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A Cine-Verdade de Outubro de 1917

Araçá

A Cine-Verdade de Outubro de 1917

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O período que vai da revolução de fevereiro de 1917 ao primeiro aniversário da revolução de Outubro, ao final de 1918, foi um período tenso e crítico na história mundial que abrange a construção, a realização e o início da consolidação da revolução dirigida por Lênin, Trótski, Kollontai e outros bolcheviques. Não por um acaso é em registrar esse período que Dziga Vertov se empenha em seu primeiro longa-metragem Aniversário da Revolução, de 1918, possivelmente o primeiro documentário longa-metragem da história e que permaneceu em grande parte perdido (como outro filme do autor, A História da Guerra Civil de 1921), tendo dele restado apenas 12 minutos até ter sido reencontrado e restaurado em sua totalidade no ano de 2018. Esse reencontro e restauro de um registro no calor do momento do processo revolucionário mais importante da história suscita consigo uma questão central: como o cinema soviético viu Outubro?

Dziga Vertov, Kino-Glaz e Kino-Pravda

Vertov foi um dos primeiros cineastas soviéticos, figurando entre seus contemporâneos nomes gigantescos da história do cinema como Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin, todos entendidos como parte de um mesmo período vanguardista da montagem soviética e todos cineastas que tiveram suas respectivas representações da Revolução de Outubro. Apesar de pertencerem a um mesmo momento, Vertov e seus contemporâneos divergiam radicalmente quanto às suas concepções sobre arte e mais especificamente sobre o cinema.
Inimigo declarado do cinema de ficção, Vertov declara guerra ao antigo cinema em seu manifesto NÓS, escrito em 1919:

“Nós nos denominamos KINOKS para nos diferenciar dos “cineastas”, esse bando de ambulantes andrajosos que impingem com vantagem as suas velharias.
[...]
NÓS declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra.
— Afastem-se deles!
— Não os olhem!
— Perigo de morte!
— Contagiosos!
NÓS afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente.
A morte da “cinematografia” é indispensável para que a arte cinematográfica possa viver.
NÓS os concitamos a acelerar sua morte.” [1]

Mas o que fazer no lugar dos “velhos filmes romanceados e teatrais”? O que então seria o cinema? Que faria então a câmera? Vertov tem uma noção única sobre isso. À concepção da câmera e do cinema como mímesis do olho humano, como aproximação da realidade que nossos olhos alcançam, Vertov nos responde:

“A sentença de morte pronunciada pelos kinoks em 1919 contra todos os filmes, sem exceção, permanece válida ainda hoje. Nem um exame mais atento pôde revelar filme ou pesquisa que traduzisse a aspiração legítima de libertar a câmera reduzida a uma lamentável escravidão, submetida que foi à imperfeição e à miopia do olho humano.
[...]
Até hoje, nós violentávamos a câmera forçando-a a copiar o trabalho do olho humano, Quanto melhor a cópia, mais se ficava contente com a tomada de cena. Doravante, a câmera estará liberta e nós a faremos funcionar na direção oposta, o mais possível distanciada da cópia.
No limiar das fraquezas do olho humano. Nós professamos o cine-olho, que revela no caos do movimento a resultante do movimento límpido; nós professamos o cine-olho e sua mensuração do tempo e do espaço, o cine-olho que se eleva como força e possibilidade, até a afirmação de si próprio.
[...]
Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, vos mostro o mundo do modo como só eu posso vê-lo.” [2]

Surge então o cine-olho (Kino-Glaz), conceito vertoviano para a visão que apenas a câmera como máquina pode ter. Apreender os micro-movimentos de um homem caminhando através da câmera lenta, apreender detalhes minúsculos, cenas distantes através do zoom, proporcionar vistas de onde um humano jamais poderia estar, a câmera e seu cine-olho superam a vista humana, superam a realidade humana se aproximando mais ainda da verdade como não conseguimos alcançá-la. Vertov, com o cine-olho, quer captar a orquestração do mundo, quer um cinema que seja arma contra a fetichização capitalista, um cinema que alcance a Cine-Verdade (Kino-Pravda).

