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SEMANÁRIO

Quando quem constrói as paredes preenche de luta os corredores da melhor universidade do Nordeste: breves reflexões da greve de terceirizados da UFRN

Cássia Silva

Marie Castañeda

Quando quem constrói as paredes preenche de luta os corredores da melhor universidade do Nordeste: breves reflexões da greve de terceirizados da UFRN

Cássia Silva

Marie Castañeda

Há mais de uma semana, durante o fim do recesso de inverno, vínhamos acompanhando ombro a ombro a paralisação dos terceirizados do canteiro de obras da UFRN e nos revoltando com a situação de trabalho precário imposta dentro de uma universidade de excelência, rankeada recentemente entre as 1000 melhores universidades do mundo. Estavam com os pagamentos dos salários e do retroativo, negociado no fim de 2022, atrasados por responsabilidade da empresa D&L e da reitoria. Aqui publicamos reflexões de uma daquelas experiências que marcam um antes e um depois na vida de jovens trotskistas e seus primeiros passos na luta de classes.

A primeira aula do semestre da melhor do Nordeste foi no corredor com a greve dos terceirizados da D&L

“Digam aos estudantes que o ar condicionado só funciona porque fomos nós que instalamos!”
Trabalhador terceirizado com mais de 20 anos de UFRN

“Eu me via como uma folha de caderno solta no mundo, agora me vejo como um caderno inteiro, difícil de rasgar!”
Jovem trabalhador terceirizado ao final da paralisação

Como estudantes comunistas, argumentamos praticamente todos os dias que as universidades só funcionam, só seguem existindo, porque um exército de trabalhadores terceirizados, majoritariamente negros, garante que isso aconteça. No caso da limpeza, um exército de mulheres negras, que há oito meses havíamos acompanhado em sua semana de manifestações que obrigaram o pagamento dos salários. Agora, vivíamos dia após dia as assembleias às 6h30 no canteiro de obras, com mais de 150 homens terceirizados. No primeiro dia de aulas do 2º semestre de 2023, não o dissemos, foram eles que mostraram aos estudantes quem ergue a universidade, nós tivemos a sorte de estar em meio a eles. Falar aos estudantes de cabeça erguida, preenchendo o campus central da UFRN do grito “Trabalhador unido, jamais será vencido” foi o golpe que obrigou a empresa a ir de 10 parcelas do retroativo para 3.

Nos dias anteriores, a força destes trabalhadores se mostrava imparável, nós nos entregamos como podíamos, fomos juntos gritar e fazer manifestação na reitoria, armamos um café da manhã digno para os trabalhadores contra a falta de refeições e subsídios decentes para elas, aprendemos a jogar dominó, ensinamos e aprendemos passinhos de dança, entoamos paródias de greves históricas, como a dos garis de 2014 no Rio de Janeiro, e juntos alentamos o ódio contra os capitalistas e seu Estado que, representado pela estrutura de poder da reitoria e dos conselhos universitários, as mesmas instituições que demitem bolsistas em luta por reajuste, faz com que eles tenham que esquentar suas marmitas em chocadeiras improvisadas (compartimentos com lâmpadas em que na maioria das vezes as quentinhas azedam). Nessa mesma UFRN em que, nos laboratórios, nas salas de aula, através da pesquisa, ensino e extensão, poderia ser produzido conhecimento capaz de transformar a dura realidade da classe trabalhadora e do povo pobre, mas, na realidade, até mesmo a realização de disciplinas básicas é impedida para abrir mais salas para os lucros capitalistas, como acontece no curso de T.I hoje.

Durante vários dias, emprestamos nossas gargantas, nossos gritos, nosso megafone e repique, para dar voz a essa luta, o que culminou naquela segunda-feira.

No primeiro dia da volta às aulas. Neste dia não poderia haver nem um minuto de atraso de ninguém, 6h30 estávamos no canteiro mais um dia para acompanhar a assembleia desses trabalhadores e apoiar essa luta que já tinha conquistado o pagamento dos salários atrasados na quinta anterior, algo nada singelo. Assim como nos dias anteriores, entramos no canteiro cumprimentando os trabalhadores, que nos recebiam com apertos de mão, abraços e nos asseguravam que não iam arregar, enquanto não conquistassem o retroativo.

Assembleia iniciada, os trabalhadores continuavam enfurecidos com a situação porque, afinal, como é possível que, seja com 20 anos ou com meses de contribuição de força de trabalho, existam pessoas que realizam trabalho praticamente escravo na melhor universidade do Nordeste (e em todas as universidades brasileiras)? Não há outro nome para quem trabalha sem receber.

