à traição do Stalinismo.

Abandonar o paradigma da crise de direção não ajuda a superar o problema da crise de subjetividade, porém contribui e muito para aprofundar o ceticismo à classe trabalhadora e promover ilusões nas direções reformistas. Na prática o que acabam abandonando é a luta pela hegemonia operária. As tarefas preparatórias reafirmam a etapa histórica de crises, guerras e revoluções, caracterizada por Lênin. É o que permite que cada pequena luta seja potencializada ao máximo, que as revoltas possam se transformar em revoluções socialistas, sem ser desviadas ou traídas. Em última instância, significa dizer que o Comunismo não estará em pauta amanhã, mas sim hoje, presente em cada processo da luta de classes.


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