Em busca dessa verdade, Vertov registra e monta os momentos da revolução de outubro em seu documentário. Mas por que um enfoque nesse filme de Vertov? O que esse registro dele nos trás que outros registros do cinema soviético não trazem? Essas respostas podemos encontrar comparando-o com Outubro, filme de 1927, de Sergei Eisenstein, contemporâneo de Vertov (e muito mais reconhecido no ocidente, ao menos até Jean-Luc Godard resgatar a figura de Vertov com seu coletivo de cineastas) que, em homenagem aos 10 anos da revolução de 1917, montou seu épico revolucionário, mas não sem conflitos em sua produção. Mas, para entender bem o que foram esses conflitos e poder chegar às diferenças centrais das representações de Outubro, precisamos de uma contextualização histórica.

A campanha literária: As Lições de Outubro e julgamento dos epígonos

Em preparação para a publicação do terceiro volume das suas obras completas, Trótski escreve um prefácio à edição: Lições de Outubro, onde retoma a discussão sobre tática e estratégia revolucionária e o papel central do partido e da direção no processo de transformação de situações revolucionárias em revoluções. Analisa também as discussões internas do partido bolchevique durante o ano de 1917, expõe o racha entre uma ala democrática-defensista e uma ala proletária-revolucionária do partido, discorre sobre as manifestações conservadoras na direção e critica o defensismo da ala direita do partido bolchevique à época, principalmente nas figuras de Zinoviev, Kamenev e Noguin.

Esse prefácio desencadeou o que ficou conhecido como “Campanha literária”, uma sequência de textos e falas de Stalin e seus aliados (destaque aos próprios Zinoviev e Kamenev com quem compôs a troika) em ataque ao espantalho do “trotskismo”, numa tentativa de deslegitimar a Oposição de Esquerda que se estruturou no seio do partido bolchevique em 1923. Destes textos lançados entre 1924 e 1925, três se destacam: “Trotskismo ou Leninismo?” (Stalin), “Bolchevismo ou Trotskismo” (Zinoviev) e “Leninismo ou Trotskismo?” (Kamenev). Em seu discurso, Stalin define os três pilares do “Trotskismo” -–- que Zinoviev e Kamenev confessaram ter sido inventado em uma disputa pelo poder — durante a luta do grupo de Stalin contra a Oposição de Esquerda. Seriam eles:

1. O trotskismo é a teoria da revolução "permanente" (ininterrupta). E que é a revolução permanente, tal como a entende Trotski? É a revolução que não leva em conta os camponeses pobres como força revolucionária. A revolução "permanente" de Trotski significa, como disse Lênin, "passar por cima" do movimento camponês, "brincar com a tomada do Poder".

2. O trotskismo é a falta de confiança no espírito bolchevique do Partido, no seu caráter monolítico, na sua hostilidade aos elementos oportunistas. No campo da organização o trotskismo é a teoria da convivência dos revolucionários com os oportunistas, com seus grupos e grupelhos no seio de um só partido.

3. O trotskismo é a desconfiança nos chefes do bolchevismo uma tentativa de desacreditá-los, de difamá-los.

Quanto ao primeiro ponto, o próprio Trótski já o respondeu tantas repetidas vezes que me furto a oportunidade de respondê-lo em minhas palavras, vejamos as do próprio acusado:

“Ao contrário do que rezam as lendas absurdas dos últimos anos, estava então perfeitamente convencido de que a revolução agrária e, por conseguinte, a revolução democrática, só podia realizar-se no curso da luta contra a burguesia liberal, pelos esforços conjugados dos operários e dos camponeses. Opunha-me, porém, à fórmula da “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses”, por achar que tinha o defeito de deixar sem resposta a pergunta: A qual dessas duas classes pertencerá a ditadura real? Procurava demonstrar que, a despeito de sua enorme importância social e revolucionária, os camponeses não são capazes de formar um partido verdadeiramente independente e, muito menos, de concentrar o poder revolucionário nas mãos desse partido. Em todas as revoluções passadas, a partir da Reforma alemã do século XVI e mais cedo ainda, os camponeses rebelados deram sempre seu apoio a uma das frações da burguesia das cidades, permitindo-lhe, muitas vezes, alcançar a vitória. Assim também, considerava eu que, em nossa revolução burguesa retardada, os camponeses, no momento supremo da luta, podiam prestar um auxílio análogo ao proletariado e ajudá-lo a tomar o poder. Cheguei, assim, à conclusão de que a nossa revolução burguesa só podia realizar de fato as suas tarefas no caso de o proletariado, apoiado pelos milhões de camponeses, concentrar em suas mãos a ditadura revolucionária. Qual seria o conteúdo social dessa ditadura? Antes de mais nada, sua missão consistiría em levar até o fim a revolução agrária e a reconstrução democrática do Estado. Em outras palavras, a ditadura do proletariado tomar-se-ia a arma com a qual seriam alcançados os objetivos históricos da revolução burguesa retardatária. Mas esta não poderia ser contida aí. No poder, o proletariado seria obrigado a fazer incursões cada vez mais profundas no domínio da propriedade privada em geral, ou, seja, empreender o rumo das medidas socialistas.” [3]

