×

Rio Grande do Sul | O vendaval neoliberal gaúcho e a colaboração de classes

Margareth Thatcher precisou quebrar a espinha dorsal do movimento sindical britânico, derrotando a greve dos mineiros que pararam por mais de 16 meses, para implementar o neoliberalismo na ilha e avançar numa nova era do capitalismo mundial.

segunda-feira 4 de setembro de 2023 | Edição do dia

Até hoje Thatcher é espelho para lideranças políticas burguesas que, de forma mais ou menos escancarada, tentam aplicar o modelo privatizante em seus governos. Esse é o caso de Eduardo Leite e Sebastião Melo, dupla que ficará na história do Rio Grande do Sul como mercadores de direitos e destruidores do patrimônio público. A colaboração de classes vem sendo bússola das principais organizações que hoje dirigem os sindicatos e entidades estudantis no estado, como PT, PCdoB e PSOL, e assim pavimentando o caminho para o triunfo da orientação neoliberal.

A lista da devassa é enorme e Leite, sozinho, coleciona cerca de 20 privatizações: as três subsidiárias da CEEE, a empresa de gás natural Sulgás, a empresa de saneamento Corsan, a mineradora CRM já obteve aval de privatização na ALRS e aguarda decisão, inúmeras rodovias que, quando finalizadas, encerrará a existência da EGR, e vários parques, como o do Turvo, do Caracol e Tainhas. É uma verdadeira liquidação, a preço de banana, de patrimônios que haviam resistido ao vendaval neoliberal da década de 1990 com FHC. Recentemente também aprovou a privatização do IPE Saúde com as centrais mandando os trabalhadores para casa na Praça da Matriz. A última barbárie de Eduardo Leite foi a tentativa de terceirizar o serviço de atendimento do SAMU, um absurdo total.

Além das privatizações, Leite também implementou um pacotaço de retirada de direitos, em 2019, que continha a reforma previdenciária no estado, fim do plano de carreira dos professores, extinção de benefícios, entre outras medidas que vieram para desincentivar ainda mais os jovens a ingressar futuramente numa carreira docente e destruir os serviços públicos. Tudo em nome do Estado enxuto que os mandamentos neoliberais pregam.

Enquanto o governo vendia o estado, o dono da Zero Hora perdoava os escravocratas da Salton e dizia ter “muito orgulho” da “classe produtiva” ligada ao vinho gaúcho. Não é casual o vendaval neoliberal ter sido acompanhado do grotesco caso dos mais de 200 trabalhadores negros e baianos nas vinícolas serranas resgatados do trabalho escravo e uma alta histórica de casos no estado.

Como Thatcher, Leite também teve que se enfrentar com uma forte greve a fim de avançar os planos neoliberais na região. Os professores da rede pública estadual resistiram ao pacotaço durante mais de dois meses em uma greve heróica, entre 2019 e 2020, mas foram derrotados. Desde então, a boiada vem passando, atravessou a pandemia, o retorno das atividades presenciais, todo o governo Bolsonaro, as eleições de 2022 e chegou no início do governo Lula com vontade de ampliar a sangria. Se Leite conseguiu o que Sartori e outros tentaram, mas fracassaram, foi em grande medida devido à situação reacionária aberta com o golpe de 2016, a eleição de Bolsonaro, à maioria parlamentar na ALRS e ao enorme e entusiasmado apoio da grande mídia às medidas draconianas, com destaque para a Zero Hora. Mas o governador contou também com um apoio menos explícito nesse processo – as centrais sindicais e as organizações políticas que dirigem o movimento operário, estudantil e popular do estado do Rio Grande do Sul, em especial o PT e seus aliados.

Havia disposição e potencial de resistência aos ataques. As medidas de ajuste e privatizantes não possuem apoio popular, elas visam sucatear os serviços públicos e vender o patrimônio público a um punhado de capitalistas. Mesmo com a enorme propaganda da Zero Hora, a maioria dos trabalhadores, da juventude e da população mais pobre do estado não as apoia. Mas os sindicatos e as centrais sindicais trabalharam para conter essa disposição de luta e desviá-la para uma estratégia de mera pressão parlamentar e manobras jurídicas. Foi o que ocorreu com a greve de 2019-2020, em que o CPERS, dirigido pelo PT e PCdoB, recuou no momento decisivo da greve e abriu espaço para a aprovação do pacotaço. Nós analisamos esse processo aqui.

Movimento semelhante se deu com as privatizações da CEEE, Corsan, Sulgás e agora CRM e também com o IPE Saúde. Qual grande campanha a CUT, a CTB e os sindicatos mais fortes do estado fizeram para impedir esse crime? Era necessário parar tudo para impedir que o governo e a ALRS vendesse as estatais, organizar assembleias nos mais variados locais de trabalho do estado para organizar a força da classe trabalhadora, mas as centrais preferiram apostar na benevolência dos tribunais e em manobras parlamentares a fim de não se enfrentar de fato com o governo. Era preciso, durante todo esse processo, ligar as lutas salariais, contra a carestia de vida, desemprego e fome, com o combate às privatizações. Mas o PT, PCdoB e também o PSOL sempre preferiram postergar a luta visando a troca de governo. É a velha história das ilusões institucionais se sobrepondo à confiança na luta de classes e nos métodos históricos do movimento operário. O mesmo roteiro se deu esse ano, quando a direção do sindicato dos professores trabalhou para tirar a categoria de perto da ALRS e abrir espaço para que os deputados destruíssem o plano de saúde dos servidores a portas fechadas. O CPERS e os sindicatos preferem apostar no suposto “diálogo democrático” com o governo, do que na força dos trabalhadores. Acontece que com Leite, a direita e a burguesia gaúcha não existe diálogo possível.