Como em todas as assembleias, nós estudantes que somos militantes da Faísca Revolucionária intervimos, colocando a perspectiva de solidariedade incondicional à luta deles, com dois companheiros dizendo: “A gente tá voltando pra aula hoje e a gente quer que todo estudante saiba o que tá acontecendo e que estejam lado a lado de vocês, por isso a gente queria humildemente propor que a gente fizesse uma manifestação passando pelos setores de aula, pelo Setor de Aulas 2, antes de ir pra reitoria, pode ser?”. E os trabalhadores gritaram em uníssono que sim, que iríamos, seguido de uma onda de aplausos.

Os trabalhadores que são isolados geograficamente dentro da universidade, afinal o canteiro de obras fica a 1 quilômetro dos setores de aulas, da reitoria, dos principais espaços sociais da UFRN. Tão longe que torna esses trabalhadores ainda mais invisibilizados, a maioria dos estudantes, demais trabalhadores, professores mal os conheciam, mas os terceirizados dos canteiros de obras demonstraram enorme disposição e, com os estudantes ao seu lado, posicionaram-se para iniciar a marcha. Levávamos uma faixa escrito: “Estudantes em apoio aos terceirizados! D&L e REItoria, paguem o retroativo!”, que um de nós segurava e foi convocado por um dos peões, que disse: “Você tem que estar ali, animando todo mundo!”, para que fosse parte de integrar uma forte agitação da manifestação.

Foi aí que, historicamente, os trabalhadores terceirizados e estudantes chacoalharam a UFRN, atravessando o Setor 1, o Setor 3, com direito à liberação de uma energia contida e de expressão da criatividade dos trabalhadores especialmente na parada do Setor 2, que concentra a maioria do movimento estudantil da universidade, dos estudantes de Ciências Sociais, de Letras, de História, de Filosofia, de Artes, que debatem todos os dias como se fundou essa sociedade capitalista de miséria que vivemos hoje, e que podem ser parte de pensar como transformá-la. Estudantes, professores e trabalhadores efetivos sensibilizando-se com rimas de rap, desciam as escadas, abriam as portas das salas de aula e escutaram curiosa e atentamente os corpos e mentes que colocam a UFRN para funcionar todos os dias. Uma militante da Faísca Revolucionária convocou os estudantes a gritarem de volta aos trabalhadores: “Terceirizado, vê se me escuta, sua luta é nossa luta” o que produziu um coro ao qual os próprios terceirizados se somaram.

Tamanha experiência, a de percorrer os corredores de aula nos quais estamos todos os dias nos dedicando a cursos pelos quais somos apaixonados enquanto tentamos sobreviver ao produtivismo e elitismo da universidade, percorrer desta vez ao lado de terceirizados gritando a plenos pulmões que não teria arrego. Corredores nos quais os terceirizados são constantemente ameaçados, proibidos de se comunicar com os alunos, tratados como invisíveis, se transformavam nos holofotes da sua garra e luta, pra qual estudantes sorriam, batiam palmas, se sensibilizaram e podiam de fato ver quem realmente faz a UFRN funcionar todos os dias.

Quem são os terceirizados que ensaiaram passinhos e palmas ao lado dos trotskistas de rosa?

“Trabalho aqui há mais de 20 anos e todas as empresas nos massacraram.”

No Manifesto Contra a Terceirização e a Precarização do Trabalho, Ricardo Antunes, Souto Maior e Diana Assunção, descrevem a proeminência do trabalho terceirizado nacionalmente que, no Rio Grande do Norte, se combina com a altíssima taxa de informalidade, que chega a 45,9% da população ocupada, de acordo com o IBGE, que também afirma:

“Os dados da precarização do trabalho são alarmantes. E há de se levar em consideração que grande parte sequer é retratada em dados. Entre 2018 e 2022, foram resgatadas 7541 pessoas em condições análogas a escravidão, sendo que 80% se reconhecem como negros (pardos e pretos). Até 2018, 22% da força de trabalho formal já era terceirizada. Hoje estima-se mais de 12,5 milhões de terceirizados, sendo que uma grande maioria especialmente no setor de serviços é composta por mulheres.”