Os dois pontos seguintes podem ser resumidos à incapacidade histórica (e ainda hoje facilmente aferível na prática militante) do stalinismo de distinguir embate teórico de ataques pessoais, dado seu personalismo incorrigível. Trótski no próprio Lições de Outubro reforça o sentido de seus apontamentos:

“Já dissemos, mas voltamos a dizer: o estudo das nossas divergências não pode nem deve ser considerado, absolutamente, como dirigido contra os camaradas que então defenderam uma política errada. Mas, por outro lado, seria inadmissível riscar o capítulo mais importante da história do partido, só porque todos os seus membros não andavam então a par da revolução do proletariado. O partido pode e deve conhecer todo o seu passado para apreciá-lo convenientemente e pôr as coisas nos seus devidos lugares. A tradição de um partido revolucionário não é feita de reticências, mas de clareza política.” [4]

Mas, tomando a análise de Trótski como mero ataque pessoal e se aproveitando politicamente disso, os epígonos responderam à incursão sobre a história de Outubro inventando sua própria história de Outubro. Nas palavras do marxista polonês Isaac Deutscher:

“Eles produziram sua própria versão da história da revolução, na qual eles minimizaram ou até negaram suas hesitações, incompreensões e desacordos com Lenin. Também fizeram seu mellhor para reduzir o papel de Trótski em 1917. Esta foi a primeira de uma muito longa série dessas bizarras ‘revisões’ e ‘correções’ que, ao fim, foram para tornar a história da revolução um quase ilegível palimpsesto, onde incontáveis e conflituosas narrativas foram superimpostas sob as outras.” [5]

Entre essas fabricações acerca da história da Revolução de Outubro, Stalin presenteou todos que ouviam seu discurso em 19 de Novembro de 1924 com uma das mais absurdas: que “Trotski não teve nem podia ter nenhum papel particular na insurreição de Outubro e que, como presidente do Soviete de Petrogrado, não fez senão seguir a vontade das instâncias competentes do Partido, que guiavam todos os seus passos”. Até hoje diversos partidos e movimentos stalinistas ao redor do mundo tentam sustentar essa mentira contra toda e qualquer leitura factual de Outubro. Se isso Stalin diz em 1924, após a morte de Lênin, o que diziam os contemporâneos da revolução de 1917? Vejamos que diz Rosa Luxemburgo em seu A Revolução Russa, de 1918 (daqui em diante, destaques meus):

“Tudo o que, num momento histórico, um partido pode dar em termos de coragem, energia, perspicácia revolucionária e coerência foi plenamente realizado por Lênin, Trotsky e seus companheiros. Toda a honra e capacidade de ação revolucionárias, que faltaram à social -democracia ocidental, encontravam -se nos bolcheviques. Com sua insurreição de outubro, não somente salvaram, de fato, a Revolução Russa, mas também a honra do socialismo internacional.” [6]

Interessante. Vejamos o que o jornalista americano John Reed registra em diversos momentos de seu relato no calor do momento da revolução, Dez Dias que Abalaram o Mundo:

“Enquanto isso, permanecia reunida a Conferência para a Formação do Novo Governo realizada pelo Vikzhel. Os dois lados haviam chegado a um acordo de princípio quanto à base do governo; discutia-se a composição do Conselho do Povo. O gabinete já estava esboçado, tendo Tchernov como primeiro-ministro; os bolcheviques eram admitidos, em franca minoria, mas estavam vetados os nomes de Lênin e Trótski.”

