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Crítica | O insustentável peso do capitalismo: elementos para a crítica à distopia de O mundo depois de Nós

É preciso lutarmos contra a falsa ideia de que não é possível outro modo de sociabilidade para além do capitalista. É mais que urgente a compreensão de que, além de possível, o socialismo é necessário para a sobrevivência e desenvolvimento das potencialidades humanas.

Kleiton NogueiraDoutorando em Ciências Sociais (PPGCS-UFCG)

quinta-feira 21 de dezembro de 2023 | Edição do dia

Imagem retirada do site: https://hotcore.info/babki/dystopian-city-concept-art.html

A distopia, gênero que está em moda nos últimos tempos através da literatura, seriados e filmes, tem por característica apresentar uma sociedade colapsada por algum evento de cariz social ou ambiental, tendo como mediação o Estado, e na construção da imagem do homem utilitarista que, em meio ao caos, visa maximizar seus interesses associados à sobrevivência.

Na contemporaneidade, esse gênero ganhou os holofotes de grandes empresas de streaming como a Netflix, que adentrara no mercado da produção cinematográfica com filmes da estirpe de Don’t look up estrelado por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, que remete à temática do “fim do mundo” pelo impacto provocado por um corpo celeste que se choca ao planeta terra a uma velocidade inimaginável. Mesmo após insistentes alertas dos personagens principais, que atuaram como pesquisadores no enredo, os Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs) encarnados na mídia digital e em canais televisivos, relativizam o fenômeno a partir de um ponto de vista negacionista e capitalista, com o fulcro de manutenção da produção e circulação de mercadorias, e na base de tudo isso, na manutenção da exploração e opressão de classe.

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Neste ano (2023) outro filme chamou atenção por apresentar uma temática semelhante: o longa-metragem O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind, no original) que tem no elenco Julia Roberts, Mahershala Ali e Ethan Hawke. O longa visa transmitir ao público um ritmo de suspense e mistério a partir de eventos que vão ocorrendo entre esses personagens principais. O enredo inicia com Amanda (Julia Roberts), uma executiva de publicidade, Clay (Ethan Hawke), um professor universitário, e seus dois filhos, Rose (Farrah Mackenzie), viciada no seriado Friends, e o adolescente Archie (Charlie Evans) tirando férias numa área florestal, distante da urbes estadunidense.

Certa noite, bate à porta da casa no qual a família de Amanda está hospedada, G.H. (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha’la), que buscam abrigo após um apagão atingir a cidade de Nova York, e informam a Amanda que a casa em que ela está hospedada são deles, e que devido a eventos estranhos como o apagão, decidem se afastar da cidade.

Para além da trama, envolvendo as duas famílias, no qual observamos o suspense, a desconfiança e o racismo de Amanda para com G.H, percebemos eventos estranhos como o fato da família de Amanda ter presenciado um navio petrolífero desgovernado encalhar na praia devido a um colapso no sistema de navegação por satélite, além do comunicado do governo dos Estados Unidos de que o país estaria sendo alvo de um ataque cibernético, e a aparição de animais exóticos na casa onde as duas famílias passam a conviver, deixa o expectador perdido na trama, sem saber ao certo o epicentro de tais acontecimentos.

Imagem retirada do site: https://blogs.correiobraziliense.com.br/proximocapitulo/o-mundo-depois-de-nos-leva-para-tela-ficcao-com-arrepio-de-futuro/omundodepoisdenos/

Do ponto de vista de uma matriz estrutural, o filme segue três atos principais: o primeiro associado à ocorrência de tais eventos e seu aprofundamento com a expansão de micro-ondas sonoras de alta frequência; o segundo pela ausência de comunicação e informações desconexas que fazem com que os personagens se sintam perdidos na maior parte do tempo, mas que nos dá uma noção de algum colapso ou ataque promovido por algum inimigo dos Estados Unidos, com suposições que o possível colapso teria sido provocado por asiáticos ou árabes. E um terceiro desfecho, que se concentra no final a partir da busca de Amanda e Clay à Ruth, e que no interstício da buscam observarem a cidade de Nova York colapsar mediante um cogumelo radioativo, oriundo de uma explosão.

De modo geral, o filme retrata um mundo supostamente após nós, ou melhor, o momento de colapso geral da internet, dos sistemas de comunicação e do governo dos Estados Unidos, que aparece no filme como um universal e representante da humanidade. Esse fato fica nítido quando G.H, por ser consultor financeiro, informa à Amanda que, retornara com a filha para a casa em área florestal porque um amigo seu, do pentágono, e que utilizava suas consultorias financeiras, informou no passado em tom de brincadeira numa noitada de bebidas que fazia parte de um “clube do mal” que manipulava informações e conseguia realizar golpes de estado em todo o mundo. Posteriormente, G.H ao receber uma ligação desse mesmo amigo, recebe um conselho, em tom alarmante, que ele deveria sair da cidade, por algum motivo que não fica bem explícito.

