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Crônica | O Galo em 3 atos

Essa é uma crônica sobre o bloco O Galo da Madrugada, o maior bloco de carnaval do Recife. De acordo com os organizadores do bloco, 2,5 milhões de pessoas foram ao Galo em sua 45ª edição este ano.

Renato ShakurEstudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

terça-feira 20 de fevereiro | Edição do dia

Foto: Arthur Mota/Folha de Pernambuco

1º ato: Na madrugada

Tudo começa na madrugada…do dia anterior. As famílias dispersas pelas ruas se escoram nas caixas de cerveja. Quando dá, dormem no chão forrado e revezam entre si, sempre um de pé observando tudo ou quase de pé (o cansaço quase os esmorecem).

Mas àquela altura já não tem como desanimar, já são anos assim e no dia seguinte alguém precisa fazer a festa acontecer.

Decerto, o sono talvez seja o principal “inimigo”, mas não é só isso que o atormenta. Já são 4 horas da manhã e tudo que se houve são os barulhos feito estacas batendo em superfícies opacas de trabalhadores quebrando o gelo.

O ritmo nada mais é da ansiedade do primeiro trio elétrico. Mas também que no dia seguinte se joga a sorte de alguns meses de sobrevivência. Não dá pra dormir sabendo que Recife é a capital com mais desemprego, desigualdade e trabalho precário do país.

2º ato: Um ritual

Amanheceu. Já dá pra sentir o início do espetáculo. Da Caxangá até a Imperial, eram incontáveis caixas e caixas d ’ água e cerveja empilhadas, isopores uns ao lados de outros, também intermináveis.

O barulho das ruas ia aumentando e já não restava mais dúvidas que o Galo era obra direta dos trabalhadores. Os foliões, as máscaras, os passos sóbrios e os trôpegos daqueles que vêem no Galo apenas a extensão da noite anterior.

Em pouco tempo tudo foi tomado por uma massa de trabalhadores. O sol e o calor não eram o problema, eram apenas o cenário perfeito de mais um ano desta linda cerimônia: acompanhar as dezenas de trios-elétricos até que um lhe agrade e você possa acompanhá-lo, repetindo esse movimento até que não exista mais nenhum trio para seguir.

Sem dúvida um grande ritual. Idosas, crianças, famílias, todos podiam brincar, cantar e participar daquela festa. Tudo no mínimo detalhe estava saindo na mais perfeita execução.

Arriscaria dizer que apenas um costume como esse, tão enraizado na história de um povo tornava possível que nada saísse fora do lugar. Parecia até que tudo aquilo havia sido ensaiado antes.

A sensação de que um pouquinho de você estava no Galo era o sentimento mais sublime que podia ter no momento. Os sorrisos não me enganavam.

3º ato: Os donos de seu destino

Já era de tarde e uma ideia me veio quase no susto. Gramsci dizia que todos os homens são filósofos, possuem por assim dizer uma filosofia peculiar a todo mundo e concluía que sua capacidade crítica poderia os tornar donos de seu próprio destino.

Eventualmente um pensamento como esse tenha vindo, porque uma cena curiosa me chamou atenção.

Era uma família de trabalhadores, todos negros, vendendo água e cerveja. Uma senhora por volta de seus 80 anos encostou bem na lateral no isopor e pôs a olhar para cima. Acompanhei o movimento dela até onde ia repousar os olhos. Eram uma fileira de policiais.

Um deles exigia que retirasse uma corda usada para delimitar o espaço de trabalho deles para que os soldados pudessem passar. Não consegui ouvir a conversa. Mas só via a cabeça dela balançando de um lado pro outro, em um sinal negativo. Isso aconteceu por mais quatro vezes. Daí eles desistiram.

Ali percebi que éramos donos do nosso próprio destino. A força para enfrentar a polícia residia em cada um dos foliões, jovens trabalhadores que viam no galo não uma festa qualquer, mas uma festa nossa. Mas atenção, sempre de olhos bem abertos, porque a luta de classes não para um só instante.

A cultura como um produto social coletivo é uma obra inviolável. Com o Galo não seria diferente. Naquelas horas que atravessam a madrugada até o dia seguinte, a rua e a cidade não eram mais da classe dominante. Não tem como negar.

Acho que aqui Gramsci estava certo. Apenas a classe dominante vê os trabalhadores como seres incapazes e que a filosofia é um exercício de uma casta diletante.

É inestimável sua capacidade de criação. Os choques da consciência dos despossuídos com a ideologia dominante com suas crenças rituais, tradições, costumes e tradição mostram que sua filosofia espontânea ainda que aguardando percorrer seu caminho histórico, em muito supera a degenerada consciência burguesa. O Galo é prova disso.




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