Nesses dias, pudemos ouvir as histórias de trabalhadores que enfrentam essa precarização, histórias de trabalhadores que são impedidos de se despedir todos os dias de seus filhos porque moram nas maiores periferias de Natal e, para chegar ao campus central da UFRN, precisam sair de casa no máximo 4 horas da manhã e atravessar a capital potiguar. Histórias de trabalhadores que são em sua maioria potiguares, mas já haviam se retirado do nordeste e ido para o sudeste em busca de emprego, sendo obrigados a morar longe de suas famílias, morando em alojamentos das empresas que trabalhavam e que voltavam para o nordeste para ver suas famílias uma vez por ano. Voltaram para o Rio Grande do Norte e agora se encontram em situações como essa. Esse é o rosto do trabalho precário que a UFRN explora. São trabalhadores que, para estar perto de suas famílias, são submetidos a condições de trabalho semi-escravo, e que são parte dos trabalhadores que construíram o país, especialmente o centro econômico do sudeste, que conhecem até mesmo o interior paulista industrializado, Sorocaba, Itu, Jundiaí e Campinas.

Ouvimos de trabalhadores que o degradante café da manhã que a empresa oferece sem sequer alcançar todos os terceirizados, para alguns não poderia ser consumido porque precisam levar as duas fatias de pão para as filhas que no décimo dia de atraso do salário já não tinham o que comer. Ouvimos outros trabalhadores que estão há dezenas de anos na UFRN e colecionam empresas terceirizadas que lhes devem milhares de reais. Na medida em que um destes nos dizia que nos conhecer recuperava sua confiança na humanidade, a confiança dos militantes da Faísca Revolucionária, de quem é justamente a classe trabalhadora que move o mundo, ganhava novos contornos de certeza. E, neste ritmo, a consciência da gigantesca responsabilidade da Reitoria e o fato objetivo de que esses trabalhadores deveriam ter os mesmos direitos que um trabalhador efetivo se concretizava e se transformava em opinião comum, uma ideia perigosa que queremos batalhar para transformar em motor de unidade entre nós estudantes e os trabalhadores.

Lições para uma juventude trotskista em uma pequena e primeira mais profunda escola de guerra

"A terceirização é a escravidão moderna. Vez ou outra quando eu me olho no espelho, eu vejo um monte de sonho perdido, não vou mentir. Mas vocês me deram força, sou faísca até o final"

Impressionante, inspiradora, mas sobretudo estratégica, aliança operário-estudantil defendida pela Faísca Revolucionária, juventude trotskista impulsionada pela juventude do Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT) e independentes, no Rio Grande do Norte e em vários estados do país.

Desde dar vazão às expressões política e artísticas dos trabalhadores, até por pautar e sacudir a poeira da rotina no primeiro dia da volta às aulas na universidade, mas, em especial, por marcar a ferro a história da UFRN, com um nítido recado à terceirização e à estrutura de poder de reitoria e conselhos universitários dos capitalistas, que esses tremam nas bases por essa unidade que pode transformar a sociedade de conjunto.

Em cada defesa de unidade, reside o legado da aliança operário-estudantil de Maio de 1968, que dizia que os muros da Sorbonne deveriam ser derrubados para que a classe trabalhadora pudesse entrar nela. Estes estudantes que diziam aos trabalhadores: "tomem de nossas frágeis mãos as bandeiras da revolução social". Não por um obreirismo ou embelezamento do que é a classe trabalhadora, mas por compreender a localização que esta possui no processo produtivo da sociedade capitalista. Esta concepção, quiçá não aparente às 6h30 da manhã em uma assembleia em um canteiro de obras da UFRN, era o que fazia a juventude pular da cama um tanto antes para estar lá. Porque são estes processos de luta ao lado da classe trabalhadora que podem fortificar laços e convicções, possibilitando aprender de fato com eles. Para essas experiências profundas e aprendizados, nas quais a classe trabalhadora consegue visualizar seus inimigos, Lênin desenvolveu o conceito de Escola de Guerra. E no caso desta batalha inspiradora, ainda que modesta, os inimigos também ficaram evidentes, a D&L, a Reitoria e as ameaças do judiciário potiguar, o mesmo judiciário que há poucos dias havia atacado o direito de greve dos trabalhadores da saúde junto à governadora petista Fátima Bezerra.

Mas, acima de tudo, o legado de uma juventude que esteve nas fileiras da IV Internacional, fundada e dirigida até seu assassinato a mando do stalinismo pelo dirigente revolucionário russo Leon Trótski.

