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Crônica | Um Corpo pré-fabricado em busca de uma sociedade inteiramente nova onde me caiba assim

Virgínia GuitzelTravesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC

segunda-feira 27 de março de 2023 | Edição do dia

Há muitos anos atrás comecei essa coluna, “Meu corpo, um campo de batalha”, e quantas batalhas cotidianas não fazem um corpo, não criam um corpo, fortalecem e marcam ainda mais um corpo travesti. Falei sobre quando comecei minha hormonização em 2015, quando conquistei o meu nome em meus documentos em troca da condenação de doente mental e a proibição de ser reconhecida como mulher pelo Estado. Um ano depois, falei sobre a solidão e a hipersexualização dos corpos trans, sobre o direito inegociável de recriar o corpo e repeti em cada uma dessas o gosto contraditório de ser o que se quer ser nos persecutórios limites do capitalismo. Sempre busquei me expor, de peito aberto, na busca de fazer com que essas dores fossem percebidas, compartilhadas e se tornassem mais leves carregando elas em mais ombros, dividindo em abraços e conversas.

Sinto que hoje eu precisei voltar a escrever, mas com pouca coragem de descrever em primeira pessoa, porque hoje já faz dois dias e a sensação que eu tenho é que eu não deveria estar aqui escrevendo, não deveria estar trabalhando, não deveria estar podendo levantar os braços. Tudo estava planejado para que eu estivesse em repouso, sim… Vocês sabem disso, me mandaram mensagens, beijos, abraços, e me ajudaram tanto. Mas é uma sensação que eu nunca tive, como se realmente eu estivesse vivendo uma realidade que não estava à minha espera. Mas criei coragem, por necessidade. Preciso que me ouçam, se possível me entendam, mas mesmo que não entendam como eu queria ser entendida, que me escutem.

Há 12 anos comecei a enxergar o mundo com as lentes do marxismo revolucionário. Isso me permitiu combater os resquícios de crença em vida após a morte, e exigir o meu direito de ser Virgínia agora, e não em outra reencarnação. Ano passado completei uma década travesty, e hoje olho como em dez anos, o mundo a minha volta se transformou e eu também. Sirvo hoje como um apoio às meninas e meninos novinhos que dão os primeiros passos na sua transição, e que delicia e frio na barriga da ser uma referência assim. Nesse processo, eu busquei me forjar uma revolucionária que também buscava questionar e entrar na disputa e nos enfrentamentos do meu próprio corpo, da minha própria mente, da minha própria capacidade de decidir quem eu sou. Aprendi a me amar, a me enxergar pelos meus próprios olhos, e a ter uma profunda admiração pela minha travestilidade.

Como vocês sabem, e ainda me é dolorido falar, minha cirurgia foi adiada. Pela terceira vez. A primeira foi lá em 2016, quando adentrei a clínica do Paulino, aquele que foi responsável por abandonar a Lorenna Muniz em cima da mesa de cirurgia sem respirar em meio a um incêndio. Naquela vez, meus exames de sangue apresentavam uma dificuldade de coagulação do sangue e não poderia operar numa clínica pelo risco de hemorragia e a distância de um hospital capaz de me acolher a tempo. Mas me chamou atenção aquele lugar que só recebia meninas trans, de diferentes lugares do país, mas com histórias tão parecidas. Um sonho inegociável de criarem seus próprios corpos, que tinham lhe tirado suas familias, seu acesso a saúde, à educação e tinham jogado a maioria nas mãos de cafetinas que se aproveitavam do sonho e da extrema miséria que o capitalismo impõem para as vidas trans para chegar tão perto, quando não diretamente, à escravidão, com a prostituição compulsória que nunca seria capaz de eliminar a dívida que se fazia maior a cada dia. E a dívida que o mundo tinha conosco, nunca nos foi paga. Foi nessa “clínica” semi-clandestina que minha cirurgia foi adiada há tantos anos atrás.

De 2016 até 2022 eu me obriguei a não pensar sobre isso. Me acostumei com o peito que os hormônios me deram. E aprendi a amá-los e reconhecê-los como meus legítimos. 2019 não foi só o primeiro ano de Bolsonaro e Damares que logo no primeiro dia do ano saíram às caças as trans com seu delírio de ideologia de gênero e o bordão “menino veste azul e menina veste rosa”, mas foi quando comecei a tomar dois comprimidos por dia e olhar pra toda a década de 80 e 90 que tanto estudei sobre o movimento LGBT desde dentro. Tive que respirar fundo e entender que não era mais a peste rosa, mas ainda assim, era difícil me ver convivendo com as três letras que sempre esteve tão atrelada às travestis. Agora eu era, assim como esperavam de mim, a travesti convivendo com HIV.

