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A artista Thatiana Cardoso golpeia o amor romântico em exposição na Pinacoteca de São Bernardo do Campo

Gabriela De Laurentiis

A artista Thatiana Cardoso golpeia o amor romântico em exposição na Pinacoteca de São Bernardo do Campo

Gabriela De Laurentiis

Convite à mostra "O amor morre mais de ingestão do que de fome", da artista Thatiana Cardoso, que reúne uma série de trabalhos criados a partir de suas reflexões sobre golpes de amor e está em cartaz na Pinacoteca de São Bernardo do Campo até 29 de Junho.

Thatiana Cardoso (São Bernardo do Campo, 1984) é artista multimídia, cujo trabalho apresenta uma forte crítica feminista às imagens fragilizadas das mulheres. Trabalhando há mais de uma década entre os campos das artes visuais e do cinema, Cardoso participou de uma série de mostras nacionais e internacionais, entre as quais: Os algoritmos te trouxeram até mim e agora o satélite me leva até você (Paço das Artes, 2023); O Grande Circo do Patriarcado (Canteiro, São Paulo, 2023); Experimental Film & Music Video Festival (Toronto, 2023); Artistas mulheres do ABC e do Acervo da Pinacoteca de São Caetano do Sul (Pinacoteca de São Caetano do Sul, 2022); 21º Festival Internacional de Cinema (Contis, 2016).

Atualmente, está exibindo uma série de trabalhos criados a partir de suas reflexões sobre golpes de amor. A mostra O amor morre mais de ingestão do que de fome está em cartaz na Pinacoteca de São Bernardo do Campo, e tive o prazer de fazer a curadoria. A seguir publicamos o texto curatorial e deixamos o convite para uma visita.

O amor morre mais de indigestão do que de fome

O engano tem sido trabalhado por Thatiana Cardoso em seus 10 anos dedicados à profissão de artista e perpassa, de diferentes formas, toda a exposição apresentada na Pinacoteca de São Bernardo do Campo. As promessas do amor romântico, como salvador e fundamental na vida das mulheres, são construídas desde a infância, em histórias de princesas, brinquedos divididos por gênero, filmes da Disney. O amor romântico é um engano, parece lembrar a artista a todo tempo em sua exposição.

Na individual de Thatiana Cardoso é apresentada uma série de obras realizadas a partir de suas experiências com golpistas do amor¹. Durante mais de três anos, a artista coletou informações de figuras que fingiam, em redes sociais, ser amantes apaixonados, com intenção de roubar a ela e outras mulheres. Mal sabiam que eram eles que estavam sendo enganados.

Histórias de estelionatários sentimentais são frequentemente narradas em matérias jornalísticas, surgindo também em séries e novelas, entrecruzando ficção e realidade, verdade e mentira, em múltiplas camadas de sentido. Thatiana Cardoso explora e inventa possibilidades para histórias de golpes do amor, fingindo por meses ser uma contemporânea donzela apaixonada.

A artista conversa pelas redes sociais com golpistas do amor, analisando seus personagens, o quê e como falam, quais fotos exibem em perfis on-line, de que modo constroem imagens de si como amantes dedicados. Ela registra suas vozes narrando paixões irreais, printa seus falsos posts, ouve relatos sobre suas experiências nunca vividas enquanto soldados do Exército estadunidense ou como pais de filhos inexistentes.

No vídeo “O amor morre mais de indigestão do que de fome”, cujo título a mostra na Pinacoteca toma emprestado, vemos, sobre fundo rosa com desenhos de corações, trocas de mensagens de texto entre Thatiana Cardoso e um estelionatário. O áudio traz igualmente trechos de conversas gravadas durante uma ligação, com juras de amor e manifestações de desejo encenadas por ambos, artista e golpista.

Será, então, que não seria Thatiana Cardoso também uma golpista? Afinal, o rapaz conversa com ela durante dias sem ao menos desconfiar – e como poderia? – de que se tratava de uma artista enganando-o com o propósito de criar obras de arte.

Desenhos de corações são uma das principais representações de articulações entre desejo, amor e identidade feminina, e eles saem da tela de “O amor morre mais de indigestão do que de fome”, compondo a instalação inédita “Pegue um empréstimo” (2024). Nela há um arco de cerca de 2 m x 1,80 m, feito com rosas vermelhas artificiais, em desenho de coração. Ao seu lado, um urso de pelúcia medindo 1,90 m de altura, ao qual a artista dá o nome de “Ronaldo”. O título faz referência às respostas comumente ouvidas por pessoas vitimadas pelos golpistas do amor. Depois de dias namorando on-line, eles inventam desculpas – um presente barrado na alfândega, por exemplo – para pedir dinheiro.

