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Lula e os comandantes militares negociam os termos de um pacto bonapartista

Thiago Flamé

Lula e os comandantes militares negociam os termos de um pacto bonapartista

Thiago Flamé

Em pleno sábado à noite, muitos jovens e trabalhadores comemoram uma semana de grandes reveses para Bolsonaro enquanto Lula, José Mucio e os comandantes militares se juntaram, num encontro discreto, que não constava nas agendas. Nunca saberemos o que realmente foi dito ali, mas a mensagem transmitida foi explicita. Os comandantes contam com o apoio de Lula para o pacto de impunidade e para salvaguardar a imagem das corroída das forças armadas.

O roteiro de toda a trama política envolvendo Bolsonaro e a cúpula militar, a cada nova revelação, se torna mais insólito. O depoimento do hacker de Araraquara, elevado mais uma vez ao centro do palco da política nacional, não só comprometeu Bolsonaro como colocou os generais e o alto comando no centro de uma conspiração contra as urnas eletrônicas e o processo eleitoral. O depoimento assusta e surpreende, pelo que revela, mas também pelo nível de amadorismo na conduta dos diversos envolvidos. O presidente Bolsonaro, a deputada, os generais, parecem todos personagens de um roteiro mal escrito, que atuam de forma inverossímil ao papel que deveriam ocupar na trama toda.

Qualquer um acreditaria que o Hacker inventou tudo, e ainda seríamos obrigados a reconhecer o nível da imaginação e da cara de pau de Delgatti. A não ser pelo fato de que o próprio Bolsonaro confirmou as reuniões, de que o Ministério da Defesa assumiu que recebeu o hacker e de que constam os pagamentos de Carla Zambelli para ele. Ele, o mesmo hacker que vazou as conversas entre os promotores e os juízes da lava jato e ajudou a criar as condições políticas para a eleição de Lula, recebido no gabinete presidencial de Bolsonaro. Todas as justificativas e explicações parecem mais absurdas ainda. Começando pelas do próprio Delgatti que apresenta sua participação da vaza jato em partes como coincidência, em partes como movida pelo sentimento de justiça em relação à prisão arbitrária de Lula. Por que o bolsonarismo confiaria em Delgatti? No mínimo confiou o suficiente para o Ministério da Defesa recebê-lo, ainda que alegue que descartou suas opiniões como sendo a de um leigo. Pois que leigo: entrou nas mensagens pessoais de figuras importantes do estado e da justiça brasileiros. Zambeli afirma que o contratou para cuidar das suas redes sociais e Bolsonaro afirma que fez tudo para aperfeiçoar o sistema eleitoral brasileira. Como colocava Gramsci, uma das características dos momentos de crise orgânica é a de produzir situações e personagens bizarros e grotescos e a crise orgânica à brasileira não decepcionou no que se refere ao grotesco.

Os fatos em si já são graves o suficientemente graves. Bolsonaro e os generais se reuniram com Delgatti. Para que? Segundo o hacker, que não pode ser suspeito de ser leigo no assunto como inacreditavelmente afirmam agora os generais, para quebrar o sistema de segurança das eleições brasileiras. Ainda revela não só ter quebrado a senha do CNJ (o que parece ter sido realmente fácil), como que existia um grampo contra o ministro Alexandre de Morais e que os militares, que participavam nas reuniões junto ao TSE para supostamente garantir a lisura do processo, cometeram crimes contra o estado ao revelar para o hacker trechos do código fonte das urnas eleitorais que tiveram acesso em reunião restritas e secretas, na qual não podiam tomar nota de nada e tinham que gravar de memória. O depoimento marcou um novo momento da ofensiva do regime para prender Bolsonaro e incriminou junto os generais, tornando muito difícil a operação de poupar o Exército e as forças armadas do desgaste que sofreu com 8 de janeiro caso Delgatti apresente provas. Todo o caso envolvendo a negociação das joias dificulta ainda mais a situação do Exército, que até agora vem dando sustentação à família Cid, ao pai general e ao filho coronel, acusados de negociar jóias ilicitamente a mando de Bolsonaro.

As negociações com a cúpula militar e a ofensiva contra Bolsonaro

Após o depoimento bombástico no meio da semana, ao voltar a depor na sexta-feira para a polícia federal, Delgatti não apresentou provas a respeito do conjunto de acusações que fez na CPI. O coronel Mauro Cid, que esteve a ponto de confessar sobre as jóias, retrocedeu, e apresentou nova versão, alegando que só tratou de um único relógio. Bolsonaro pareceu estar prestes a ser preso, mas conteve a primeira ofensiva tentando reorganizar um discurso para se colocar como vítima.

Após essa semana decisiva, Lula recebeu a cúpula militar. Numa demonstração de apoio político aos comandantes, depois de acusações que poderiam justificar a demissão de todo o alto comando, que conduziu a participação militar na comissão eleitoral do TSE e que produziu um relatório que serviu de combustível para os acampamentos nas portas dos quartéis.

Em troca de enormes concessões, Lula oferece um caminho de pactuação para cúpula militar, que também busca um caminho para se dissociar de Bolsonaro e preservar a imagem do Exército, que vai ficando mais abalada. As forças armadas foram contempladas com as promessas de 52 bilhões em investimentos no novo PAC, ao mesmo tempo que farejam a oportunidade de novos negócios e investimentos que podem surgir em acordos no âmbito dos Brics. O que é mais um elemento que gera divisões entre a extrema direita brasileira, e seu alinhamento automático com o trumpismo e com os EUA, com a cúpula das forças armadas que quer tirar o máximo para si nas novas coordenadas políticas e geopolíticas do governo de frente ampla.