Talvez o caso mais escancarado tenha sido o da Carris. Centenas de rodoviários protagonizaram uma greve heróica na segunda metade de 2021 contra a venda da centenária empresa e também contra a extinção do cargo de cobrador. A CUT sequer fingiu que apoiava a greve, apenas soltou uma ou outra nota, enviou um ou outro representante para os atos mais cheios, mas se negou a organizar apoio ativo real a essa importante mobilização. Na prática, a CUT e o PT boicotaram a greve, colaborando com seu isolamento e com os objetivos do Melo e dos empresários do transporte. Quando questionados sobre esse boicote, afirmaram que a Carris é terreno do PCdoB - uma concepção criminosa que serve à divisão da categoria e ao Melo. Como desenvolvemos em um texto de balanço sobre a greve, na época o PSOL cumpriu o papel, através de um parlamentar, de desmontar a greve em seu início quando ela estava mais forte, permitindo um recuo que a prefeitura aproveitou e aprovou a extinção do cargo de cobrador. Ao mesmo tempo, entidades estudantis importantes, como DCE da UFRGS, dirigida pelo PSOL, PCB e UP na época, não organizaram nenhum apoio ativo a essa importante luta. E como se não bastasse a prefeitura de mãos dadas com os empresários do transporte atacando os direitos dos rodoviários e da população, vimos também o papel criminoso que a UMESPA, dirigida pela JPL, UJS e PT, cumpriu ao rifar um direito básico dos estudantes, comemorando como uma “vitória dos estudantes” a restrição do meio-passe estudantil feita pelo prefeito bolsonarista Melo. Agora o PT, PCdoB e PSOL lançam uma campanha contra a privatização da Carris, na boca do leilão, sem nenhuma organização real na base da categoria, visando o desgaste da prefeitura de Melo e as eleições de 2024. Essa aliança dos três partidos esboça a semente da Frente Ampla que querem lançar no ano que vem, com a busca ativa por parte do PSOL e do PT a figuras burguesas e de direita como Fortunati e outros. Uma tragédia anunciada.

Agora o governo Lula se nega a retirar o Trensurb da lista de privatizações, renovou contrato com a empresa que está fazendo o estudo para “desestatização” e faz demagogia com o caso. Os trabalhadores do Trensurb fizeram uma paralisação em maio contra a venda da empresa e conquistaram demandas, mas o governo ainda não a retirou do plano. O que a CUT e a CTB fizeram para apoiar essa greve? E outras mobilizações? Qualquer processo que possa se enfrentar com o governo é tratado com boicote direto ou demagogia por parte das grandes centrais sindicais e larga maioria dos sindicatos, para o agrado da burguesia gaúcha. Daí a necessidade de se retomar as ferramentas de luta, os sindicatos, para as mãos dos trabalhadores com independência dos governos e com uma política e programa de independência de classe.

Em outras palavras, as organizações políticas que dirigem as entidades de classe e movimentos sociais na região têm como orientação política o calendário das eleições burguesas, não as necessidades objetivas dos trabalhadores e da maioria pobre da população. Em retrospectiva dos últimos seis anos, enquanto Leite ia privatizando, as direções o taxaram como o “mal menor” diante das ameaças bolsonaristas, abrindo espaço para que os ataques fossem passando. A burguesia gaúcha e a Zero Hora aplaudiram. Agora, com o governo Lula tendo sido eleito, preservando o legado bolsonarista de reformas, cortes e privatizações, a situação da classe trabalhadora não vem melhorando – Porto Alegre figurou em primeiro lugar na lista das capitais com a cesta básica mais cara do país em julho deste ano. A inflação segue expropriando a massa salarial da classe trabalhadora. A dívida pública do estado chegou em exorbitantes R$ 98.71 bilhões, sendo essa uma dívida que o estado já pagou inúmeras vezes e vem servindo de justificativa para os ajustes e reformas do governo. Entre janeiro e março de 2023, o desemprego no RS aumentou de 4,6% para 5,4%, afetando principalmente os setores mais jovens. Em índices de subutilização da força de trabalho, esse número vai a 11,5%. Ou seja, esses e outros vários números indicam que a situação da classe trabalhadora não vai bem, a inflação segue corroendo o poder de compra da maioria e os direitos vão sendo cada vez mais destruídos pelos governos. O arcabouço fiscal de Lula veio para coroar essa situação, formando um novo teto de gastos, contando com o apoio das centrais sindicais e a passividade total do PSOL. Tudo vai mal, mas o clima é de festa. E de festa em festa, de privatização em privatização, de ataques em ataques, a direita vai galgando espaço.

Daí a necessidade de romper com essa paralisia e passividade construída pelas centrais sindicais e pelas organizações que dirigem as entidades representativas da região, como o PT, PCdoB e PSOL. Não há outro caminho que não o da mobilização desde as bases dos trabalhadores e dos estudantes, ligando cada reivindicação específica às lutas políticas contra o vendaval neoliberal e os ataques, para de fato derrotar Melo, Leite e todo reacionarismo que eles representam, assim como enfrentar os ataques que a frente ampla Lula-Alckmin vem implementando a serviço de beneficiar os capitalistas. Caso contrário, é caminho aberto para a direita neoliberal avançar. É nessa perspectiva que nós, do MRT e da juventude Faísca Revolucionária, colocamos nossas forças à disposição a fim de construir um caminho da luta de classes nessa situação. Nesse processo, defender um programa que faça com que os capitalistas paguem pela crise: pelo não pagamento da dívida pública do estado, pela reestatização de todas as empresas vendidas e a ser colocadas sob controle dos trabalhadores, pela divisão das horas de trabalho entre todos os que estão desempregados e sem redução salarial, e pela expropriação imediata e sem indenização de todas as empresas responsáveis pelos casos de trabalho escravo.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias