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TRIBUNA ABERTA | Nossa Classe Educação entrevista Larissa Alves, professora demitida após questionar abordagem policial a aluno

Reproduzimos aqui entrevista concedida ao Esquerda Diário por Larissa Alves, professora estadual categoria O em Ribeirão Pires, na EE Profa. Leico Akaishi. A professora teve seu contrato rescindido após denunciar a truculenta abordagem da GCM a um de seus alunos na saída da escola e indagar sobre a naturalização da violência policial no ambiente escolar, abordando o tema didaticamente em sala de aula.

segunda-feira 24 de abril de 2023 | Edição do dia

Larissa, como você teve conhecimento da sua demissão e sob qual justificava a Diretoria de Ensino aplicou essa decisão?

A abordagem ocorreu na segunda-feira, 20 de março; nesse mesmo dia questionei no grupo dos professores e fui ignorado por todos. Postei então uma crônica em que não menciono o nome da escola ou da diretora, ao que ela respondeu em suas redes com uma imagem escrito: Processa!, seguido de uma outra postagem dessas utilizadas por pessoas mais velhas com um artista aleatório, creio que era o Jô Soares (infelizmente não printei), com uma frase sobre as pessoas terem ‘inveja’ dela e do trabalho dela.

Nosso próximo contato, apesar dela chamar vários professores para conversar durante a semana, foi somente no dia 24 de março, sexta-feira, às 12h20, quando fui chamada à sua sala. Lá, a diretora juntamente com o pessoal do administrativo, outras 3 pessoas de sua confiança, me informaram que meu contrato estava sendo extinto, pois não cumpri com minhas funções de professora ao postar um texto (até esse momento, ela não sabia que era uma crônica), utilizá-lo em sala de aula, incentivar os alunos a se rebelarem, expondo os jovens abordados que eram menores de idade (cabe ressaltar que eram 3 garotos, meu aluno e outros 2 ex alunos), o que causou prejuízo no emprego de um deles. Dois parágrafos mal escritos encerrando meu trabalho. Pedi uma cópia do documento, me negaram aos risos, disseram que não era necessário uma cópia pois já havíamos falado sobre os motivos.

Me foram dados 3 dias para me defender, só tive acesso ao documento que me foi negado no fim do primeiro dia de defesa após um único telefonema da supervisora pedindo para que a direção liberasse o tal “Termo de ciência inequívoca”. Feita a defesa, entreguei uma cópia na escola e uma na diretoria de ensino, na quarta-feira, 29 de março. Ao receber minha defesa, a diretora escreveu um novo documento, respondendo ponto a ponto tudo que eu havia apresentado, inclusive, chamou em sua sala alunos que participaram da minha defesa para dizer que estava muito decepcionada com eles, pois ela sempre os havia ajudado.

Esse novo documento redigido por ela, juntamente com vídeos e imagens que até hoje eu não tive acesso, foram entregues em mãos ao Dirigente de Ensino no mesmo dia em que a decisão foi tomada, e usado como argumento pelo Dirigente para a exclusão do contrato. Não tive direito a defesa, pois fui acusada somente após me defender, não obtendo acesso ao material de acusação e, curiosamente, me foi informado pelo advogado do sindicato que por ser um processo complexo em que é necessária uma ampla análise de documentos, esse tipo de decisão costumava sair somente no último dia, o décimo. No meu caso, a decisão saiu na quinta-feira, 30 de março, antes das 13h. Foi bem rápida essa demissão, em questão de horas.

Você associa a sua demissão com a censura e o discurso de ódio da direita e da extrema direita aos professores e à educação pública?

Com certeza. No documento escrito pela diretora que foi usado de justificativa para me demitir e que eu só obtive acesso após a extinção do meu contrato, ela afirma que eu a perseguia por ela ser bolsonarista e que eu divulgava a todos os alunos que seu marido era policial, colocando a família dela em risco. Não há absurdo maior do que esse. Dou aula para alunos evangélicos, ateus, bolsonaristas, anarquistas, comunistas, otakus, funkeiros, e você pode perguntar a cada um deles se algum dia os desrespeitei por suas crenças. Não é à toa que no dia 27 de março, segunda-feira, nenhum aluno entrou na escola, em protesto contra a minha demissão. Em minhas aulas, preciso recuperar a defasagem deixada pela pandemia, não tenho tempo para fofocar sobre a vida alheia.