“Esse era o estado de espírito reinante entre os dirigentes bolcheviques. A um jornalista estrangeiro que lhe perguntou qual declaração ele gostaria de dar ao mundo, Trótski respondeu: ‘Neste momento, a única declaração possível é aquela que estamos dando através das bocas de nossos canhões!”

“Veio então Trótski, altamente inflamado: ‘Dou-lhes boas-vindas, camaradas camponeses! Vocês estão aqui não como visitantes, mas como senhores desta casa, que abriga o coração da Revolução Russa. Os anseios de milhões de trabalhadores estão agora concentrados nesta sala… Só existe um senhor da terra russa: a união dos operários, soldados e camponeses…”

“O Congresso deveria se reunir à uma da tarde. A sala de reuniões Jam estava lotada fazia muito tempo, mas, às sete da noite, não havia nem sinais da chegada dos integrantes da mesa dos trabalhos… Os bolcheviques e os Socialistas Revolucionários de Esquerda estavam reunidos em suas próprias salas. Lênin e Trótski tinham passado a tarde inteira enfrentando os partidários de alguma conciliação. Uma parcela considerável dos bolcheviques era favorável a que se abrisse o caminho à formação de um governo que reunisse todos os socialistas.”

E até o próprio Stalin reconheceu o papel de destaque de Trótski durante a Revolução de Outubro no trecho final (que foi suprimido das publicações posteriores à morte de Lenin) de um texto no Pravda em 6 de novembro de 1918:

"Todo trabalho de organização prática da insurreição foi realizado sob a direção imediata de Trotsky, presidente do Soviete de Petrogrado. Pode-se dizer, com toda certeza, que a passagem rápida da guarnição para o lado do Soviete, e a hábil organização do trabalho do Comitê de guerra revolucionário, o Partido o deve antes de tudo e sobretudo ao camarada Trotsky.” [7]

Caso não sejam suficientes aos mais exigentes, dado a proximidade dos três com os dois principais dirigentes da revolução, peguemos exemplos mais distantes. Em 1919, o consagrado escritor carioca Lima Barreto escreve em seu texto Sobre o Maximalismo [8]:

“[...] os nossos sabichões não têm nem uma espécie de argumento para contrapor aos apresentados pelos que têm meditado sobre as questões sociais e veem na revolução russa uma das mais originais e profundas que se tem verificado nas sociedades humanas. Os doutores da burguesia limitam-se a acoimar Lênin, Trótski e seus companheiros de vendidos aos alemães.” [9]

E o exemplo de Lima Barreto também não é um ponto fora da curva, isso fica claro com o estudo que nos fornece o historiador Moniz Bandeira em seu livro O Ano Vermelho: A Revolução Russa e seus reflexos no Brasil, onde se lê:

“Outro líder russo da revolução socialista, que ocupou as primeiras páginas dos jornais, foi Leon Trótski, cujo nome, em certas ocasiões, chegou a rivalizar com o próprio Lênin. Naquele tempo, aliás, costumava-se conjugar o nome de Lênin com o de Trótski. A “ditadura de Lênin e Trótski" — assim chamavam o governo soviético.” [10]

Creio que com esses exemplos, cai por terra o mito. Mas Stalin prossegue com um outro argumento, argumenta que na conferência do partido de 16 de Outubro de 1917, criou-se um “centro prático para dirigir a organização da insurreição” composto por Sverdlov, Stalin, Bubnov, Uritsky e Dzerjisnky. Stalin segue: “Como vedes, nesta reunião do CC, ocorreu qualquer coisa de ‘horrível’, isto é, no centro prático, incumbido de dirigir a insurreição, ‘estranhavelmente’ não entrou o ‘inspirador’, a ‘figura principal’ o ‘único dirigente’ da insurreição, Trotski” e de fato, Trotski não fez parte deste centro prático, faltou apenas a Stalin um detalhe importante que pode ser visto nesse trecho da ata do Comitê Central de 16 de outubro:

“O Comitê Central organiza um centro militar revolucionário composto dos camaradas Sverdlov, Stalin, Bubnov, Uritsky e Dzerjinsky. ESTE CENTRO É PARTE INTEGRANTE DO COMITÊ REVOLUCIONÁRIO DOS SOVIETES.” [11]

O comitê revolucionário dos sovietes era exatamente o comitê militar revolucionário, órgão o qual os citados agora iriam completar como um centro e órgão cujo presidente era Trótski, sem necessidade então de ser designado novamente. Agora, tendo esse contexto em mente, voltemos à pergunta de antes: Por que esse enfoque no filme de Dziga Vertov? O que esse registro dele nos trás que outros registros do cinema soviético não trazem?

