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BRICS: o concílio dos divergentes

André Barbieri

BRICS: o concílio dos divergentes

André Barbieri

Nesse artigo, abordamos a nova configuração dos BRICS, saído de sua 15º cúpula em Joanesburgo, na África do Sul, assim como as divergências que imperam entre os membros componentes. O que unifica essa corte de heterogeneidades e onde se localiza no tabuleiro da fragmentação geopolítica atual?

As tendências à fragmentação econômica vão adotando expressão organizada a partir do surgimento dos blocos geopolíticos rivais. Depois de muitos anos amargando a quase irrelevância, o bloco dos BRICS (conformado originalmente em 2009 por Brasil, Rússia, Índia, China, agregando a África do Sul em 2011) chamou a atenção do mundo na sua recente 15º cúpula em Joanesburgo. Na ocasião, sob os auspícios da China, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa (que conferiu a Xi Jinping a honorária “Ordem da África do Sul”) anunciou a expansão do bloco, com a entrada de mais seis nações a partir de 2024: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. O plano de expansão havia começado durante a presidência chinesa dos BRICS, e Xi Jinping parece especialmente interessado no crescimento numérico do bloco, assim como nas relações de subordinação econômica e geopolítica sobre cada um dos membros, independentemente da coesão geral nas escolhas.

Os BRICS representam hoje 24% do PIB global, 16% das exportações mundiais e 15% das importações mundiais de bens e serviços, o que aumentará (ainda que pouco) com o ingresso das outras seis economias. Em termos de paridade de poder de compra (PPP, purchasing power parity, em inglês), a diferença é maior, como quis esbanjar Lula. Excluindo a União Europeia - que é classificada como um membro "não listado" do G7 - o grupo das principais potências imperialistas ocidentais representa apenas 9,8% da população mundial e 29,8% do PIB global, calculado pela paridade do poder de compra. O novo grupo do BRICS será responsável por 47% da população mundial e 37% de seu PIB por esta medição.

Como a superpotência mais poderosa do bloco, a China dominou as decisões centrais, em muito maior medida que até aqui, inaugurando a espécie de liderança não-oficial dos BRICS (embora haja maleabilidade nas orientações nacionais de cada membro). Apesar da maior heterogeneidade e das contradições internas do bloco, o objetivo de Xi é usá-lo para revigorar o conceito da “geopolítica Sul-Sul” que se estabelece como um contraponto ao G7 (grupo que inclui Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França, Japão, Canadá e Itália) e à ordem internacional dominada por Washington [1]. Segundo Moritz Rudolf, do Paul Tsai Center nos EUA, “o foco de Pequim é criar um contrapeso para o G7, e o fortalecimento do clube dos BRICS é uma ferramenta valiosa na busca pela liderança chinesa”. De acordo com James Kynge, do Financial Times, “o grupo ampliado dos BRICS representa o bloco mais influente que o mundo em desenvolvimento já produziu. Há uma sensação de que, depois de décadas aceitando as regras do Ocidente, a era do ’sul global’ está chegando”.

Enquanto a China estava ocupada nos BRICS, os Estados Unidos alentavam o seu próprio novo bloco na Ásia-Pacífico. Em 18 de agosto, Biden foi o anfitrião de uma cúpula em Camp David com os líderes do Japão e da Coreia do Sul, que concordaram em intensificar a cooperação com mísseis balísticos e estabelecer uma linha direta militar com o Pentágono. Anteriormente, Biden havia fechado acordos para permitir que os Estados Unidos usassem mais bases militares nas Filipinas e em Papua Nova Guiné. Enquanto isso, a relação de defesa "inquebrantável" com a Austrália está se aprofundando, após o acordo AUKUS, que permitirá à Austrália desenvolver submarinos nucleares (ainda que sem armamento nuclear), em meio a uma enxurrada de acordos de equipamentos e exercícios militares.

De um primeiro ponto de vista, a situação muda favoravelmente aos membros do bloco. Imagine-se uma cúpula que por toda a década de 2010 a 2020 não tinha importância alguma para os cálculos das grandes potências ocidentais. “Nós éramos chamados de terceiro mundo, depois cansaram e começaram a chamar de países em via de desenvolvimento e agora nós somos o Sul Global. O que é importante nisso é que o mundo está mudando. A economia também começa a mudar, a geopolítica começa a mudar porque as coisas vão acontecendo e a gente vai ganhando consciência de que nós temos que nos organizar”, disse Lula, celebrando o acordo de expansão. Não cabe esquecer que o Brasil temia, desde o início, a diminuição de sua posição relativa nos BRICS caso o bloco se ampliasse. Lula aceitou a pressão chinesa pela expansão, colocando em troca a exigência de que o Partido Comunista interviesse publicamente pela admissão brasileira no Conselho de Segurança da ONU, algo sem muita relevância.