Chama atenção, a partir do núcleo central do filme, uma distopia apocalíptica. Como é comum das distopias produzidas por esses APHs, o problema sempre é externo ao modo de produção capitalista, e diante do colapso, não há alternativas, como nos lembra Lucía Nistal em texto publicado no Esquerda Diário:

“De qualquer forma, essa falta de alternativa que aparentemente certificou a queda da URSS inaugura toda uma era de ’fim da história’, como afirmou Fukuyama, um ’não há alternativa ao capitalismo’ que permeou e continua permeando as produções culturais, capaz de imaginar as mais variadas catástrofes, apocalipses e distopias, mas não o fim do capitalismo, como explicam Mark Fisher (“Realismo Capitalista”) ou Fredric Jameson em vários textos. A falta de alternativa que o neoliberalismo passou a fazer doutrina a partir dos anos 70 do século XX passado.”

É curioso e estratégico que essa falta de alternativa seja disseminada por esses APHs. Como nos informava o marxista sardo Antonio Gramsci, nas Sociedades Ocidentais, nas quais temos uma maior complexidade da sociedade civil, as trincheiras de lutas são mantidas por uma série de mecanismos que atuam dialeticamente na manutenção da ordem capitalista, sendo a produção de uma cosmovisão de mundo pelos intelectuais orgânicos e distintos aparelhos, uma dessas trincheiras que marcam posição na luta de classes na contemporaneidade.

Neste sentido, é mister observarmos que a máxima relembrada por Mark Fisher: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” de fato pode ser utilizada para analisar essas distopias criadas por essas grandes empresas como Netflix; Amazon; Apple Tv, Sony, HBO, dentre outras. Para o escritor britânico, ao analisar o filme: Filhos da Esperança (2006), argumenta que essas distopias passam a mensagem de que o capitalismo é a única forma de sociabilidade, e que para além dela, nada é possível de existir, a não ser, um mundo depois de nós, ou seja, um não mundo, uma não existência:

“Ao assistir Filhos da Esperança, é inevitável lembrar da frase atribuída a Fredric Jameson e Slavoj Žižek, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Esse slogan captura precisamente o que quero dizer por ’realismo capitalista’: o sentimento disseminado de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar uma alternativa à ele. (Fisher, 2020, p.5).”

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Para a burguesia, esse modo de produção é eterno e natural. A ideia de mudança e perspectiva revolucionária não faz parte mais desta classe desde o século XIX, como Marx e Engels analisara em obras como o Manifesto comunista. De classe revolucionária, esta passou à conservadora e reacionária, buscando a todo custo, manter a sociabilidade capitalista, no que parece algo lógico, pois nenhuma classe que é dominante e dirigente abandona a cena histórica e seus privilégios de classe, sem antes lutar e mostrar resistência, utilizando de todos os meios disponíveis ao seu alcance.

Essa ideia retoma certamente a reflexão de Marx e Engels na Ideologia Alemã acerca do fato de que, as ideias dominantes de uma determinada época são aquelas das classes dominantes, que atuam por uma série de mecanismos de convencimento e opressão, colocando seus interesses como gerais a todas as classes sociais, tendo primazia não apenas nos elementos ideológicos e culturais:

“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação (Marx; Engels, 2007, p. 47).”

O controle sobre a produção material da vida, como nos lembra o Revolucionário Bolchevique Leon Trotsky em texto de 1939, implica, sobretudo, na dominação da situação associada à luta de classes, uma vez que: “A luta de classes não é outra coisa senão a luta pela mais-valia. Quem possui a mais-valia é o dono da situação, possui a riqueza, possui o poder do Estado, tem a chave da igreja, dos tribunais, das ciências e das artes” (Trotsky, 2008, p. 163).

Neste sentido, observamos que produções como o mundo depois de nós não surgem por acaso, são produzidas e disseminadas num contexto de aprofundamento da crise capitalista em meio a conflitos no cenário internacional: Rússia e Ucrânia; Invasão do imperialismo israelense à Palestina; disputa comercial e tecnológica entre China e Estados Unidos; ascenso de governos de extrema-direita como assistimos no caso brasileiro, mas também na Argentina com Javier Milei, em que pese as particularidades das formações econômico-sociais desses dois países, mas também no ascenso extremista em países como Itália; França; Índia; Polônia e Holanda, fenômenos que relevam uma situação de aprofundamento das contradições do modo de produção capitalista.

Para a burguesia internacional, como este modo de produção é eterno, buscam introjetar no imaginário coletivo, tornando senso comum suas ideias, como nos lembra Gramsci (2006). Essas ideias buscam introjetar que o capitalismo demarca o fim da história, como já afirmara Fukuyama (1992), não restando outra alternativa à sociabilidade humana, ao estabelecimento de outras forma de conceber a produção material da vida.

Nesse sentido, a partir de um ponto e vista crítico e ofensiva, é preciso ações e reflexões contra essas mistificações burguesas, é oportuno reafirmar a primazia da realidade concreto-material, da luta de classes, da necessidade de partidos revolucionários que defendam programas classistas, que construam opções socialistas com independência de classe, modificando, assim, as relações sociais de produção, balizados pelo atendimento das reais necessidades humanas. Torna-se fundamental lutarmos contra a falsa ideia de que não é possível outro modo de sociabilidade para além do capitalista. É mais que urgente a compreensão de que, além de possível, o socialismo é necessário para a sobrevivência e desenvolvimento das potencialidades humanas.

Referências

FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
FUKUYAMA, F. O fim da História e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Boitempo, 2007.
TROTSKY, Leon. O marxismo e nossa época. In: TROTSKI, Leon. O imperialismo e a crise da economia mundial. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008, pp.157–190.


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