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CINEMA | O feminismo cor-de-rosa da Barbie: algumas reflexões e um pouco de spoilers

Depois de meses de espera, “vazamentos” de fotos dos sets de filmagem, declarações enigmáticas e toda a sorte de meios de divulgação, com direito a fogos e tela cor de rosa no google para quem digitar qualquer referência sobre o filme, ou Airbnb na DreamHouse, estreou na última semana o tão esperado filme da Barbie, a icônica boneca da Mattel. O filme é dirigido pela atriz e diretora em ascensão Greta Gerwig, responsável pela refilmagem de Adoráveis Mulheres, um clássico feminista, e Lady Bird.

Patricia GalvãoDiretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil

sábado 29 de julho de 2023 | 21:53

A avalanche cor-de-rosa que tomou os cinemas do país, e de quase todo o mundo, é compreensível. A invenção da boneca sexagenária significou um marco na forma do brincar de meninas pós anos 60. Para marcar o impacto que a boneca causou, o filme de Greta Gerwig refaz, com certa ironia, a cena icônica de em 2001- Uma Odisseia no Espaço, do diretor Stanley Kubrick. Em meio a meninas entediadas brincando de casinha, surge uma Barbie Gigante colorida, o que leva as meninas a tomarem consciência de si mesmas e a destruírem seus antigos brinquedos que as mantinham presas ao eterno papel de mães e donas de casa. Tudo isso ao som da música épica “Assim falou Zaratustra” de Richard Strauss. Nada mais seria como antes, pelo menos em relação a "brincar de boneca". Obviamente é preciso dar as devidas proporções e contextos ao impacto que essa invenção teve e ainda pode ter sobre as meninas.

Já é bastante difundida a história do surgimento da boneca. Sua inventora foi Ruth Handler, que se tornou CEO da Mattel nos anos 70. Em busca de uma boneca que melhor se adequasse às aspirações de sua filha, Barbara, que não gostava de brincar de casinha e ser mãe de bonecas bebês, Ruth se inspirou numa boneca alemã, de feições adultas e destinada ao público masculino chamada Bild Lilli. Lilli era uma personagem de uma tirinha baseada no esteriótipo machista da mulher bonita e interesseira. A invenção da boneca Barbie vai incorporar essas duas questões, contraditórias entre si. Expressava o desejo de uma nova geração de romper com os papéis de gênero tradicionais que o patriarcado as impunha, de uma lado, mas reforçava padrões estéticos e de feminilidade , de outro. Em fins dos anos 50 e início dos 60, era um misto da segunda onda feminista e o American way of life.

A segunda onda feminista trouxe à tona o questionamento às relações entre os sexos no âmbito privado, tornando o debate público. O pessoal é político. Ou seja, tratava-se justamente de questionar o lugar das mulheres no casamento e nas relações amorosas e familiares, as tarefas domésticas e a própria sexualidade. Era um momento político que foi marcado por também pela ascensão dos Estados Unidos como a grande potência imperialista, que passou a propagandear e, mais ainda, impor com força, o estilo de vida americano, seus valores morais, políticos e ideológicos. Barbie é fruto dessa atmosfera política e dessas contradições.

A boneca é branca, loira, alta, magra. Ela é independente, de fato, mas pertence a uma classe e seus padrões se espelham nessa classe. Seu namorado, Ken, nunca emplacou como um boneco tão popular quanto a famosa boneca e sempre foi tratado como mais um acessório. Na prática, a maioria das meninas sequer tinham o boneco, pois brincar de Barbie era poder vesti-la, conversar com outras Barbies, ir a viagens, lanchonetes, coisas do tipo. Quando havia que se imaginar um momento romântico, qualquer boneco servia de um ursinho de pelúcia ao Max Steel, ou bonecos soldados dos irmãos. Mesmo Barbie com Barbie valia. Ter um Ken era descartável.

Os novos modelos da Barbie responderam às demandas da época tanto quanto às pressões conservadoras. Ela teve inúmeras profissões: aviadora, como Amelia Earhart, astronauta, durante a corrida espacial, engenheira, advogada, professora, veterinária, médica até candidata a presidente dos Estados Unidos. Já teve livro de dieta em suas mãos, já falou frases sobre a matemática ser muito difícil, teve amiga grávida, irmã. A Mattel ao longo dos anos testou diversos discursos em nome do que fosse mais lucrativo. Nesses testes ficavam claras as contradições de uma boneca pensada por uma grande corporação interessada no lucro e pouco preocupada com a infância ou a luta das mulheres.

O filme de Gerwig tem o mérito de expressar, através da ironia, algumas dessas contradições. Também parte de um potente discurso de denúncia, pela voz da personagem de América Ferreira, sobre as pressões e como a opressão se materializa na vida das mulheres em relação à sua confiança em si mesmas. Mas vai até aí.

A Barbie tem diversas profissões, mas ela é trabalhadora?

Ao apresentar a Barbilândia, por uma fração de segundos, vemos algumas Barbies garis, recolhendo o lixo. Já no mundo real, um grupinho de operários da construção civil tecem "cantadas" machistas à boneca. Nada mais diz respeito às trabalhadoras e sua classe. Mas, seja na Barbilândia ou no mundo real, os frutos da classe trabalhadora está em tudo.

Se, por um lado, a boneca da Mattel representou o questionamento das meninas aos antigos papéis de gênero, por outro lado expressou o desejo das mulheres burguesas de quebrar o teto de cristal e não os mecanismos de opressão e exploração do capital. Barbie foi de tudo, até candidata ao cargo máximo de poder do país mais importante do mundo. Mas ela nunca foi da classe trabalhadora. Nunca representou a classe mais poderosa do mundo, que tudo produz, inclusive as bonecas.

E o filme de roupagem feminista de Gerwig tampouco critica esse aspecto que garante à Barbie, um caráter de classe. Da classe dominante. Dois momentos parecem emblemáticos nesse aspecto. Ao refletir sobre o porquê as Barbies perderam o poder na Barbielândia, ela conclu que ao não verem mulheres ocupando outras posições de mando, as bonecas perderam a confiança em si mesmas, possibilitando a ascensão dos Kens e a submissão das Barbies. Parte da afirmação, correta, de que vivemos sob o patriarcado que tenta limitar a participação das mulheres em tudo, e que se reflete na ausência de mulheres ocupando cargos políticos, sendo reconhecidas e premiadas, etc . Mas, conclui que a saída é mais representatividade.

Na cena final, Glória (America Ferreira) pede ao CEO da Mattel uma Barbie que representasse uma mulher comum. Mas, quem seria a mulher comum? Seriam aquelas que são mães e se desdobram entre duplas e triplas jornadas? A que estuda e trabalha? Gerwig que nos desculpe, mas não há nada de comum nas mulheres trabalhadoras. Assim se expressa a visão de um feminismo neoliberal que dilui as mulheres trabalhadoras e seu papel crucial para a humanidade em algo ordinário, comum. Porém, é justamente a exploração das mulheres, do seu trabalho gratuito e na produção, somada à exploração da classe trabalhadora que sustenta o capitalismo. Uma CEO como Ruth Handler, Luiza Trajano ou qualquer outra, ou uma presidente como Angela Merkel, Dilma Rousseff, não mudaram a situação das mulheres trabalhadoras.

Kenough? O patriarcado e os homens

Um grande setor conservador e machista acusa o filme de misandria (aversão aos homens). É verdade que todos os homens retratados no filme são muito burros. Mas não são retratados como vilões, propriamente.

Ao tomar o poder na Barbielândia, Ken quer menos restaurar o patriarcado, que permanece intacto no mundo real e no de brinquedo, e mais ter algum controle sobre a sua própria vida sem depender da Barbie. Tanto que sua visão de patriarcado são cavalos e homens sendo mimados por mulheres. Muito longe do real significado da submissão da mulher por milênios que a manteve disciplinada, reprimida e explorada e que serviu para que as classes dominantes ao longo da história exercesse seu poder sobre as classes oprimidas. Claro que o patriarcado que Ken busca não é inofensivo, mas é muito menos difícil de se derrubar que o patriarcado real, sustentáculo do sistema capitalista, cuja materialização na vida das mulheres vai muito além do papel de servir aos homens, mas significa serem a maioria entre os miseráveis do mundo, serem vítimas da violência machista, desigualdade salarial e duplas jornadas. O patriarcado custa a vida das mulheres em todos os aspectos, da força vital a força moral.

Nesse sentido, os CEOs da Mattel são mais perigosos que um boneco cuja auto-estima e mesmo a sua suposta masculinidade estão abaladas. No mundo real, esse masculinidade ferida, uma emasculação como a que Ken sente custaria a vida da mulher. O combate ao patriarcado é assunto de primeira ordem. Essa diferença que coloca o feminismo de Hollywood como inofensivo ao patriarcado.

A burrice masculina no filme poderia ser lida mais como um revanchismo feminista do que de fato uma ofensa e aversão aos homens em geral. O mimimi da extrema-direita em relação ao filme é a demonstração de que o patriarcado não quer ceder em nada. Nem se for uma piada em um fime que faz o que por anos fizeram com a mulheres: esteriotipa-las como bonitinhas, mas ordinárias.

O patriarcado, porém, não tem nada de burro e derruba-lo exigirá muito mais do que recuperar a auto estima das mulheres, é preciso uma mudança radical, desde a raiz. Essa mudança só é possível a partir da unidade entre homens e mulheres da mesma classe. A greve dos roteiristas, atores e atrizes de Hollywood apontam o caminho para a emancipação das meninas e mulheres. A luta de classes.




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