A comemoração diante do fato consumado, imposto pela relação de forças que favorece Pequim, não quer dizer que Lula saia de mãos vazias. Ainda que analistas como William Waack tenham razão em dizer que a China se impôs ao Brasil com a recompensa de uma ilusão na ONU, Lula tem um crédito político a aproveitar. Com a nova importância dos BRICS, Lula se encontra em posição forte para negociar com seus aliados latino-americanos, africanos e asiáticos, sendo reconhecido como um dos líderes principais do bloco “Sul-Sul”. Isso já se expressa com a Argentina, que ingressou com agradecimentos ao Brasil, e poderá acontecer com a Venezuela. Em países africanos como Angola, em que as grandes empreiteiras brasileiras tem altos interesses de investimentos, como a Novonor (antiga Odebrecht) e a Camargo Correa, Lula poderá gozar de mais influência política no acomodamento de interesses regionais vinculados aos BRICS.

Havíamos escrito que a inclinação de Lula ao “multilateralismo benigno” do capitalismo chinês está inscrito na dinâmica da “dupla dependência” do Brasil no campo mundial, ou seja, na debilidade estrutural que força o Estado brasileiro a servir dois amos, Estados Unidos e China [2], sem romper com ninguém e aproveitando, mediante reforço da submissão, para extrair o possível nas negociações com ambos os adversários. Haddad e Lula disseram que os BRICS não serão “rivais do G7, nem um bloco anti-ocidental”, tratando de pacificar o imperialismo norte-americano e as potências imperialistas europeias com as quais quer selar acordos pelo Mercosul. Mas, com a nova configuração dos BRICS sob liderança chinesa, o Brasil se encontra no interior de uma dinâmica de rivalidade direta entre Washington e Pequim, que terá de lidar no marco da sua política de “não alinhamento automático”.

Trata-se de uma localização nova para a América Latina. Naturalmente, não temos a entrada generalizada do subcontinente nos BRICS (apenas Brasil e Argentina, por ora, estariam no bloco), e a velha sina da múltipla dependência e do atraso das economias capitalistas regionais persiste. Entretanto, com a participação prevista de Brasil e Argentina tanto no G20 quanto nos BRICS, duas das principais economias latino-americanas participam, como membros geopoliticamente frágeis, de organismos que expressam hoje a competição entre as potências. No interior dos blocos, os governos regionais propõem transformar a submissão pendular a Washington e Pequim em melhores condições de chantagem. O discurso de Lula, enaltecendo uma suposta maior soberania, é o produto de uma imaginação fértil. Brasil, Argentina e demais ingressantes são peões auxiliares da grande disputa sino-estadunidense, que exigirão lealdade na forma da contínua extração de recursos naturais (como o lítio e o petróleo) e na espoliação da força de trabalho local.

Apesar desse reposicionamento no tabuleiro internacional, os BRICS não se livraram de suas contradições de origem. Como escrevem os professores Carlos Eduardo Carvalho e João Paulo Nicolini, os BRICS “deram um grande passo, mas não se sabe bem em direção a quê”. As divergências são mais marcantes que as convergências, ao menos se comparadas com aquelas no interior do G7 (embora a grande imprensa exagere no incenso das coincidências entre nações imperialistas rivais, como Estados Unidos e Alemanha). No contexto da Guerra da Ucrânia, “ficam maiores as dificuldades para consensos em temas geopolíticos, com as diferenças existentes já entre fundadores, caso de Índia e China” Com efeito, Xi Jinping não estará pessoalmente na cúpula do G20, e estará representado pelo primeiro-ministro Li Qiang na reunião presidida rotativamente por Narendra Modi. Trata-se de um insulto à Índia, que tem abertas disputas de fronteira com a China.

Outro grande problema é saber se os governos que integram o bloco desejam ser parte dele. A Argentina, que foi admitida como novo membro, passa por eleições presidenciais. Javier Milei, representante da extrema direita, liderou os resultados nas eleições prévias de agosto. É um dos favoritos para chegar ao segundo turno, tendo sido catapultado ao centro da política pela conciliação de classes e os ajustes antioperários do governo Alberto Fernández e Cristina Kirchner (de maneira similar a como os governos do PT no Brasil abriram caminho para o bolsonarismo). Milei é contrário ao Mercosul, prometeu implodir as relações com governos como o de Lula, e afirmou que “não teria relações com a China”. Para além das extravagâncias retóricas, uma Argentina sob Milei seria uma persona non grata no interior dos BRICS.