Então que em 2020, acreditei que seria meu ano, passei na UFABC depois de 4 anos de tentativas fracassadas e fui aprovada no concurso para ser a tia do corredor. Daí veio a Pandemia e minha vida pareceu de pernas pro ar. Um ano depois, estava com aulas online e começando a trabalhar finalmente no Sócrates Brasileiro, a escola mais de luta que conheci. Assim que entrei, minhas amigas da escola me contaram que o Hospital do Servidor fazia todos os tipos de procedimentos estéticos e que eu deveria procurar.

Não perdi tempo, corri na psicóloga e fui pelas portas que eu encontrei abertas. Expliquei minha situação e que buscava nela um apoio para me encaminhar a uma endocrinologista e para a Cirurgia Plástica. E em alguns meses,estava já sendo acolhida pela endocrinologista e finalmente voltando a fazer a hormonização com acompanhamento e comecei a passar na cirurgia plástica. Em Setembro fui a primeira vez na Cirurgia Plástica, expliquei que eu era trans e que tinha sido encaminhada pela endocrinologista, pois o tratamento hormonal já não podia produzir mais efeitos sobre meus seios e que eu queria transformar meu corpo para me identificar mais comigo mesma. Ao retomar esse sonho, me surgiu vários questionamentos, se eu que convivia há tantos anos com meus seios pequenos iria me adaptar a seios grandes, se isso me traria uma maior passibilidade e se era isso que eu queria, mas como havia aprendido há muito tempo. As dúvidas que existiam em mim então vieram à tona, mas não para um acolhimento, e sim para serem usadas contra mim, em nome do Estado, pelas bocas de profissionais da saúde que condenariam a anulação das minhas certezas e vontades. Inclusive, me lembrou dos meus primeiros aninhos de transição e o medo que eu tinha de colocar peito e ainda assim ser vista como “viado de peito”. Naquele momento, eu percebia que na minha própria construção feminina, individual, o peito era uma condição para que viva ou morta, eu fosse inconfundivelmente travesti. Que negassem o meu lugar de mulheridade o quanto quisessem, mas não poderiam mais me acusar de “simples” viadinho. E pra mim, essa confirmação de não ser mais uma viado e sim uma travesti, era uma necessidade.

Então, que em Setembro eu entrei no consultório confusa, com medo dos médicos e fui surpreendida, pelo interesse deles. Disseram que eu era a primeira trans que iria fazer esse procedimento no Hospital do Servidor. Não me surpreendeu, mesmo sendo em 2022, porque ainda vivemos à margem do trabalho formal, e eu mesma antes deste concurso, já tinha sofrido diversos abusos nos locais de trabalho - ao ponto de ao vender cabelos humanos para megahair, ouvir da minha chefe que eu deveria me esforçar mais e procurar “meninas como eu” que se prostituem, que precisam de um cabelo “né?” -, além de assédios na busca por emprego - “emprego não sei, mas se quiser mamar escondido” -, nas entrevistas - “não faz parte do perfil - CIS - da empresa”.

Nesse dia, chamaram o cirurgião, que trouxe próteses de diferentes tamanhos e me ajudaram a testar cada uma delas, sem se intrometer na minha decisão, até que eu escolhesse. O cirurgião orientava a equipe de residentes: "Não temos que influenciar na decisão, o corpo é dela, ela que deve decidir o que vai fazê-la feliz”. Não parecia real que um médico, que sempre legislou com o Estado nas suas costas contra o meu direito de decidir sobre o meu corpo, disse-se tais palavras. Então, sorri e escolhi a minha. “480 mls, sim senhor. Socialista e peituda, tá, meu bem”. Saí do consultório saltitante. Voltei em Novembro para o retorno, e estava esperançosa, quando na verdade, só foi uma consulta de rotina, onde me instruíram que eu estava já na fila de espera, que havia apenas uma pessoa ainda na minha frente e eu já era a próxima. Que tudo dependeria da agenda do anestesista geral, pois o método da cirurgia para alcançar os objetivos que eu tinha, deveria ser por trás do músculo, o que deixaria uma aparência mais natural, porém seria mais dolorida e portanto exigia uma anestesia mais forte. Saí do médico sem saltitar, mas confiante que estava às vésperas do meu sonho.

Dezembro nada…

Janeiro passou sem eu poder esquecer isso por um dia, aguardando a ligação, até que um dia antes do meu aniversário, no dia 28, chegou a ligação. Eu mal pude acreditar e no dia seguinte, no dia da Visibilidade Trans lancei a minha vaquinha para minha cirurgia. Era a ligação que eu tanto esperava, chegara a minha vez - pensei eu. Mas era, na verdade, o segundo adiamento. (Coisas que só se pode saber depois que se vive, e agora são apenas spoilers).