O caminho que toma as negociações do governo Lula com a cúpula militar é de completa impunidade para os generais, que ainda contarão com um orçamento turbinado pelo PAC e abre caminho para pacificar a relação entre o bonapartismo judiciário, o militar e a presidência da república. A unidade de todos das forças institucionais que foram peça chave na condução da ofensiva golpista, descarregando toda culpa pela catástrofe que provocaram na ala mais radical do golpismo. A prisão de Bolsonaro é somente uma ferramenta que um regime político apodrecido e o judiciário, que é o guardião das reformas do golpe, se utilizam para se legitimar e fortalecer seu papel autoritário. Essa unidade reacionária se voltará contra todo movimento que busque colocar em questão as novas condições de exploração herdadas pelo golpe, que tem no arcabouço fiscal, um novo teto de gastos só que agora legitimado por Lula e o PT, um ponto fundamental de convergência entre todas as alas burguesas e golpistas.

Mais uma vez sobre o significado do oito de janeiro

O envolvimento que a cúpula militar teve com a ameaça de Bolsonaro ao processo eleitoral se tornou uma enorme pedra no sapato. O resultado do 8 de janeiro colocou os militares na posição de cúmplices do bolsonarismo em todos os acontecimentos, justamente o que eles tratavam de ocultar.

Durante o governo Bolsonaro e a partir da pandemia, a cúpula militar foi assumindo cada vez mais a condução do governo e aprofundando sua aliança com Bolsonaro. Apoiou o bolsonarismo enquanto isso favoreceu a cúpula militar a aumentar seu poder sobre as instituições estatais a partir do governo. Inclusive se utilizou e incentivou toda a retórica anti urnas, os acampamentos e a sombra e a ameaça de um golpe bolsonarista não por que pretende-se embarcar nessa aventura, mas para aumentar ainda mais os mecanismos de tutela militar sobre um regime político já degradado pelo fortalecimento do bonapartismo judicial.

O problema é que quando chegou o momento de pular do barco bolsonarista, se viu mais profundamente implicada. O bolsonarismo se agarra na cumplicidade militar que obteve para se defender e se protege implicando mais e mais os militares. O conteúdo do 8 de janeiro é mais esse do que a tentativa de um golpe de estado. Foi muito mais um golpe de efeito bolsonarista, bem sucedido, para comprometer publicamente a cúpula militar. Esse é um dos motivos também pelos quais o bolsonarismo preferiu expor o 8 de janeiro numa CPI, do que somente o julgamento no STF. Ainda que o depoimento de Delgatti foi um golpe duro também o que implicaria para toda a cúpula militar dificultar a CPI, a grande mídia e o governo, que buscam pactuar com a cúpula militar, aproveitar ao máximo os efeitos desse depoimento.

A unidade pelos ataques e a necessidade de uma esquerda independente do governo

O que vai se tecendo enquanto todos os holofotes se voltam para o oito de janeiro e o desvio de dinheiro público através da venda de jóias, é uma unidade reacionária, o fortalecimento das polícias, dos governadores de extrema-direita, do agronegócio, das igrejas evangélicas e de todos os setores burgueses associados ao bolsonarismo e que se associam ao governo de frente ampla para não afundar com Bolsonaro. Ao contrário, abandonando o barco bolsonarista têm a oportunidade de encontrar seu lugar na frente ampla.

Mas a oposição de extrema-direita vai permanecer com ou sem Bolsonaro. Ainda é impossível dizer se ele vai se sustentar como liderança de extrema-direita depois de toda essa ofensiva e de uma possível, talvez até provável, prisão. Ou se o espaço bolsonarista será ocupado por uma figura de extrema-direita mais institucional, como poderia ser Tarcísio, que se fortaleceu no governo de São Paulo depois de costurar o acordo da reforma administrativa com Haddad.

O que permite que o governo de Lula seja o ponto de convergência da unidade burguesa é sua aceitação integral do programa econômico do golpe institucional, manutenção de todas as suas reformas e o apoio a continuação das privatizações pelos governos dos estados. Todas as ferramentas autoritárias que o judiciário vai fortalecendo sob a justificativa de combater o bolsonarismo, contam agora com os aplausos do PSOL, que justifica tudo, toda a aceitação do arcabouço fiscal e todas as medidas do governo em nome do combate ao bolsonarismo.

As contradições dessa frente que vai se tornando cada vez mais ampla e reacionária também são enormes e apesar da ajuda do PT e do PSOL não será um caminho fácil para pacificar um novo regime político sob a base da aceitação de toda a ofensiva golpista. As pressões da situação internacional e o próprio peso interno do bolsonarismo dificultam esse caminho. Também paira a ameaça de mobilizações e greves que possam romper por baixo esse equilíbrio reacionário e o poder de contenção de organizações tão comprometidas com o governo podem ser colocados em questão.

Não podemos aceitar um pacto que mais uma vez garanta a impunidade para a cúpula militar. Qualquer reforma militar que seja levada adiante por esse governo de frente ampla vai servir apenas para legitimar essa casta ultra-reacionária. Lutamos para acabar com todos os privilégios e com toda a impunidade dos militares, pelo fim da justiça militar com seus tribunais e legislação especial, para que todos os militares sejam julgados por júri popular para que a casta militar. Precisamos de uma esquerda revolucionária que se oponha ao governo da frente ampla e que organize a luta contra o arcabouço fiscal, pela revogação de todas as reformas e para que os militares paguem pelo seus crimes.


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Thiago Flamé

São Paulo
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