Apresentação dos Comissários do povo em Aniversário da Revolução (1918) de Dziga Vertov. Nas plaquetas lê-se: “Cabeça do governo soviético e líder do proletariado: Vladimir Ilyich Lenin (Ulyanov)” e “Comissário do povo em questões militares e navais: Lev Davidovitch Trotsky”

Outubro (1927), Outubro e conclusões

O Aniversário da Revolução ter sido lançado um ano após Outubro de 1917 é um fato muito importante. Antes da morte de Lenin, antes da consolidação da Oposição de Esquerda, antes de uma campanha mais estruturada de falsificações vindas do grupo de Stalin. Feito em um momento de euforia pela infinitude de possibilidades nos horizontes da arte que a revolução proletária trazia consigo, Aniversário da Revolução é um registro essencial para a história do cinema soviético, para além de ser um passo curto porém ousado para avanço radical do cinema. Em seu pontapé inicial, Vertov nos conta Fevereiro, Outubro, um recém consolidado Conselho de comissários do povo, um início de Guerra Civil, o início das comunas de trabalho ao mesmo tempo que aponta para um futuro radicalmente novo. Vejamos em contraste Outubro de Eisenstein. Grande épico da Revolução de Bolchevique, Outubro ou Dez dias que abalaram o mundo foi lançado em comemoração aos 10 anos da revolução de 1917, ou seja, em 1927 em meio a diversas discussões no Partido Bolchevique que resultam na expulsão de Trótski e outros membros do partido. Outubro é um filme denso e sobre isso nos diz o teórico do cinema Paulo Emílio Sales Gomes, comparando Outubro com o grande sucesso de Eisenstein, Encouraçado Potemkin:

“É provável que se possam dividir os filmes em duas categorias: os que nos fazem solicitações e os que se prestam às nossas exigências. De qualquer forma, as duas fitas de Eisenstein que nos ocupam se enquadram rigorosamente nesse esquema. Em Potemkin o foco de exigência é o espectador, em Outubro é a fita. Potemkin responde facilmente, Outubro faz perguntas difíceis. Os espectadores escolhem Potemkin; Outubro seleciona os seus. O chamado espectador exigente está perdido com Outubro, a fita precisa dos exigidos. Potemkin é o amor à primeira vista, fácil, que se prolonga numa felicidade calorosa que independe do progresso, mas o amor difícil de Outubro é certamente mais compensador para o espírito moderno. Potemkin é Baudelaire; Outubro, Mallarmé.” [12]

Pôsteres de Aniversário da Revolução (Vertov, 1918), Outubro (Eisenstein, 1927) e O Fim de São Petersburgo (Pudovkin, 1927), respectivamente.

Paulo Emílio chega a afirmar que “Outubro é, certamente, o filme mais rico e complexo que já se fez”, mas o que haveria de problema então nessa representação? O próprio Paulo Emílio nos aponta isso:

"A reconstituição de alguns episódios é às vezes praticamente documental. Uma tomada da repressão de julho foi inspirada tão de perto por uma fotografia da época, que em livros de história a imagem do filme é usada como se fosse o documento original. E não é o único caso. Todos os textos relativos à Revolução de Outubro descrevem a cena em que Lênin, disfarçado, é reconhecido no Instituto Smolny por dois líderes conciliadores, Dan e Skobelev. A filmagem eisensteiniana acompanhou tão meticulosamente os depoimentos históricos que não choca a presença de um fotograma ao lado de fotos documentais num volume de divulgação histórica. Tem-se a convicção íntima de que, se o fato real tivesse sido filmado, o resultado seria muito próximo do que vemos em Outubro. O que contribuiu decididamente para a impressão de verdade que nos dá o lado de crônica e documento de Outubro é o cuidado e a inteligência com que Eisenstein e seus colaboradores estudam os filmes de montagem de Esther Shub. Outubro, entretanto, não é um curso de história. O filme a exprime e interpreta muito mais do que relata." [13]