Sai da escola nova que tinha começado a trabalhar neste ano, contando para todos que estava indo agendar minha cirurgia. Quando cheguei na consulta, meia hora mais cedo pela ansiedade, logo fui chamada. Quando a médica me chamou, chamou também toda uma equipe e meu sorriso se desfez em 10 minutos. Os médicos me disseram que receberam uma informação (de quem?) que havia um protocolo específico para pessoas trans (que protocolo?) e que precisavam de uma autorização da Secretaria Municipal de Saúde para ver se haveria liberação para uma cirurgia dessas. Eu tentei explicar que eu não estava dentro de nenhum “protocolo”, já que fui encaminhada pela justificativa de uma “cirurgia plástica” e não pelo “processo transsexualizador”, de que o SUS não tinha protocolo para somente colocação de seios, que ou você se adequava a binaridade e fazia a cirurgia de “redesignação sexual” ou nada feito. Tentei entender como que de Setembro até Janeiro eles não tinham refletido o fato de eu ser trans, e mais, de que deixaram eu chegar na consulta para “descobrir” que havia um protocolo (que não existe) e que eles sequer diziam qual era, que prazos haveria e quais procedimentos anteriores seriam exigidos. Eu ainda me dispus a trazer a decisão judicial que alterou meu nome, o relatório da minha primeira psicóloga de 2014 que me atestou com o direito de decidir sobre meu corpo sem me considerar como doente mental (o que ainda hoje não é tão comum), de falar com a endocrinologista, tudo que fosse necessário, mas só me ofereceram um retorno para março e a frase dita pelo cirurgião “Você precisa entender que eu até te vejo como uma pessoa normal, mas não é qualquer cirurgião que aceitaria te operar. Sabe como é, por questões religiosas, é complicado. Eu faço, eu faço inclusive por fora”.

Sai desnorteada. O que tinha acontecido ali? Eu já não tinha garantias quando iria operar, pior, se eu poderia operar, porque aparentemente ter conquistado o reconhecimento do Estado de que sou uma mulher, na certidão, no RG, em qualquer documento, não me dava o direito de fazer a mesma cirurgia que todas as mulheres cis tinham acesso. A igualdade perante a lei, nunca foi tão distante da perante a vida. Já não era a próxima da fila, agora “havia uma fila enorme”, que já não se tratava da agenda do anestesista, porque a anestesia quem decide são os anestesistas e não eles. Nada fazia mais sentido.

Sai do hospital e voltei pra escola engolindo o choro. Raiva, tristeza, tudo tão misturado, eu mal conseguia explicar o que tinha acontecido. Mas era claro, eles estavam usando os recursos que tinham pra me impedir de alcançar o meu direito ao meu próprio corpo. Não podiam enganar uma década de negações à uma travesti. O que fazer com a Vaquinha? O que falar pras pessoas que me perguntavam quando seria a cirurgia? Eu não sabia lidar com tudo isso. Mas precisava. Então, recorri a denúncia interna pela Ouvidoria e consegui com meu amigo Kyem que a Secretaria Municipal de Saúde questionasse o hospital sobre de que protocolo e autorização estavam falando.

A ouvidoria não disse nada com nada, mas escreveu assim:

POR OPORTUNO, INFORMAMOS QUE VIRGINIA GUITZEL PREZADA SENHORA AGRADECEMOS O SEU CONTATO COM NOSSA OUVIDORIA/HSPM E ENFATIZAMOS A IMPORT NCIA DA PARTICIPAÇÃO DE NOSSOS USUÁRIOS NO APRIMORAMENTO DE NOSSOS PROCESSOS DE TRABALHO, NA BUSCA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE EXCELÊNCIA A TODOS. SEGUE RESPOSTA DA ÁREA PARA APRECIAÇÃO. “DR ADALBERTO TADOKORO, COORDENADOR SUBSTITUTO DA CIRURGIA PLÁSTICA INFORMA: EM RELAÇÃO À PORTARIA DE SMS 36/23 DE 21/01/23, REFERENTE À CONSOLIDAÇÃO DA REDE SAMPA TRANS NO MBITO DA REDE MUNICIPAL DE ATENÇÃO À SAÚDE SÃO PAULO, TEMOS A INFORMAR ESTAMOS CIENTES DA MESMA. A SRA. VIRGINIA GRITZEL JÁ TEM UM RETORNO AGENDADO PARA O DIA 06 DE MARÇO PRÓXIMO, NO PERÍODO DA TARDE, COM O ASSISTENTE QUE A ATENDEU NO DIA 30 JANEIRO PASSADO. OUTROSSIM, SALIENTAREMOS À EQUIPE SOBRE INEXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DE SMS, UMA VEZ QUE NOS POSICIONAMOS CONSOANTES À REDE SAMPA TRANS. ATENCIOSAMENTE,”. OUVIDORIA/HSPM.