Thatiana Cardoso conta ser comum estelionatários receberem respostas negativas em suas primeiras tentativas, uma vez que as pessoas vitimadas dizem não ter dinheiro para aquilo. Assim, eles respondem “pegue um empréstimo”, alegando que logo devolverão o valor. A instalação “Pegue um empréstimo” é criada com base em uma estética melodramática, rememorando programas populares na TV brasileira de algumas décadas atrás, como “Em nome do amor”, comandado por Silvio Santos.

Esse tom volta nas fotografias da série “Amar ou não amar mais” (2024), na qual ursos e corações ressurgem, auxiliando na construção de personagem encarnada pela própria artista. Ela está vestida de vermelho, performando uma figura intrigante, um tipo de punk-chic do melodrama, de lady-vingança latina. As fotografias são de Marina Maeda, e nelas a performer abraça, pisa, carrega, degola Ronaldo, o urso de pelúcia.

Na série de fotografias “Instantes” (2024), feitas em parceria com Gabriel Augusto, dípticos apresentam a artista em cenários domésticos variados, ora ao lado de Ronaldo, ora sozinha. Com a ausência e presença do companheiro de pelúcia, trata da solidão do amor romântico, no esvaziamento de seus signos.

Ursos de pelúcia instigam inúmeros pensamentos envolvendo patriarcado, arte e mulheres. Das cantoras pop Miley Cyrus e Pink, passando por artistas como Ana Miguel e Guilhermina Bustos, articulando e subvertendo noções de fofura, feminilidade, agressividade, violência. Em “Explosão de amor” (2024), outra instalação inédita, 30 ursinhos de 25 cm, empunham granadas de brinquedo – levando os pensamentos à fotografia “Child with toy hand grenade in Central Park” (“Criança com granada de brinquedo no Central Park”, 1962), de Diane Arbus.

As granadas substituindo corações – comumente incorporados às mãos de ursos de pelúcia dedicados ao amor – produzem um entrecruzamento de sentidos na obra “Today and every day you are in my thoughts and in my heart” (“Hoje e todos os dias você está em meus pensamentos e no meu coração”, 2024). A série de fotografias é feita com prints de imagens encontradas pela artista nas redes sociais dos golpistas. Desejo de aprovação, real e virtual, mentira e verdade são tensionados pelas obras de Thatiana Cardoso, lembrando as relações complexas que mobilizam violência e amor.

A repetição de elementos em diferentes situações explicita algo importante na poética de Thatiana Cardoso, que procura formas de construir e compartilhar um repertório particular. Nesse movimento, discute problemas relativos à violência, ao romance, às limitações da identidade Mulher assujeitada às misóginas e desejosa de um amor-prisão.

A exposição “O amor morre mais de indigestão do que de fome” traz expressões da imaginação de Thatiana Cardoso, diante da compreensão do amor romântico como um golpe, um engano. Ela ficcionaliza posições que poderiam ser reais, constrói paralelos entre as personagens inventadas e sua própria vida.

As inversões e reinversões de papéis operadas de múltiplas formas pela artista expressam sua perspicácia e inteligência. Os trabalhos convidam o público a questionar as armadilhas do amor romântico. Thatiana Cardoso apresenta obras em múltiplas mídias, mobilizando repertórios imagéticos, pictóricos e conceituais variados, expressando a potência de sua condição de artista independente.

FICHA TÉCNICA DA EXPOSIÇÃO:
Artista: Thatiana Cardoso
Curadoria: Gabriela De laurentiis
Projeto expográfico: João Mascaro
Produção: Diana Vaz
Montagem: Daniel Zagati
Identidade visual: Leandro Gutum
Assessoria de imprensa: Elaine Leme
Ensaio fotográfico: Paula Luppi
Tradução: Rogério Barbosa
Fotografia da exposição: Ana Helena Lima

O projeto foi premiado no edital ProAC 12/ 2023 (exposições inéditas) e teve apoio do Governo do Estado de São Paulo e da Secretaria de Cultura e Economia Criativa.

Visitas: até 29 de junho
terças-feiras das 09h às 20h,
quarta a sexta das 09h às 17h
último sábado de cada mês, das 10h às 16h.

Endereço: rua Kara, 105, no Jardim do Mar, São Bernardo do Campo.

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    NOTAS DE RODAPÉ:
    1. A artista trabalhou sobre o tema em sua primeira individual, “Os algoritmos te trouxeram até mim, agora o satélite me leva até você”, selecionada para a Temporada de Projetos do Paço das Artes, São Paulo (2023).

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    Gabriela De Laurentiis | @gabilaurentiis | trabalha como artista, pesquisadora e professora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação da FAU-USP, é autora de artigos e do livro Louise Bourgeois e modos feministas de criar (Annablume, 2017), editado em espanhol pela NoLibros (2020). E desde fevereiro (2021) colabora como autora independente com artigos de opinião, divulgação de exposições etc, na sessão de cultura do Esquerda Diário.


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    artista, pesquisadora e professora
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