×

Tribuna Aberta | Educação à la carte e mercado educacional

Como meio de fomentar o debate na campanha lançada aqui no Esquerda Diário pela revogação integral da Reforma do Ensino Médio, aprovada pelo governo Temer após o golpe institucional de 2016, o Esquerda Diário publicará como tribuna aberta alguns textos de autoria do Professor Saulo Lance Reis, que é mestrando na Faculdade de Filosofia da USP.

quinta-feira 26 de janeiro de 2023 | Edição do dia

Foto: Agência Mural

Para muitos pais, alunos e professores, parece interessante que o aluno decida a respeito dos conteúdos que estudará desde a sua formação básica, que tenha “autonomia”. Segundo esta opinião corrente, o novo ensino médio responderia à demanda do aluno, possuindo capacidade de renovar o seu comprometimento com a escola e de promover o seu autodesenvolvimento. Ora, por que apostar em uma escola que ensina conteúdos de pouca utilidade futura, que serão, por isso mesmo, esquecidos? Por outro lado, que reforça este ponto de vista: quantas vezes não escutamos também que, nas condições do ensino tradicional, seria melhor não estudar? Tudo então parece óbvio: é melhor “estudar o que se deseja, ter liberdade”...

Mas notem: a forma da ideologia é o imediato, o límpido, o que é claro como... as peles ou colarinhos, diga-se de passagem. É a força da ideologia o que faz com que estes atores, e enquanto participantes da instituição “escola”, ajam como qualquer bom defensor da liberdade de escolha do consumidor, como se a educação fosse apenas mais produto no mercado. Desta perspectiva neoliberal, “que haja um belo cardápio, que o serviço seja ‘personalité’, ‘prime’!”. Mas a conclusão e o resultado a que chegam com esta redução do ensino e da formação ao estatuto de um “serviço” e de um “produto” não poderiam ser outros, senão mais obviedades: seu resultado é um fracasso reconhecido largamente dentro da instituição escolar, acompanhado pela conclusão de que tal modelo de educação participativa funcionaria, contanto que ele funcionasse... Da perspectiva da ideologia neoliberal, temos um novo ensino médio, que apenas não funcionaria.

Contra esta perspectiva, porém, notemos que o novo ensino médio já funciona de alguma forma no interior do todo complexo que é a sociedade. Por mais inadequado que ele pareça, ainda assim ele cria sujeitos, e sujeitos adequados às forças dominantes desta sociedade. Ele define destinos. Daí a importância de compreendermos o funcionamento prático do novo ensino médio, o que pode ser rastreado pelas queixas dos que acreditam nele.

Da parte dos alunos, é comum ouvir tanto que eles próprios não desejavam os objetos de sua escolha quanto que não foram eles mesmos quem escolheram, mas algum responsável ou “sei lá quem”. Para estes, parece mais importante saberem se reprovarão ou não por estas matérias – e confessam: “melhor que não” (uma inocência cruel na terra da “progressão continuada”...). Da parte dos pais, ao se defrontarem com o fracasso do modelo, eles não compreendem como seria possível que seus filhos sejam postos como protagonistas de seu próprio futuro e se desencorajem no processo. Neste caso, alguém deve ter a culpa: o professor que não sabe entreter seu público. E, falando nos “culpados”, é comum ouvirmos dos professores a crítica inversa: eles não aceitam a falta de comprometimento dos alunos e responsáveis com o processo de formação escolar e não entendem o baixo interesse na vida adulta (pelo que parece, os alunos só falam em sexo e timelines... já os pais, não se sabe dos seus interesses, pois não há espaço coletivo na escola para esta troca). Por fim, da parte dos demais funcionários da escola, eles dizem que falta estrutura institucional para que o plano vingue, que não há efetivamente possibilidade de escolhas quando algumas delas sobrecarregam. E aqui parece surgir pela primeira vez o núcleo da coisa: a estrutura institucional.