Mas a pressão surtiu efeito. No final do prazo da Ouvidoria, depois de quase 20 dias corridos, me ligaram do Hospital do Servidor agendando minha cirurgia para o dia 21 de Março. Eu chorei na hora e fui ligar pra minha mãe pra contar. VAI ACONTECER, eu nem acredito, VAI ACONTECER. Então, a consulta que tinha ficado remarcada, tinha se encaixado perfeitamente, a consulta era dia 06 de Março, marcaram os exames para dia 07, depois passaria com o anestesista dia 14 e dia 21 eu operava. Em menos de um mês minha vida mudou completamente, eu tinha poucos dias para reorganizar tudo e viver esse sonho. Mas - de novo spoiler! - era um pesadelo.

Primeiro, minha mãe não estava tão bem de saúde. Os problemas da síndrome do Pânico e da depressão tinham voltado. E ao invés de comemorar, ela ficou em silêncio. Depois, uns dois dias depois, ela me ligou pedindo para que eu fosse compreensível e se não seria possível adiar. Eu não teria palavras pra explicar o porque era inadiável, porque já tinham me obrigado a adiar isso não uma, ou duas vezes, mas porque tinham negado o meu direito de ter o meu próprio corpo desde sempre, a começar por me negarem a sequer imaginar que eu teria esse poder sobre mim mesma desde a infância. E depois, foi difícil não me culpar por aumentar os problemas de ansiedade e de preocupação que ela passava pelo fato de eu ser uma travesti, e querer transformar o meu corpo. Mas eu sabia que se eu não pudesse contar com ela, eu teria minhas camaradas para segurar a mão e aguentar o pré e o pós operatório. Mas essa parte foi se transformando.

Primeiro quando fomos na consulta do dia 06. Ela ouviu atentamente os médicos, o cirurgião novamente me fez provar as próteses e decidir o tamanho que eu queria, sem se intrometer e a equipe me instruiu passo a passo. Saímos de lá, e fomos pegar a guia dos exames do dia seguinte, onde conversamos com uma atendente que contou que sua filha também havia colocado as próteses lá e isso acalmou a minha mãe. Fomos direto comprar a meia cirúrgica e o sutiã e depois voltei ao trabalho radiante. No final do dia, consegui fazer o pix para a compra das próteses e eu não podia me aguentar de alegria. Cada pessoa que tinha contribuído pra vaquinha tinha me ajudado a chegar tão perto do meu sonho, a ponto do mais importante e mais caro estar garantido. Agora estava tudo encaminhado, mas mesmo assim, era importante não contar com a vitória, manter a tranquilidade. Fiz os exames e no dia seguinte, olhei os resultados pela internet. Me preocupava que novamente meu sangue aparecesse com dificuldade de coagulação, mas não. Tudo parecia bem, mas olhando com calma, havia uma alteração. Tinha dado positivo pra Sífilis. Era aquele positivo que uma vez que você teve, sempre vai dar? Ou havia me infectado de novo? Sorte que o dia seguinte dos exames, era meu dia de coleta de sangue onde faço acompanhamento há 5 anos para HIV e poderia tirar as dúvidas. Fui pela manhã conversar com uma médica, e verificamos que era o caso de uma nova infecção. Os testes me asseguravam que era uma infecção recente. Sem dramas, uma injeção de cada lado do bumbum e feito (hoje vai ser dificil subir e descer escadas pra tia do corredor!). Sífilis tratada. Expliquei a minha preocupação: isso não pode atrapalhar a minha cirurgia. Ela me garantiu que não há nenhuma contra indicação e que inclusive, era de chamar atenção, que esses exames de ISTs tivessem sido solicitados, pois não é o padrão.

Um alerta ligou para mim. Eu já havia, desde o começo, avisado que eu convivia com HIV. - Algum remédio de uso contínuo?

  •  Sim, retroviral.
  •  TARV?
  •  Sim… Exames: indetectável.

    Inclusive na psicologa, no clínico geral, na endocrinologista e na cirurgia plástica. Qualquer médico que eu vá, eu sempre digo e complemento todo o dia 2 pílulas. Mas a combinação travesti + HIV (mesmo que indetectável) aparentemente exigia esses outros exames.

    Um dia antes da consulta com o anestesista o Hospital me liga “Boa tarde, Virginia? Aqui é do Hospital do Servidor, nós tivemos um problema na sua coleta de sangue, precisamos que a senhora retorne ao hospital para colher outra amostra, pois um exame ficou faltando”. Aquilo não era normal. Desliguei e então fiquei pensando nisso. Comecei a ligar pro Hospital, mas não era no atendimento direito, tinha que falar na Cirurgia Plástica, mas depois era na parte laboratorial, enfim, consegui uma atendente que fosse responsável. Demorou cerca de 30 minutos até que ela parece de falar e questionar as coisas e me ouvisse. Então que eu disse “Eu sei que um exame meu deu alteração, é um resultado positivo para HIV, eu convivo com isso há mais de 5 anos”. “Mas você já tinha avisado seu médico?” “Sim, havia ele desde o ínicio.”, “Então, não tem motivo algum para ele pedir esse exame, é que quando um resultado da positivo…” “É preciso colher um segundo exame para confirmar, eu sei, é a determinação do Ministério, já inclusive trabalhei com isso” e enfim, não precisava voltar ao hospital, porque o resultado era na verdade um dado já informado desde o ínicio.