Inclusive, é rotineiro a diretora da escola assistir às nossas aulas pelas câmeras, papel que não lhe cabe, uma vez que assistir aulas é uma função da coordenação pedagógica para apontar acertos e erros, indicando pedagogicamente onde o professor pode melhorar. A qualquer momento em que você chegar na sala da direção, verá a TV exibindo a aula de algum professor. Nunca é claro o motivo, mas posso sugerir alguns: vigiar e punir.

Após saber do ocorrido com seu aluno, você questionou a diretoria da escola sobre a naturalização de abordagens policiais aos estudantes. Nesse processo, você obteve algum apoio do corpo docente e de seus colegas de trabalho?

Obtive apoio somente de uma professora (...) de educação física, pois ela também sofria assédio moral da diretora, então eu conhecia sua atuação, mas nunca havia chegado a tanto por ela ser efetiva, e sendo efetivo você possui uma "imunidade". Inclusive, eu acompanhei a professora Bruna na realização das denúncias, mas a ouvidoria da SEDUC é falha, coloca os denunciados para responder às denúncias, então nunca dá em nada.
Não culpo meus colegas pela falta de ação, eles são arrimos de família, contratados nos mesmos termos que eu, a famosa categoria O, além disso, estão exaustos, sobrecarregados em suas funções e tudo aconteceu muito rápido. O assunto só foi debatido depois da minha demissão, ou seja, foi um debate sem a minha participação. Um debate de um lado só, em que a diretoria falou o que quis sem nenhum contraponto.

Você abordou didaticamente o tema a violência policial em sala de aula. Como foi a aceitação e as contribuições dos alunos em relação a este assunto?

Baseio minha aula religiosamente nas teorias de Paulo Freire, e uma delas diz que o conteúdo programático da aula deve ser definido juntamente com os alunos, não fixado por um livro que é padrão em todas as escolas da rede estadual de SP. Foram eles que pediram que eu falasse sobre o que ocorreu na saída, então enxerguei aí a possibilidade de trabalhar o gênero crônica e uma de suas funções que é a denúncia.
Haviam alunos que concordavam que era necessário sim ocorrer abordagens na frente da escola, outros ficaram indignados, o que suscitou debate entre a sala. Não chegamos a conclusões pois esse não era o intuito. O objetivo era não naturalizar esse tipo de cena, fazendo-os apontarem acertos e erros, refletindo, desenvolvendo assim o senso crítico. Mas independente de quem concordou ou discordou da abordagem, todos participaram do protesto contra a minha demissão.

Os estudantes relatam experiências de violência policial? Se sim, como a escola lida com isso? Isso é debatido em sala de aula e nas reuniões pedagógicas?

No fim do ano passado, ao sair para o intervalo, me deparei com a presença de um policial armado parado em frente ao banheiro do pátio enquanto os alunos comiam - ou seja, a presença ostensiva da polícia dentro da escola é um padrão da gestão dessa diretora. Isso me gerou um desconforto enorme, pois eu não trabalho em um presídio, mas em uma escola. Nesse dia tive a minha primeira discussão com a diretora e isso ocorreu, por escolha dela, na frente de uma turma inteira de terceiro ano do ensino médio.
A diretora entrou na minha sala após o intervalo e viu que os alunos estavam preocupados me perguntando o motivo do policial estar lá, então disse que como eu iria dar a minha opinião sobre a presença da polícia, ela também daria a dela, ao que agradeci, pois todos queríamos explicações.

Ela nos informou que era para segurança de todos, pois uma aluna havia sido seguida durante a saída, ao que questionei que então caberia a ronda escolar do lado de fora, não um policial armado do lado do banheiro. Informei também que a polícia gerava medo nos alunos, pois muitos já haviam sofrido violência policial por conta da cor de pele. Ela negou que isso acontecia, e disse que sempre que alguém é abordado é com motivo. Disse ainda que ela mesma já havia sido abordada, o que infelizmente fui incapaz de conter o riso pois eu sabia que era em blitz, e ela confirmou.

A diretora resolveu então perguntar aos alunos negros se eles já haviam sido abordados. Ela perguntou a uma aluna, que respondeu com um sim, questionada sobre o motivo, a aluna apontou para a própria mão e disse: foi pela minha cor. Toda essa história pode ser confirmada pelos alunos que estavam presentes na sala e que, inclusive, alguns deles participaram da manifestação contra a minha demissão mesmo não estando mais na escola.

Em resumo, a escola nega que exista, desconhece a realidade ou então aponta os alunos como culpados pelo que acontece com eles. Não há um trabalho pedagógico em cima do tema, muito pelo contrário, há um forte preconceito contra a cultura dos adolescentes, que majoritariamente são funkeiros, uma cultura marginalizada.

A classe trabalhadora é composta majoritariamente por negros que são alvos constante da violência polícial. Após os recentes ataques e ameaças às escolas, tem se tornado comum a presença ostensiva da polícia nos arredores e dentro das escolas. Na sua visão, o policiamento e a militarização das escolas públicas é capaz de garantir a segurança dos alunos, professores e funcionários? O que há por trás desse projeto defendido, entre outros, pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas?

As escolas militares não têm eficiência comprovada, são caras e pregam a obediência e a padronização. Isso não é educar, é adestrar. Devido ao senso comum, achamos que é com mais grades, detectores de metal, câmeras e policiais nas salas que vamos resolver a violência nas escolas. Ignoram os estudos indicando que na verdade precisamos fazer o caminho contrário, transformando as escolas não em um campo de guerra, mas num espaço de acolhimento, diálogo e aceitação; ignoram aquele que é o terceiro pensador mais citado do mundo em pesquisas nas áreas de humanas, Paulo Freire, que já deixou a receita do que devemos fazer para educar para a liberdade; ignoram as necessidades de crianças e adolescentes, enxergando-os como números, e não como pessoas em desenvolvimento.

A crise da educação não é uma crise, mas um projeto, como Darcy Ribeiro nos disse. As famílias terão medo de deixar seus filhos em escolas estaduais, e assim se dará o fim da educação pública: primeiro sucatear - baixa remuneração dos professores, ambiente tóxico de trabalho, espaços deteriorados, ensino precarizado e… violência -, depois privatizar.
No fim é tudo sobre dinheiro.

Quais medidas você enxerga como saída para a situação de violência e a precarização das condições de trabalho e estudo nas escolas?

Toda essa situação me trouxe a ideia de desenvolver um trabalho de mestrado discorrendo justamente sobre esse assunto. Eu nunca tive medo dos meus alunos, pois sempre os respeitei e recebi respeito de volta. Sempre os ouvi, sempre acreditei neles, especialmente naqueles que não acreditam neles mesmos. A saída é a “Pedagogia do Oprimido”, é ensinar com carinho e acolhimento, é ensinar aprendendo, dando o exemplo, SENDO o exemplo.
A educação não vem de casa, a violência vem, e a escola é o único lugar capaz de transformar a vida desses que já nasceram fadados ao fracasso. É necessária uma completa reformulação das escolas e dos cursos de licenciatura ofertados hoje.

***

Reproduzimos abaixo a crônica citada pela professora Larissa, de sua autoria, escrita a partir dos acontecimentos vividos envolvendo o caso em questão, que sabemos que não é isolado, mas uma infeliz realidade sobretudo na rede pública de ensino. O Movimento Nossa Classe Educação abre o Esquerda Diário para receber depoimentos e denúncias de todos os educadores e estudantes que queiram compartilhar e visibilizar sua experiência e suas opiniões com o autoritarismo,a repressão e a militarização das escolas.

Nós, professores e trabalhadores da educação do Movimento Nossa Classe Educação, prestamos toda solidariedade à professora Larissa. Precisamos batalhar para construir uma unidade entre os professores, alunos e as comunidades escolares, que são os mais afetados pelas reformas na educação, e assim enfrentar não apenas o legado de décadas de precarização do ensino público pela direita neoliberal e seus sucessivos governos, como também todo o discurso de ódio bolsonarista que estimula a violência, uso de policiamento e a censura aos professores em sala de aula.

***

“Imagina a cena:

12h35, você saindo correndo da escola depois de trabalhar doente - professor não pode faltar, só se estiver morrendo -, vejo meu Uber parado em frente a escola em que trabalho e estou fugindo. Entro no carro, vejo a polícia se aproximando. Meu aluno, saindo da escola nesse mesmo minuto, encostado no muro e o policial aponta uma pistola pra cabeça dele.

Saiu da escola, atravessou a rua, a polícia viu e parou pra apontar uma pistola em direção a cabeça dele.

Ele chegou 7h da manhã. Ficou na escola. 12h35 saiu, nesse mesmo 12h35 a polícia apontou uma pistola na cabeça dele.

A diretora da escola viu e ficou rindo com os policiais enquanto realizavam a abordagem.

Ele não estavam com nada.
A não ser a cor.

Ribeirão Pires, segunda-feira, 20 de março de 2023.”




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