"A IV Internacional dedica atenção e interesse excepcionais à jovem geração do proletariado. Toda sua política visa inspirar os jovens com confiança em sua própria força e futuro. Só o novo entusiasmo e o espírito ofensivo da juventude podem garantir os primeiros triunfos da luta e só estes vão devolver o caminho revolucionários aos melhores elementos da velha geração. Sempre foi assim e assim será", escreveu Trótski no Programa de Transição, de 1938.

A isto queremos conectar outro elemento, que é o papel que pode cumprir uma juventude aliada aos trabalhadores, intransigente contra a conciliação de classes. Em "Os bolcheviques-leninistas e a organização da juventude revolucionária", Trótski disse:

"Porém, na situação atual, em que às direções tradicionais da juventude trabalhadora, reformistas e stalinistas, persistem em acorrentar a juventude trabalhadora à burguesia, na qual a vanguarda marxista-leninista permanece numericamente fraca, as organizações juvenis da IV Internacional não poderão conquistar instantaneamente a juventude trabalhadora. Em vez disso, eles devem polarizar a revolta instintiva da juventude contra a colaboração de classe. A situação angustiante da juventude trabalhadora, a proporção crescente de desempregados e desclassificados entre os jovens, manifesta-se na espontaneidade, confusão e violência das correntes políticas que são visíveis entre os jovens. Fortalece a necessidade de fidelidade inabalável ao programa bolchevique, de uma profunda educação marxista".

Esta combinação entre a intransigente independência política frente à burguesia foi o que possibilitou momentos de greve nos quais essa aliança entre estudantes e trabalhadores, nos dias de luta, bradou "THIAGO PRESENTE!", contra o assassinato de um jovem de 13 anos no Rio de Janeiro, fruto podre da repressão do Estado burguês pela via da polícia que mata todos os dias nesse país e no mundo, e das chacinas promovidas pelos governadores bolsonaristas do RJ e de SP — aceitos e incorporados pelo regime político encabeçado pelo governo Lula-Alckmin —, Cláudio Castro (PL) e Tarcísio de Freitas (Republicanos), mas também de Jerônimo Rodrigues (PT), governador da Bahia. "Esse caso me faz lembrar de Geovane Gabriel, o menino do meu bairro que foi assassinado pela polícia", disse um trabalhador a nós, fazendo referência ao marcante e absurdo assassinato de um jovem pela Polícia Militar da governadora do RN, Fátima Bezerra (PT), em 2020. Em uma experiência sensível da luta de classes, onde os terceirizados ao não receber nada, decidiram se colocar em luta e arriscar tudo, a identidade negra combinada ao pertencimento de classe se expressou e o rechaço à violência policial que tem mira certa contra a juventude negra também. Um trabalhador chegou a colocar: “Eu mesmo já falei que branco correndo é atleta, negro correndo é bandido. Hoje eu vejo que isso coloca trabalhador contra trabalhador”, ao estar em luta, ombro a ombro, como uma maioria negra, a consciência avança em saltos, seja rechaçando o racismo, e também rechaçando a transfobia e a homofobia, com demonstrações de respeito e afeto cotidiano às militantes LGBTQIAP+.

Identificamos que é unidade com a classe trabalhadora que pode questionar profundamente e se propor a transformar a universidade como ela é hoje, elitista, racista, machista e LGBTfóbica, que chuta para fora a classe trabalhadora ou a mantém em postos extremamente precários de trabalho. E também colocamos que, a partir dessa visão marxista de mundo, dentro da universidade é preciso um movimento estudantil independente dos governos, patrões e reitoria que defenda a unidade entre trabalhadores efetivos e terceirizados, a efetivação dos terceirizados sem necessidade de concurso público, as cotas étnico-raciais proporcionais às populações negra e indígena de cada estado, rumo ao fim do ENEM e de todos os vestibulares.

Quando os trabalhadores terceirizados da UFRN marcharam junto aos estudantes pela universidade, foi com essa perspectiva que nos referenciamos, resgatando o legado de luta da juventude trotskista, com um horizonte de uma profunda batalha pelo comunismo. Porque queremos uma vida que valha a pena ser vivida, e não a conciliação com setores da burguesia, mantendo os ataques do golpe de 2016, de Bolsonaro, e todos os atores desse regime envolvidos, como o Judiciário que arranca o piso da enfermagem. Porque o capitalismo merece perecer e nós temos sede de futuro, de reorganizar a sociedade sobre novas bases.


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Cássia Silva

Marie Castañeda

Estudante de Ciências Sociais na UFRN
Estudante de Ciências Sociais na UFRN
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