    Enfim, chegou a consulta com o anestesista. Apresentei todos os resultados dos exames e tudo foi bem tranquilo. Eles me fizeram perguntas de rotina. Avisaram que era importante suspender o uso de maconha por conta da anestesia e os hormônios por conta do risco de trombose. Verificaram a situação da Sífilis, e disseram que se tratada não haveria riscos. O residente perguntou “E nesses casos de HIV, o que acontece?” (se informa para não falar besteira?) e a médica com paciência disse “Estando controlado, é tudo normal, não tem diferença”. Respirei fundo e abri um sorriso. Estava tudo certo.

    Desde o dia 8, quando tomei as injeções, eu não me relacionei com mais ninguém. Ninguém poderia estragar a minha cirurgia. Agora estava tratada e pronta para operar. E apesar desse processo todo ser muito intenso, cheio de sensações e uma dificuldade de compartilhar o quão era significante pra mim tudo isso, eu não me sentia segura de ficar com ninguém. Meu maior medo era trabalhando na escola, o risco de pegar Covid ou uma virose. Foram 7 dias, do dia 14 ao 21, onde eu constantemente tinha medo de que alguma coisa acontecesse de imprevisto. Um pequeno acidente doméstico, uma virose, uma falta de vitaminas, a minha ansiedade. Mas fui buscando focar na organização da vida para a cirurgia. Continuei a vaquinha para arrecadar o valor necessário para minha recuperação, tranquei a faculdade, avisei no meu trabalho, organizei meus amigos para me auxiliar nos primeiros dias, retirei meus piercings e marquei de fazer uma trança para manter meus cabelos nesses primeiros dias pós cirurgia.

    Então que com muita dificuldade fui lidando com a ansiedade e os ataques de risos e de euforia e cheguei na segunda-feira, um dia antes do grande dia, pronta pra realizar esse sonho. Fiz as tranças e corri pra casa da minha mãe. Conversamos sobre esse momento, como os anos tinham passado, minha mãe me disse o quanto me achava corajosa e eu disse que a vida tinha me feito assim, e entrei em jejum. Dormimos cedo, e logo acordamos às 3:30 para o grande dia. Saimos de casa às 4 e logo às 5 já estávamos na porta do Hospital. Entramos, aguardamos para fazer a ficha, tiramos uma foto ali, conversando com algumas amigas que estavam tão ansiosas quanto eu. Então, que nos chamaram pra subir. Ainda estava buscando me convencer que algo poderia não dar certo, buscando controlar a ansiedade e mesmo que tudo me indicasse que tinha chegado o momento, o medo de algo dar errado novamente, e a frustração que poderia gerar. Mas a alegria era muito difícil de controlar. A cada passo, eu queria registrar. Queria compartilhar com as pessoas. Filmei o caminho de carro, a porta do hospital, a escuridão ainda da madrugada, então me chamaram e subimos ao 9º andar. Me entregaram uma camisola, meias e após me trocar, sentei numa cadeira de rodas para ser levada para outro andar. Minha mãe me acompanhou e então, fomos. Chegamos no andar da cirurgia. Fizemos uma amizade com os demais que aguardavam para operar, o enfermeiro brincou: “avise os médicos pra não confundir e operar o joelho dela e dar peitos para aquele senhor”. Todos riram, e eu ainda não conseguia acreditar que seria esse o dia mais importante da minha vida.