Essa impressão de verdade, essa suspensão da realidade que nos faz acreditar, nem que por um mísero segundo, que o que está na tela é a realidade, esse distanciamento do ambiente que é tão caro ao cinema, se torna aqui um problema quando um fator central da Revolução de Outubro não está presente: Leon Trótski. Paulo Emílio segue:

“Parece que na versão original Trotski, que realmente teve uma atuação de primeiro plano nos acontecimentos de outubro como dirigente da organização militar para a insurreição e presidente do Soviete de Petrogrado, assumia importante papel. As variações da política exigiram que o futuro líder do Exército Vermelho praticamente desaparecesse da película.” [14]

Imagens de Trotsky em Aniversário da Revolução (1918) durante a guerra civil. Discursa aos soldados e acompanha a conquista de Kazan.

E essa informação não se encontra exclusivamente nos textos do fundador da cinemateca brasileira. O professor e pesquisador de cinema Arlindo Machado relata esse sumiço em seu Eisenstein: Geometria do Êxtase:

“Os problemas mesmo começam a partir de Outubro, seu terceiro longa-metragem. Eisenstein rodou essa obra num momento muito conturbado da União Soviética: 1927 é a data em que Trotsky e todos os seus colaboradores reunidos na oposição de esquerda são expulsos do partido e deportados. O filme de Eisenstein sofreu profundamente os efeitos dessa luta política. Outubro deveria ser um ensaio sobre a revolução bolchevique de 1917, mas à medida que os principais personagens do evento caíam em desgraça no cenário político, eles caíam fora do filme também. Sabe-se que Stálin interveio diversas vezes nas filmagens: entre outras coisas, exigiu a supressão dos planos onde aparecia Trotsky (só ficou uma pequena ponta onde Trotsky é criticado por pretender adiar a data do levante) e a minimização do papel de Lênin nos acontecimentos.” [15]

Por último, a questão é explicitada também por Marie Seton, biógrafa de Eisenstein, em seu Sergei M. Eisenstein: a biography quando narra a vida de Eisenstein durante o processo de luta política entre a Oposição de Esquerda e a burocracia stalinista:

“Sergei Mikhailovich, ocupado com questões de montagem, falhou em acompanhar essa disputa, ou prever o tamanho do cisma crescendo diariamente na interpretação marxista. Subitamente, ao invés de sua obra ser aclamada, foi contida. Foi-lhe pontuado que Outubro não poderia possivelmente ser lançado como programado pois mostrava Trotsky como um herói da Revolução de Outubro quando agora, na atualidade, Trotsky havia se provado um traidor da Revolução.
[...]
Pudovkin ao invés de Eisenstein foi aclamado por seu filme O fim de São Petersburgo, enquanto Sergei Mikhailovich foi deixado com a provação de deletar Trotsky de seu épico da revolução. Tomou-lhe cinco meses para re-editar Outubro para que não fosse uma história pró-Trotsky, propaganda pró-Trotsky em sua interpretação histórica.
[...]
Os críticos agitaram-se inquietos; eles não tinham ideia do que dizer sobre. Essa era a Revolução como eles a conheciam. Todos os elementos de destaque estavam presentes — exceto Trotsky.” [16]

Leon Trotsky, Lunatcharsky e Alexandra Kollontai, destacados em Aniversário da Revolução. Nas plaquetas anteriores a cada uma das imagens lê-se respectivamente “Aqui estavam os líderes da revolução, entre eles: Trotsky”, “Lunatcharsky,”, “Kollontai, e outros”.

Não entro no mérito artístico da beleza, da urgência e emoção do filme de Eisenstein, neste texto isso não vem ao caso. Mas há algo que a reconstrução da história da revolução nesse filme, diferente do de Vertov, explicita: esse é apenas um entre tantos exemplos do legado stalinista marcado como uma chaga na história da arte russa. Em um texto de novembro de 1945 a escritora modernista Pagu analisa o esgotamento do realismo soviético como forma de expressão artística e, por consequência, o esgotamento artístico do romance proletário e de seus representantes no Brasil, como Jorge Amado. Pagu encerra o texto de forma catastrofista, se posso me valer da expressão, jogando o bebê fora com a água do banho:

“O gênero já deu o que tinha de dar – outros rumos surgem e deverão reabilitar esta precária literatura brasileira. Para isso trabalhamos. Do ponto de vista literário foi negativa para o mundo e para nós a influência ou influências decorrentes da revolução de 17. Uma literatura traída.” [17]

Discordo de Pagu. Do ponto de vista literário foi mais que positiva para o mundo e para nós a influência ou influências decorrentes da revolução de 17. Claro, frente à repetição até o esgotamento das fórmulas do Realismo Soviético, que Górki e Cholokhov entre outros nomes tão profundamente amalgamaram à identidade da URSS, não me furto de sublinhar seu “Uma literatura traída”, mas entre isto e negar os impactos e avanços artísticos proporcionados pela revolução russa há a distinção essencial entre o molde estreito do realismo soviético e a liberdade da arte revolucionária, há a distinção essencial entre stalinismo e bolchevismo. Dos contos breves, brutais e críticos de Isaac Babel à prosa metálica e fria do Lasca de Vladimir Zazubrin, a revolução de outubro artisticamente foi apenas um brilhante relance do que é possível no campo da arte após a ruina do capitalismo.

Em suas Teses sobre o conceito de história Walter Benjamin nos esclarece que todo monumento à cultura é também um monumento à barbárie, logo o papel do materialista histórico-dialético (ou marxista, leninista, trotskista) é escovar a história a contrapelo. O resgate de Aniversário da Revolução, que nos resgata também a Revolução de Outubro, é mais uma pedra que estoura em partes o vitral da cultura stalinista e revela a barbárie sob a qual se sustenta. O resgate da história de Outubro é o resgate da história do primeiro país a legalizar o aborto, do primeiro país a descriminalizar a homossexualidade, do maior exemplo histórico dos trabalhadores tomando o céu por assalto. O resgate da história de Outubro é um dos primeiros passos.


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FOOTNOTES

[1VERTOV, Dziga, NÓS. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Paz e Terra. 2021. p.201-202

[2VERTOV, Dziga, Resolução do Conselho dos Três em 10-4-1923 In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Paz e Terra. 2021. p.205-207

[3TRÓTSKI, Leon. A Revolução Permanente. Ed. Kairós. 1984. p.20-21

[4TRÓTSKI, Leon. Lições de Outubro. Ed. Sundermann. 2007. p.117

[5DEUTSCHER, Isaac. Stalin: A polítical biography. Oxford University Press, 1966. p.280

[6LUXEMBURGO, Rosa. A Revolução Russa. Fundação Rosa Luxemburgo. 2017. p.48

[7TRÓTSKI, Leon. A Revolução Desfigurada. Livraria Editora Ciências Humanas. 1979. p.13

[8Maximalista foi uma das maneiras em que se traduziu ao português o termo bolchevique.

[9BARRETO, Lima. Sobre o Maximalismo. 1919. Acesso em: Sobre o maximalismo

[10BANDEIRA, Moniz. O Ano Vermelho. Ed. Brasiliense. 1980. p.93

[11TRÓTSKI, Leon. A Revolução Desfigurada. Livraria Editora Ciências Humanas. 1979. p.14

[12GOMES, Paulo Emílio Sales. Potemkin e Outubro. In: GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema e Política. Penguin-Companhia. 2021.

[13Ibidem.

[14Ibidem.

[15MACHADO, Arlindo. Eisenstein: Geometria do Êxtase. Brasiliense. p.12

[16SETON, Marie. Sergei M. Eisenstein: A Biography. Grove Press, inc. 1960. p.101-102

[17GALVÃO, Patrícia. Influência de uma revolução na literatura. In: BRETON, André e TRÓTSKI, Leon. Por uma arte revolucionária independente. Paz e Terra. 1985. p. 159
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Araçá

Estudante de Letras da UFRN e militante da Faísca Revolucionária
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