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Nas últimas semanas, a luta contra a opressão às mulheres tem ganhado espaço e adesão de milhares de jovens.

quarta-feira 11 de novembro de 2015 | 01:11

Valentina tem 12 anos. Uma quase adolescente, recém saída da infância. Na idade de começar a ter uma malícia própria da juventude, enquanto ainda carrega uma inocência infantil. Clichê? Talvez. Mas descreve essa idade transitória. E como parte dessa idade, Valentina tem um sonho: ser chef de cozinha. E o Brasil inteiro conheceu (ou ao menos ouviu falar) de Valentina no último mês, uma das crianças a participar do reality culinário Master Chef Jr.

Maria – ou Joana, Beatriz, Gabriela, todas elas – tem 12, 15, 21, 27, 33, todas as idades. É mulher e anda na rua. Ela tem um sonho: ser o que sempre quis ser, chegar onde sempre quis chegar. Viver sua vida plenamente, ter amores, trabalho, prazer. E o mundo todo conhece ela, ela está aí, a primeira mulher mais próxima de você. E para muitas delas, algumas semanas atrás o sonho foi o mesmo: entrar na universidade. Uma minoria (infelizmente) sonha com a universidade pública, um grande setor pleiteia uma bolsa em alguma particular, algumas querem seu diploma do ensino médio. Passaram dois dias sentadas, no calor, enfrentando aquela prova de resistência física chamada ENEM.

Jandira tem 27 anos. É mulher, tem filho, emprego, uma vida não das mais fáceis. Mas ela batalha dia e noite para manter essa vida. Ela também tem sonhos, quer criar seu filho, quer vê-lo crescer, estudar, ter uma vida melhor que a dela. Para isso, Jandira não pode perder o emprego, nem mesmo pode se dar ao luxo de ter mais gastos, despesas, dificuldades. No segundo semestre de 2014 o Brasil ouviu falar em Jandira. Ela engravidou e tomou uma difícil decisão em sua vida. Isso bastou para que seu rosto estampasse a capa dos jornais e revistas naquele setembro.

Eu tenho 26 anos. Algumas coisas vividas, muitas outras para viver. Desejos, vontades, loucuras, sensatez. Tenho ideias, ideais, ideologia. Tenho sonhos. Como Valentina, já quis ser chef. Como Marias, Joanas, Beatrizes, Gabrielas, quero uma vida plena e também fiz o ENEM. Como Jandira, não tenho filho, mas também não posso perder o emprego – precário, como da ampla maioria das mulheres – e nem mesmo me dar ao luxo de ter mais gastos. Um dia encontrei um amigo por quem nutria uma paixão e que sempre que nos víamos nos dávamos a chance de passar um tempo juntos. Naquele final de semana a camisinha estourou.

Por que essas histórias? Por que essas mulheres? Por que eu no meio delas? Porque todas, de uma maneira ou de outra, foram – e podem ser ainda mais – assediadas, oprimidas, violentadas.

O caso Valentina trouxe a tona uma baixeza suja, nojenta, asquerosa. Homens, marmanjos, adultos, sentindo-se na total liberdade de dizer aos quatro cantos que sim, estuprariam essa garota. Que está tudo bem com a pedofilia. E não me venha com eufemismos. É incitação ao estupro sim, é pedofilia sim! Não. Não está tudo bem. Não pode estar.

Mas esse caso de Valentina também trouxe a tona outras declarações, de uma coragem sem tamanho: #meuprimeiroassedio. Aí entra aquelas outras mulheres, as Marias, aquelas que estão logo ali, do seu lado. Relataram seus primeiros assédios, de um jeito que não é fácil. Alguma delas já foi estuprada. Várias delas já foram estupradas. Algumas, várias, engravidaram dessa violência e, respaldadas pela lei, realizaram um aborto seguro. Outras a camisinha estourou, ou mesmo não utilizou, e puderam evitar a gravidez indesejada com a pílula do dia seguinte. Eu sou uma dessas. Mas infelizmente, Jandira não. Jandira não pôde evitar a gravidez e decidiu interrompê-la, em nome de seu emprego, em nome de seu filho. Jandira saiu de casa no dia 26 de agosto de 2014. Nunca mais voltou. Seu corpo carbonizado foi encontrado algumas semanas depois. Jandira tinha uma vida pela frente. Hoje, seu filho não tem mãe.

Era uma vez um junho. O ano era 2013. Milhares de pessoas nas ruas, como há muito não sei via no Brasil, gritavam por seus direitos mais democráticos. Contra a Copa, pelos direitos mais elementares. Junho não morreu, mas também não seguiu crescendo numa constante, nas ruas. Mas um grito, existe um grito que não se calou, que se fortalece: basta de opressão! Basta de violência às mulheres, basta de mortes, assassinatos! Basta.

Dois anos e quatro meses depois, esses milhares de jovens que gritavam “Basta!” encontravam-se sentados, um fim de semana inteiro, um calor sem igual, realizando aquele ENEM. E para nossa surpresa, ao abrir a prova e ver o tema da redação, encontramos algo que ninguém imaginava que estaria lá: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. O ENEM é um vestibular unificado que serve para filtrar a entrada de jovens na universidade, selecionando alguns e deixando a maioria do lado de fora, a juventude pobre e negra. Mas, naquele domingo, em meio aquela prova infernal, cerca de 5,8 milhões de pessoas (em sua maioria jovens) se viu totalmente obrigado a refletir sobre a persistente violência contra a mulher em nossa sociedade.

E durante toda aquela semana, as redes sociais foram tomadas pelo tema. Assim como na semana anterior, as redes gritavam o caso Valentina. Assim como gritaram por Jandira, assim como gritam pela legalização do aborto. Assim como gritaram e seguem gritando contra o PL5069, que pretende dificultar ainda mais o direito de realizar um aborto nos casos em que já é legalizado, pretende nos tirar o direito à pílula do dia seguinte. Sei que as redes sociais não são o mundo e expressam ainda muito pouco do que está lá fora. Mas são um termômetro que nos mostra que a indignação cresce. Que milhares de mulheres estão dispostas a gritar seus assédios e violências sofridas. Que cada vez mais mulheres juntam-se para gritar “Basta de violência contra as mulheres!”.

Esse sentimento me enche o peito de ar fresco. Ver amigas minhas de infância que nunca foram militantes, nunca se colocaram pelos direitos das mulheres, abrindo suas violências e se levantando contra elas, exigindo respeito, exigindo o que é nosso por direito. Figuras como Jout Jout ganham mais e mais expressão e viralizam, com bom humor, uma luta necessária, a necessidade do escândalo frente aos assédios. A abertura para mulheres falarem de sexo, de prazer, das dores, compartilhar experiências, entender o corpo, a menstruação. Se entender, se aceitar, e querer por fim em tudo que cada vez mais enxergam que está errado.

Tudo isso mostra um enorme potencial de luta, de transformação! Mas é preciso mais, é preciso organização. O machismo, ele não paira no ar. Não é um mal genético que existe na cabeça de cada homem e os obriga a ser assim. É uma construção, é um mal social, não individual. Então o combate também só pode ser social. É uma batalha. Reconheça seus inimigos. Reconheça suas armas. Reconheça seus medos. Corte o mal pela raiz. E aqui, é preciso ter clareza. O inimigo é o Estado burguês, porque precisa se utilizar dessas opressões para poder manter o poder. São os governos, que no caso do federal, em 13 anos de PT, não legalizou o aborto, não aplicou até o fim a Lei Maria da Penha, que ainda tem suas limitações (lembram da Eliza Samúdio, assassinada pelo goleiro Bruno? Já havia denunciado ele por essa lei diversas vezes). Aumentou muito a terceirização, que afeta diretamente as mulheres, mais ainda as negras, que são quem ocupam os postos de trabalho mais precários. São as alianças políticas do governo, que fortalecem Cunhas e Felicianos, dando em suas mãos cargos que lhes dão total liberdade de atacar nossos direitos. Seus medos? Nossa fortaleza: a classe trabalhadora organizada. As mulheres na linha de frente. Aquelas e aqueles que constroem o país e também podem paralisá-lo. É das mãos delas, é das nossas mãos, juntas e organizadas, com as armas corretas contra os inimigos corretos, que virá a transformação.

A verdade é que comecei a escrever esse texto algumas semanas atrás, e a primeira coisa que me veio na cabeça foi o título, e a partir dele uma vontade de desenvolver. O título era “São tempos difíceis para as sonhadoras”. Mas a grande verdade é que são nos tempos difíceis que mudanças ocorrem. São nos tempos difíceis que avançamos. Eu desenvolvi, e depois decidi mudar o título que deu início às minhas divagações. E por que, se o texto mostra que de fato são tempos difíceis? Porque meus caros, de uma coisa eu tenho certeza: quando uma mulher avança, ninguém mais poderia ousar retroceder! Que venham os tempos difíceis para os conservadores!




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