Leia aqui outro texto do mesmo autor: Protagonismo na escola: Sujeição à contrapelo

Ora, esta estrutura institucional está sob ataque desde 2016, quando assistimos a um desmonte dos serviços públicos gestado do interior de um golpe político. E não só a escola, pois tudo se iniciou com uma limitação do investimento do Estado em instituições e bens que, a médio prazo, já inviabilizaria a manutenção e o aperfeiçoamento dos espaços de garantia de direitos (tais como o direito à saúde, à educação, à moradia, às garantias em situações de fragilidade social, como são o desemprego, a gestação e a velhice, e mesmo o direito de acesso à cidade e à cultura – todos presentes em nossa constituição). É este o sentido da lei do teto de gastos. Tal limitação, somada ao desvio de verbas destinadas à educação para o chamado “orçamento secreto”, criado com vistas na compra de influência nas determinantes votações do congresso (nosso poder responsável por criar as leis do país), tal limitação, dizíamos, dificulta não só a vida dos indivíduos vinculados de alguma forma com a escola (novamente, os alunos, seus responsáveis, os professores e demais funcionários da instituição), mas a própria sobrevivência desta instituição enquanto garantia de um bem público: a educação.

Em outros termos, os sucessivos governos seguem a cartilha neoliberal para a qual o Estado deve se reduzir ao mínimo: por um lado, deve ser o braço armado defensor da propriedade, por outro, deve garantir infraestrutura e mão de obra barata o suficiente para a reprodução do lucro. No mais, leiloe-se por bananas as instituições públicas... No caso da educação, não é à toa que o governo de transição do final de 2022 seja dominado justamente pelos ditos “tubarões da educação” (como ficaram conhecidos os empresários ligados aos interesses do ensino privado e, por consequência, às tendências de desmonte do ensino público). São eles que, em maioria e de modo determinante, coordenam os planos da área para os próximos 4 anos – restando no lado de uma minoria sem força institucional suficiente alguém louvável como Silvio Almeida, que provavelmente sofrerá como indivíduo ao forçar uma tendência político-econômica contrária neste embate (aproveito, de passagem, para indicar a leitura dos seus livros, que jamais abandonam a importantíssima ideia de que toda economia pressupõe uma política, e vice-versa). Daí que o novo ensino médio represente apenas uma bela fachada para um edifício apodrecido, mais um plano nefasto de aparente desfuncionalização do ensino público que, na prática, opera bem em mais de um sentido, segundo os interesses dominantes.

Quando erra em termos educacionais, ou seja, quando produz a frustração mencionada acima, ele opera no reforço das tendências de privatização generalizada do Estado – tendências evidentemente interessantes aos “tubarões”. Por outro lado, supondo-se uma situação na qual o novo ensino médio “funcione” na prática, ele operaria na produção de sujeitos flexíveis para as condições atuais de trabalho, extremamente precárias e sem estabilidade, assim como de sujeitos ligados à ideia de inovação para o mercado – o que ele faz parcialmente. Notemos, porém, que estas exigências de inovação e de flexibilidade são as que levam constantemente estes jovens a trabalharem até mesmo em seu tempo de lazer para a produção do “novo”, mesmo que em termos de organização da empresa capitalista. E, o que é de dar dó pela sua ironia, na busca por reconhecimento do valor da “singularidade” do seu trabalho no interior desta empresa – que os explora justamente neste movimento, reduzindo-os às variações estatísticas. É assim que o novo ensino médio não apenas funciona, mas funciona até mesmo quando não funciona.

Leia aqui outro texto do autor: Nova Carreira em SP: flexibilização e precarização do trabalho docente.

Em suma, trata-se de uma nova escola para novos tempos, dotado de novas formas de dominação. Notar isto é importante, mas mais importante é nos conscientizarmos e conscientizarmos nossos pares: talvez tudo gire em torno da compreensão da forma como este sistema funciona, seja em suas partes, como é o caso da educação pública, seja no seu todo. A sociedade não passa de um modo de produção e, portanto, de reprodução alargada de si. Compreender isto é uma das condições para que possamos efetivamente escolher algo um dia, quem sabe um modelo adequado de educação, que evite a nossa redução a combatentes no deserto e ou a raivosos famintos por poder. Com esta escolha, porém, temos apenas um horizonte para as nossas tomadas de posição, um norte para as forças que moveremos dentro do complexo de forças que é a sociedade. Nunca se fala da perspectiva de um indivíduo, mesmo e principalmente quando este parece ser o caso.

Saiba mais aqui sobre a campanha:
Participe da campanha pela revogação integral da Reforma do Ensino Médio!




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias