Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Karl Marx: um anticolonialista a favor da libertação do povo Árabe

Marcello Musto

Karl Marx: um anticolonialista a favor da libertação do povo Árabe

Marcello Musto

Enquanto viveu em Argel, Marx atacou - com indignação - os violentos abusos dos franceses, seus repetidos atos de provocação, sua descarada arrogância, sua presunção e sua obsessão por se vingar como Moloch de cada ato de rebelião da população árabe local. Reproduzimos aqui texto de Marcello Musto, catedrático de Sociologia na York University em Toronto. [1]

“Aqui a polícia aplica um tipo de tortura para obrigar os árabes a ‘confessar’, como fazem os britânicas na Índia”, escreveu ele.

Marx: “O objetivo dos colonialistas é sempre o mesmo: a destruição da propriedade coletiva indígena e sua transformação em objeto de livre compra e venda”.

O que Marx fazia em Magreb?

No inverno de 1882, no último ano de sua vida, Karl Marx sofreu de uma severa bronquite e seu médico recomendou um período de repouso em um lugar quente. Descartou Gibraltar porque Marx precisava de um passaporte para entrar no território e, como apátrida, não o possuía. O império bismarckiano estava coberto de neve e, de todo modo, era proibido de entrar, enquanto a Itália estava fora de discussão, já que, como disse Friedrich Engels, “a primeira condição no que diz respeito aos convalescentes é que não devem ser assediados pela polícia”.

Paul Lafargue, genro de Marx, e Engels convenceram o paciente a se dirigir para Argel, que gozava então de boa reputação entre os ingleses para escapar dos rigores do inverno. Como mais tarde recordou a filha de Marx, Eleanor Marx, o que empurrou Marx a realizar essa viagem pouco usual foi sua prioridade número um: acabar O capital.

Atravessou a Inglaterra e a França de trem e depois o Mediterrâneo de barco. Residiu em Argel 2 dias e foi o único momento de sua vida que passou fora da Europa. Com o passar dos dias, a saúde de Marx não melhorou. Seu sofrimento não era apenas físico. Se sentia muito sozinho depois da morte de sua esposa e escreveu a Engels que sentia “profundos ataques de profunda melancolia, como o grande Don Quixote”. Marx também sentiu falta -devido ao seu estado de saúde- de uma atividade intelectual séria, sempre essencial para ele.

Efeitos da introdução da propriedade privada por parte dos colonizadores franceses

A sucessão de numerosos acontecimentos desfavoráveis não permitiu a Marx chegar ao fundo da realidade argelina, nem lhe foi realmente possível estudar as características da propriedade comum entre os árabes - um tema que lhe havia interessado muito alguns anos antes. Em 1879, Marx havia copiado, em um dos seus cadernos de estudo, partes do livro do sociólogo russo Maksim Kovalevsky, A propriedade comunal da terra: causas, curso e consequências de sua decadência. Eram dedicadas à importância da propriedade comum na Argélia antes da chegada dos colonizadores franceses, assim como às transformações que estes introduziram.

Marx copiou de Kovalevsky: “A formação da propriedade privada da terra - aos olhos da burguesia francesa - é uma condição necessária para todo progresso na esfera política e social”. A manutenção da propriedade comunal, “como uma forma que apoia as tendências comunistas nas mentes, é perigosa tanto para a colônia como para a pátria”. As seguintes observações também lhe atraíram: “os franceses buscaram, sob todos os regimes, a transferência da propriedade da terra das mãos dos nativos para a dos colonos. (...) O objetivo é sempre o mesmo: a destruição da propriedade coletiva indígena e sua transformação em objeto de livre compra e venda, e assim facilitar a passagem final para as mãos dos colonos franceses”.

No que diz respeito a legislação sobre a Argélia proposta pelo republicano de esquerda Jules Warnier e aprovada em 1873, Marx respaldou a afirmação de Kovalevsky de que seu único propósito era “a exploração do solo da população nativa por parte dos colonos e especuladores europeus”. O descaro dos franceses chegou até o “roubo direto” ou a conversão em “propriedade do governo” de todas as terras comuns vazias deixadas para o uso nativo. Esse processo foi desenhado para produzir outro resultado importante: a eliminação do perigo de resistência por parte da população local. Mais uma vez, através das palavras de Kovalevsky, Marx observou:

“o estabelecimento da propriedade privada e o assentamento dos colonos europeus entre os clãs árabes se converteram nos meios mais poderosos para acelerar o processo de dissolução das uniões de clãs. (...) A expropriação dos árabes prevista pela lei tinha dois objetivos: 1) proporcionar aos franceses a maior quantidade de terra possível; e 2) arrancar os árabes de seus vínculos naturais com a terra para romper com as últimas forças das uniões de clãs que são assim dissolvidas, e com isso qualquer perigo de rebelião”.

Marx comentou que esse tipo de individualização da propriedade da terra não apenas havia assegurado enormes benefícios econômicos aos invasores, mas também havia conquistado um “objetivo político: destruir os cimentos dessa sociedade”.

Reflexões sobre o mundo árabe

Em fevereiro de 1882, quando Marx estava em Argel, um artigo no jornal local The News documentou as injustiças do sistema recém-criado. Teoricamente, qualquer cidadão francês daquela época podia adquirir uma concessão de mais de 100 hectares de terra argelina, sem sequer sair de seu país, e depois revendê-la a um nativo por 40.000 francos. Em média, os colonos venderam cada lote de terra adquirido por 20 a 30 francos ao preço de 300 francos.

Devido à sua saúde debilitada, Marx não pode estudar este assunto. Entretanto, nas dezesseis cartas escritas por Marx que sobreviveram (escreveu mais, mas se perderam), fez uma série de observações interessantes a partir da margem sul do Mediterrâneo. As que realmente se destacam são as que tratam das relações sociais entre muçulmanos. Marx ficou profundamente impressionado por algumas características da sociedade árabe. Para um “verdadeiro muçulmano”, comentou:

“tais acidentes, a boa ou a má sorte, não diferenciam os filhos de Maomé. A igualdade absoluta em suas relações sociais não é afetada. Ao contrário, apenas quando se corrompem é que tomam consciência disso. Seus políticos, com razão, consideram importante esse mesmo sentimento e prática da igualdade absoluta. Entretanto, sem um movimento revolucionário, serão corrompidos e arruinados”.

Em suas cartas, Marx atacou com desdém os violentos abusos e as constantes provocações dos europeus e, não menos importante, sua “arrogância descarada e presunção diante das ‘raças inferiores’, e sua espantosa obsessão, ao estilo de Moloch, de expiação” de qualquer ato de rebelião. Também destacou que, na história comparada da ocupação colonial, “os britânicos e os holandeses ultrapassam os franceses". Da própria Argel, informou Engels que um juiz progressista, Fermé, com o qual se encontrava regularmente tinha visto, ao longo de sua carreira, “um tipo de tortura (...) para extrair “confissões” dos árabes, utilizada habitualmente (como os ingleses na Índia) pela polícia”. Informou Marx que “quando, por exemplo, um assassinato é cometido por uma gangue árabe, geralmente com a intenção de roubar, e os verdadeiro malfeitores são devidamente detidos, julgados e executados no devido tempo, isso não é considerado suficiente expiação por parte da família de colonos afetada. Exigem também “remover” pelo menos meia dúzia de árabes inocentes. (...). Quando um colono europeu reside entre aqueles que são considerados ‘raças inferiores’, seja como colono ou simplesmente por negócios, geralmente se considera mais inviolável até que o rei”.

Contra a presença colonial britânica no Egíto.

De maneira similar, alguns meses depois, Marx não hesitou em criticar duramente a presença britânica no Egito. A guerra de 1882 travada pelas tropas do Reino Unido pôs fim à chamada revolta de Urabi que havia começado em 1879 e permitiu aos britânicos estabelecerem um protetorado sobre o Egito. Marx estava indignado com os progressistas que demonstraram ser incapazes de manter uma posição de independência de classe, e advertiu que era absolutamente necessário que os trabalhadores se opusessem às instituições e à retórica do Estado.

Quando Joseph Cowen, deputado e presidente do Congresso Cooperativo - considerado por Marx “o melhor dos parlamentares ingleses” - justificou a invasão britânica do Egito, Marx expressou sua total desaprovação. Acima de tudo, criticou o governo britânico:

Muito bonito! De fato, não poderia haver um exemplo melhor de hipocrisia cristã do que a ‘conquista’ do Egito: conquista em meio da paz! Mas Cowen, em um discurso pronunciado no dia 8 de janeiro de 1883 em Newcastle expressou sua admiração pelo “feito heroico” dos britânicos e o “deslumbramento de nosso desfile militar”; nem pôde “deixar de sorrir diante da pequena fascinante perspectiva de todas essas posições ofensivas fortificadas entre o Atlântico e o Oceano Índico e, além disso, um ‘império africano-britânico’ do Delta até o Cabo”. Era o “estilo inglês”, caracterizado pela “responsabilidade” pelo “interesse doméstico”.

Na política exterior, concluiu Marx, Cowen era um exemplo típico “daqueles pobres burgueses britânicos, que gemem ao assumir cada vez mais ‘reponsabilidades’ à serviço de sua missão histórica, enquanto protestam em vão contra ela”.

Marx empreendeu investigações exaustivas de sociedades fora da Europa e se expressou sem ambiguidades contra os estragos do colonialismo. É um erro sugerir o contrário, apesar do ceticismo instrumental tão em moda hoje em dia em certos círculos acadêmicos liberais.

Durante sua vida, Marx observou de perto os principais acontecimentos da política internacional e, como podemos ver em seus escritos e cartas, na década de 1880 expressou uma firme oposição à opressão colonial britânica na Índia e Egito, assim como ao colonialismo francês na Argélia. Era tudo menos um eurocêntrico obcecado exclusivamente com o conflito de classes. Marx pensou que o estudo dos novos conflitos políticos e as áreas geográficas periféricas eram fundamentais para sua progressiva crítica do sistema capitalista. O mais importante é que sempre esteve do lado dos oprimidos contra os opressores.


veja todos os artigos desta edição
FOOTNOTES

[1Seus escritos foram traduzidos para vinte e cinco idiomas e estão disponíveis em www.marcellomusto.org. Sua última monografia em espanhol é Karl Marx, 1881-1883. A última viagem do Moro (Século XXI, 2020).
CATEGORÍAS

[Karl Marx ]   /   [Mundo Árabe]   /   [Argélia]   /   [Internacional]

Marcello Musto

Comentários