Isso nos leva a delinear os principais desconcertos do bloco sobre o qual Lula diz repousar “a voz audível do terceiro mundo”:

1) Não existe um princípio coeso que fundamenta o objetivo dos BRICS. Xi Jinping e Vladimir Putin pressionam o bloco a atuar, em termos apocalípticos, como uma oposição mais ou menos direta ao bloco liderado pelos Estados Unidos (G7), e a China concebe que, quanto maior o PIB reunido nos BRICS, melhor sua posição na competição com as principais economias ocidentais para abocanhar nichos de acumulação. Já Brasil, Índia e África do Sul não subscrevem essa versão do conto, não querem criar um opositor ao Ocidente e inscrevem os BRICS dentro de sua estratégia de “não alinhamento automático”, que em termos claros significa sujeitar-se tanto a Washington como a Pequim. O propósito positivo do bloco é ainda mais nebuloso, ainda que para a China o que importe é o que o Partido Comunista possa fazer para mostrar força individual tendo a imagem dos BRICS atrás de si. A ilusão de que existiria um “Sul Global” mais capaz de pautar os acontecimentos esbarra na realidade das fronteiras e dos multifacetados interesses de seus membros. Não há por que atribuir ao Brasil uma maior capacidade de ação que é, em verdade, do capitalismo chinês.

2) A expansão aumenta o caráter heterogêneo dos BRICS. Arábia Saudita e Irã concluíram um processo de reinício de relações diplomáticas com a mediação ativa da China, não dos Estados Unidos, mas as duas potências são rivais diretas no interior do islamismo político; ademais, o país saudita tem relações diretas com Washington, enquanto o Irã as tem com Pequim. A Índia participa do Quad, a arquitetura de segurança anti-chinesa na Ásia-Pacífico, dirigida pelos Estados Unidos, e tem inúmeros conflitos de fronteira com a China. O Egito depende estruturalmente dos Estados Unidos e se inscreve na estratégia de segurança de Washington, mas seu maior parceiro comercial é a China, caso também da Etiópia. Os Emirados Árabes tem uma relação histórica com os EUA, mas junto com a Índia se abstiveram da votação contra a Rússia na ONU em função da invasão da Ucrânia. A Argentina tem laços de dependência permanentes com o FMI, embora estreite cada vez mais relações com a China e use o renminbi para pagamentos de sua dívida externa. Em todos esses casos, as dependências cruzadas compõem um mosaico muito contraditório de países, sem uma linha unificada de ação, como os EUA conseguiram, ao menos temporariamente pela Guerra da Ucrânia, com a OTAN.

3) O uso das moedas dos países-membros nas negociações dos BRICS pode aumentar, mas o yuan está longe de competir com o dólar. Cerca de metade de todos os empréstimos internacionais, títulos de dívida internacional e faturas comerciais são denominados em dólares americanos, enquanto 60% das reservas globais de câmbio são em dólares. O yuan chinês continua a ter ganhos graduais e a participação do renminbi no volume de negócios global de câmbio aumentou de menos de 1% há 20 anos para mais de 7% atualmente. No entanto, a moeda chinesa ainda representa apenas 3% das reservas cambiais globais. A possibilidade de uma moeda comum do bloco é uma fantasia na cabeça de Lula.

4) Ainda que o desafio dos BRICS seja limitado, claramente se inscreve em uma nova etapa, em que a luta pela partilha da mais-valia se intensificou. Michael Roberts afirma que “o bloco imperialista liderado pelos Estados Unidos segue sendo dominante, mas seu domínio está sendo questionado como nunca antes”. Essa sensação de conflito entre blocos aumentou desde a Guerra da Ucrânia, o que incrementa a ilusão, promovida pelo progressismo reformista e por diversos setores da tradição stalinista, de que apoiar a China é o caminho para lutar contra os EUA.