    Mediram minha pressão e estava bem, mas demonstrava minha ansiedade. Então que orientaram minha mãe a aguardar na sala e me levaram para a sala antes da cirurgia. Fiquei deitada por um tempo, até que vieram medir minha pressão. Depois, veio o anestesista e se apresentou, me disse que era residente e que além dele outros três da equipe estariam comigo. Ele lembrou de mim: “fui eu né, que fiz seu atendimento”, sorrimos. Ele então explicou que fariam uma anestesia nas minhas costas e depois a anestesia geral, para prolongar o efeito para não sentir dor até 12 horas após a cirurgia. Depois veio o residente da cirurgia e me disse que também estariam outros junto com ele, além do Doutor que havia me atendido e que havia uma moça a frente da equipe. Perguntei pra ele qual era o método da cirurgia, ele disse que geralmente seria por baixo dos seios, eu sorri e disse “ASSIM MESMO”, que era o que eu queria. E complementei “Mas assim, senão der também, faça como der, o importante é colocar o peito”. Sorri de novo. Ele disse “Logo mais já vamos te chamar”. Veio outro médico e olhou meus exames, e disse que estava tudo bem, só tinha uma alteraçãozinha. Eu respondi, “ah, sim, eu sei, mas passei pro pessoal da anestesia e tem o papel aí que eu já tratei disso”. “E isso aqui do HIV, olha… eu acho que não deve dar problema não…Você tem os exames?”, “Claro claro, já sou indetectável há 5 anos”. “Ah sim, tudo bem”... Ele saiu da sala, enquanto outro veio e abriu a meia cirúrgica e começou a colocar na minha perna para acelerar a preparação para a cirurgia. Ele me orientou para como fazer em casa depois, que era importante colocar a meia pela metade e depois ir puxando ela aos poucos. E me deixaram sozinha. Então, estava tudo certo e cheguei ali, com a meia nas pernas, prontas para minha operação. Fechei os olhos e pensei “É, não estou com medo. Pensei que agora eu teria um pouco de me cortarem, mas só tenho felicidade”. Foi o momento que me permiti retirar a minha armadura e acreditar integralmente que eu tinha vencido a batalha contra o Estado, que nunca me permitiu decidir sobre o meu corpo. Eu tinha finalmente conquistado o meu peito, o meu direito de ser cada vez mais a minha própria e a única a definir sobre eu, meu corpo, e minha identidade.

    O paciente ao meu lado havia tomado uma facada voltando pra casa e sorriu “Vai ficar linda”, do lado esquerdo estava uma moça que ia colocar um passo no coração e ela também sorriu “Vai dar tudo certo”. Eu fechei os olhos e pensei nos meus amigos, em como eles tinham feito coisas inacreditáveis que me preencheram de amor. Meus amigos da faculdade que se juntaram e escreveram uma carta tão linda me apoiando e enviando um dinheiro coletivo, pessoas que eu mesma nunca imaginei que eu teria alguma importância me transmitiram carinho, outras pessoas de fora do país que me acompanhavam nas redes sociais me mandaram mensagens, risadas, posts nas redes desejando que tudo ocorresse bem. Eu estava tão cheia de carinho e dos bons desejos de tantas pessoas que havia torcido e me ajudado a realizar esse sonho.

    Então que entrou o cirurgião e me comprimentou com um aperto de mão, eu sorri e disse “Doutor, deu certo. Eu consegui!”. Ele com meus exames na mão, e toda a equipe envolta da cama. Um…dois… tinham 3 à minha esquerda! A médica e mais um… dois na minha frente! e o cirurgião junto com outros dois a minha direita. Todos em volta da calma, me cercando, então ele quebrou o silêncio: “Surgiu uma questão, que precisamos pensar juntos”. O brilho dos meus olhos começou a apagar, e meu coração acelerou enquanto ele dizia “Teve uma alteração no seu exame que não foi passado pra gente”. E na hora tudo se misturou na minha cabeça, como ainda está misturado agora que eu tento escrever sobre isso, “Eles acharam algo! Eles acharam algo! Eu não acredito, eles conseguiram achar algo pra me impedir de novo!” eu só pensava nisso enquanto eles repetiam todos, um de cada vez, as vezes juntos, o porque já haviam tomado um veredito. Eu deitada na cama, sem as minhas roupas, em volta de todos esses médicos, ao lado dos pacientes que haviam me cumprimentado, e todos os demais enfermeiros da sala, não conseguia reagir. "Sífilis…" “E o HIV?” "Sífilis…" “Não se cura rápido…” "Sífilis… “ Eles diziam que havia um risco da bactéria estar circulando no meu corpo e pegar na prótese. E que se isso acontecesse, a prótese teria que ser descartada e eu a perderia. “Você não quer perder a prótese, não é mesmo?” Eu não teria mais dinheiro pra comprar outra, mas não podia arriscar desmarcar a cirurgia. Eles já tinham a sua decisão, eu até tentei argumentar. “Mas a minha médica que é especialista…”,”mas ela não é cirurgiã”. “Mas… eu organizei a minha vida inteira, eu… eu tranquei a faculdade, minha mãe se afastou… as férias do meu trabalho”... “Você já está de férias?” “Não, eu iria entrar depois do afastamento, para me recuperar melhor”, “Ah, então melhor, pode voltar ao trabalho” disse outro. (Melhor?)

    “Então, mas não temos outro exame que comprove que seu VDRL baixou”, “sim, pode levar de 3 a 6 meses para ter uma comprovação”.... “3 a 6 meses??? Mas não pode pedir um outro exame agora, Doutor?”, “Não, não se faz esses exames aqui de emergência. Vamos ver de remarcar e pensar com calma”, “Mas como pode ser que a equipe de anestesia não conversou com vocês antes”, “É a equipe não é sempre a mesma, ai não aconteceu”, “Não, mas você precisa entender QUE EU SOU O ÚNICO CIRURGIÃO QUE ACEITA TE OPERAR, PORQUE NENHUM OUTRO AQUI FARIA…. EU ATÉ ACHO VOCÊ NORMAL, SABE, NÃO TEM PRECONCEITO….”

  •  Ta bom.
  •  Ta tudo bem? É bem não tá, mas infelizmente, eu não faria com você, o que eu não faria COM A MINHA FAMILIA.
    Eu não conseguia mais responder. Eu não conseguia mais falar. Olhar. Respirar. Eu queria ter trocado de lugar com o rapaz que levou a facada. Eu queria desaparecer. Eu não era pra estar viva, respirando mais sem ter a minha cirurgia. Eu queria desaparecer.

    “Vou lá avisar a sua acompanhante o que aconteceu”.... alguém disse, que eu já não podia mais pensar. “Vão falar pra minha mãe que cancelaram porque eu tive Sifilis?”. Eu não conseguia mais viver. Eu deitei de lado, cobri com o lençol o rosto e fiquei ali paralisada. “Calma, vai dar certo” disse a moça do meu lado, mas não tive nenhum impulso de responder. Aguardei ali sozinha, sem reação por uma hora até me colocarem numa cadeira. Não reagi e não chorei, porque não podia deixar com que eles me vissem chorar depois de tudo que fizeram. Cheguei até o andar debaixo, onde chorei sem pausa por uma hora. Minha mãe não estava na sala de espera, tinha ido encontrar minha irmã e comer algo para sair do jejum que estava desde que chegamos no hospital às 5 da manhã. Enfim, ela apareceu e eu não sabia o que dizer. Entrei com ela no banheiro e comecei a chorar ainda mais, ela me abraçou. E ela me disse que quando soube do cancelamento, ela não podia imaginar a dor que eu estava sentindo, e que ela queria dizer o quanto eu era forte e corajosa e que íamos dar um jeito. Então que eu percebi que nos papéis que me entregaram, não havia sequer um atestado médico e o retorno havia ficado para próxima segunda-feira, mas nenhum exame pedido, sem prazos, sem horizonte. E sem sequer um atestado para sobreviver ao fim daquele dia.

    Marquei o retorno e voltei na ala da Cirurgia Plástica, por sorte havia outro médico que me deu o atestado do dia. Saímos do hospital e não me sentia normal, era como se eu tivesse morrido e voltado a vida, e a vida não estivesse fazendo sentido, porque não era pra eu estar ali. Como se o mundo estivesse organizado sem a minha presença, e eu tivesse impondo estar participando de tudo que eu não era mais convidada.

    Chegando no carro, abri meu celular e comecei a avisar meus amigos que a cirurgia foi cancelada. Exclui todos os posts e storys que estavam me trazendo até a cirurgia e fiquei quieta no carro. Depois, fui pra casa da minha mãe buscar minhas coisas. Guardar as roupas na sacola, ver os livros que separei, pensar no quanto esperava por ter esse momento com a minha mãe, esse reencontro depois de 10 anos que sai da sua casa… Nada fazia sentido. Não me preparei para o amanhã-cotidiano. E amanhã era quarta, trabalhar, academia, estudar, como?

    No caminho conversamos sobre o que tinha acontecido. Ela perguntou “Mas como que é, além do HIV que você já tinha me contado, tem muitas outras coisas? Como é isso?” E eu tentei explicar o que é ser trans, e de como é dificil se relacionar com as pessoas, de como nos vem, de como nos tratam, de como faz muita pouca diferença ter um emprego ou fazer uma faculdade, quando se trata de afetividade. Ela me perguntou “Mas você é feliz?”, eu respondi “Não poderia ser feliz se eu não fosse eu mesma”, ela respondeu de imediato “Não sobre quem você é, mas com quem se relaciona”. E eu expliquei que não sou a única, que a felicidade é oposta ao capitalismo, assim como as crianças que não tem culpa de nada sofrem com fome, frio, nós também sofremos com o que é maior do que nós,e por isso eu era uma revolucionária.

    Eu estava de luto, e sem saber ainda como lidar com o fato da expectativa que todos tinham criado junto comigo. Eu me sentia com raiva de ter pego a Sifilis, mesmo sabendo que a miséria sexual que me atinge é parte da transfobia, que a maioria das pessoas que me relacionam exigem um sexo não seguro, que são pessoas que são casadas, que não se cuidam e que não se pode caçar culpados, a não ser a própria opressão e o capitalismo. Justo estes, que nunca sentam no banco dos réus, nunca podem ser pegos e sempre se escondem atrás da “boa moral e dos bons costumes” que perpetuam castigos secretos que sofrem corpos que não são vistos sob a luz do dia.

    Cheguei em casa, estava com o corpo cansado e a mente esgotada. Deitei.

    Apaguei.

    Mais tarde, minha mãe me ligou. Preocupada comigo e ainda pensando sobre tudo o que aconteceu. Ela sofreu comigo, também sofreu com o golpe e de novo, mas fez questão de me dizer as palavras mais bonitas que eu já ouvi. Do orgulho que ela tem de mim, da força da luta que eu herdei da minha avó, de que ela me conhecia profundamente e que isso era uma força que ela também se alimentava hoje. Aquilo, talvez cada um desses sentimentos que me despertou o carinho e a força coletiva que me fez chegar até aqui, e que não me fez pensar em deixar com que o Estado e esses médicos pudessem dominar a minha mente e me fazer abrir mão da vida pela covardia que eles são feitos, foi uma das coisas mais importantes e a vez que eu me senti mais amada em toda a minha vida.

    Escrever tudo isso, me custou muita força. Publicar, eu não sabia ainda. Ainda não sei como essas linhas vão chegar até você, e como vão voltar pro meu dia a dia. Mas eu falei… alto, olhando nos olhos dos meus camaradas, de pessoas que eu ainda não conhecia, de pessoas que espero conhecer ainda mais.

    Isso é Pão e Rosas, companheiras. É a força de ousarmos questionar o lugar de vítima que tentam nos acomodar, silenciando nossa força, asfixiando nossa coletividade, esmagando o nosso orgulho. Sangramos, mas não aceitamos, não, não naturalizamos essa suja prisão que nos aprisionam e essa perspectiva de vida, que é na verdade, uma sentença de morte aos nossos sonhos. Me espelho em minhas camaradas, me vejo como uma águia, capaz de sobrevoar o passado ao lado de minha heroínas revolucionárias e em memória e em defesa das suas histórias, também não vou me calar.

    E nessa luta do meu corpo como um campo de batalha, na defesa de uma sociedade onde possamos ser sem condicionantes, que eu também grito, como tantas mulheres que vieram antes de mim, cada qual em sua época, com a sua dor, com a sua angústia e coragem: Pão e Rosas. Até vencer.

    PS. Eu acho que há muito tempo fiquei preocupada com me expor sobre o HIV, especialmente por medo das pessoas próximas acharem que teria um motivo a mais pra não querer ter um envolvimento comigo. E depois que contei pra minha mãe sobre isso, decidi que não seria mais algo pra esconder porque no fundo, se a gente se esconde a gente preserva a ideologia burguesa sobre esse tema. Quem é de direita ou quem é sensivelmente conservador talvez já nem leia a minha crônica, mas eu encaro que isso é parte de toda a miséria sexual e de toda dificuldade que as relações afetivas se dão quando se trata de pessoas trans. Meu medo da briga hoje é que minha mãe sempre falava que não se deve brigar com quem faz sua comida, imagina com que vai te abrir e te dopar. Infelizmente, me sinto com medo apesar da raiva e da indignação. Tô com medo de brigar e ser pior, e tô com medo de ficar com alguém e isso gerar mais algum argumento contra mim. Aí da um sentimento de beco sem saída. Ontem falando com um amigo, eu fiquei pensando no que anos na psicóloga me deixaram ver com mais clareza, eu sempre prefiro me dispersar no coletivo do que assumir minha individualidade, porque sozinha o cotidiano é tão brutal, é tão dentro daquela "suja prisão", que não dá pra respirar e sentir que tem alguma esperança. As relações afetivas carregam todos os olhares e o desejo que está castrado e domesticado pelo capitalismo, e não se pode pensar em amor-camaradagem sem espontaneidade, ou exigir por decreto ou esperar que a racionalidade política se transforme em sentimento puro. E isso atinge muito a minha vida e minha capacidade de ser Revolucionária, porque dificulta que a minha personalidade se apresente, e que eu posso ser uma única pessoa mais integral, e não essa realidade mais cindida entre a amiga, revolucionária, estudiosa, humanizada mas assexualizada. E a fonte de desejo, de fetiche, onde se reafirma o gênero e o codifica a atração mas sem interesse algum na humanidade que está atrás do corpo. Amanhã eu sei que estarei radiante, estaremos todas fortalecidas pelas ideias que nos atravessam com a "alma" da revolução, mas sequer posso ousar o desejo. E quando eu busco ser desejada, nunca me satisfaço. Porque assim como a revolução, não basta o corpo ou só a alma, é preciso romper o silêncio do cotidiano e colocar o corpo a serviço dos sonhos, da alma, do comunismo, como diria Lenin, a revolução é a festa dos Oprimidos, para Marx o comunismo então seria viver em arte. E pra um indivíduo, não se pode fazer sentido. Afinal, o que importa? Nunca se pôde ser feliz sozinho.




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