A corrente de pensamento que considera que o crescimento da China seria benéfico para o mundo é muito heterogênea e está espalhada pelo mundo, mais ou menos informada pelas teses de Giovanni Arrighi em seu livro Adam Smith em Pequim, e outros autores do chamado "sistema-mundo", como Immanuel Wallerstein. Estes pensadores propuseram a ideia de que a oposição de uma espécie de "ordem multipolar" à unipolaridade do domínio dos Estados Unidos seria a melhor maneira de diminuir as tendências militaristas e enfrentar o imperialismo norte-americano (no caso de Arrighi, sob o argumento de que a China teve uma tradição milenar "antimilitarista" e que poderia emergir pacificamente como novo hegemon, sem impor sua vontade pela força). Autores como Rafael Poch subscrevem os termos básicos da ideia, concebendo a China como a portadora de uma política de “integração mundial não-militarista”, capaz de diminuir as arestas da beligerância imperialista norte-americana. Para além de suas diferenças internas, identificam essa ideia geral sob a tese da “multilateralidade benigna”.

Trata-se de uma visão que enxerga o mundo através do prisma exclusivo e restrito da geopolítica (eliminando a luta de classes como fator decisivo que determina a geopolítica e a economia) e que tem sustentação teórica na substituição da luta de classes pela luta entre Estados como motor da história. A China capitalista, entretanto, não busca “transformar o mundo tal como o conhecemos” por medidas pacíficas. Pelo contrário, se tomamos as exigências expressas pelo próprio Xi Jinping e os países dos BRICS, a tarefa reside em fazer modificações na estrutura dos organismos internacionais já existentes. Para a China, em especial, a necessidade consiste em cavar um maior espaço dentro das limitadas zonas de acumulação para o seu próprio capital, melhorando suas posições de exploração nesse mesmo sistema de Estados. Para esses mais que moderados objetivos, as armas não são dispensáveis. A contribuição direta da China na corrida militarizante da Ásia-Pacífico (com a construção de ilhas artificiais militarmente equipadas), junto às patrulhas de “salvaguarda da liberdade de navegação” promovidas pelo imperialismo norte-americano e europeu, é parte da preparação para choques muito maiores. O fortalecimento do Exército de Libertação Popular, a produção de mísseis hipersônicos e o assédio permanente a Taiwan (que os Estados Unidos busca transformar em seu protetorado militar) mostram que a política da China não tem nada a ver com “uma integração global não-militarista”, independentemente de suas alegadas (e por vezes falaciosas) intenções defensivas. Estamos diante de tendências à luta por hegemonia no horizonte histórico, diante de cujo fortalecimento qualquer paralelo mecânico com “tradições dinásticas não hegemônicas” são anti-históricas e, portanto, anti-científicas.

Em verdade, o desafio limitado que o clube dos BRICS pode representar para as grandes potências imperialistas não o torna um aliado dos povos oprimidos. Está composto por Estados capitalistas agressivos, com regimes bonapartistas e exploradores, que não representam nenhuma alternativa de "hegemonia positiva" na ordem internacional (muito menos um “auxílio a projetos revolucionários”, como diz Jones Manoel). É necessário romper com o imperialismo e suas instituições, mas sem substituir essa servidão por uma integração subordinada em blocos alternativos impulsionados pela China capitalista, que atua nas mesmas formas de pilhagem econômica.

No contexto internacional, nenhuma ajuda à luta dos povos oprimidos e da classe trabalhadora virá através do apoio a um ou outro Estado capitalista, quer esteja no Oriente, quer no Ocidente. As relações entre os Estados tem um papel não negligenciável na política, mas a luta de classes segue sendo o motor central do desenvolvimento histórico, e subordina aquelas relações aos conflitos entre as classes antagônicas. Os BRICS serão motivo de discussão e contenda, mas de nenhuma maneira aliados para a emancipação dos povos. A mais irrestrita independência política diante dos modelos capitalistas rivais, entre China e Estados Unidos, é a condição primordial para um combate decidido contra o imperialismo e suas tendências destrutivas, incapazes de serem modificadas pela acomodada tese da multipolaridade dentro dos limites da exploração capitalista.


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FOOTNOTES

[1Na Ásia, a China dirige a Organização de Segurança de Xangai, um grupo específico, com objetivos semelhantes: Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão, Uzbequistão, Índia e Paquistão.

[2Em termos mais gerais, o Brasil depende dos Estados Unidos para importação de insumos de alta tecnologia, inclusive no ramo do agronegócio, para incrementar sua produção industrial doméstica; depende da China, seu principal parceiro comercial, para a sustentação do robusto superávit comercial e para o escoamento das principais matérias-primas agrícolas e minerais exportadas. Ver “A nova política externa de Lula não é tão nova e é a continuação da política interna de conciliação de classes”.
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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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