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Marielle e a ferida não cicatrizada do golpe institucional

Se completaram cinco anos e o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, sem que se tenha avançado na sua elucidação. Esse crime político é um símbolo terrível da ofensiva reacionária iniciada com o golpe institucional de 2016, da ascensão do bolsonarismo, da extrema direita miliciana e revelador da degradação das intuições do estado brasileiro e de suas relações íntimas com as redes do crime organizado, não só no Rio de Janeiro. A nova delação, de Elcio de Queiroz, que devolveu o caso às manchetes dos jornais, mas as dificuldades da luta por verdade e justiça para este crime ainda são enormes.

Thiago FlaméSão Paulo

terça-feira 8 de agosto de 2023 | Edição do dia

A dificuldade de uma real investigação do assassinato de Marielle e Anderson, desde o inicio, é que ela toca num problema estrutural. A trama por trás deste crime e de uma sequência de ocultamentos e omissões, com inclusive “queimas de arquivos”, mostra o quão delicado é mexer neste vespeiro. Não há dúvidas que na cadeia de cumplicidades, seja com o crime, seja com seu acobertamento, estão envolvidos atores políticos importantes e agentes estatais de primeira importância. Desvendar integralmente essa trama traria à tona as múltiplas relações cruzadas entre o crime organizado, o estado e a política tradicional, muito para além do submundo carioca.

O contexto político do crime: aprofundamento do golpe institucional

Na escalada reacionária que se desencadeou a partir do golpe de 2016 o assassinato de Marielle e Anderson cumpriram um papel. O Rio de Janeiro um dos campos de batalha mais intensos da Lava-Jato, um posto avançado para a ofensiva golpista de 2016 e que viria a se tornar o bastião do bolsonarismo e um laboratório avançado de saídas reacionárias para a crise de legitimidade das instituições.

A profunda degradação estatal, a grande simbiose da política local com as organizações criminosas, o narcotráfico e as milícias e o nível descontrolado da corrupção do sistema político local, tornou o Rio o local ideal para que a Lava-Jato e aventureiros, como o juiz Marcelo Bretas, lançassem a sua cruzada pseudo moralista e tentassem remodelar o regime político a partir do autoritarismo judicial. A lava jato dissolveu o corrompido sistema político carioca, sem conseguir estabilizar uma nova forma de dominação local.

Nesse vazio, nessa indefinição entre o velho, que tinha ficado abalado com junho de 2013, que foi detonado pela direita com a ação da lava-jato e em que nada novo foi colocado no lugar, o campo ficou para aventuras e tentativas de golpe de força da direita militarista e da extrema-direita miliciana. A nivel nacional o golpe institucional seguiria se aprofundando, com a prisão arbitrária de Lula. No Rio de Janeiro a aliança entre generais e bolsonarismo, que terminaria vencendo as eleições em 2018 avançou numa tentativa de tutela militar direta, via a intervenção federal e a nomeação de Braga Neto como interventor da segurança publica.

Nesse laboratório que mesclou a intervenção militar direta, e na simbiose entre os politicos de direita e extrema-direita e as milicias, que se insere o assassinato de Marielle. Por influência de um grupo de generais, a intervenção militar decretada pelo governo Temer foi muito mais do que uma tentativa de estabilização e contenção da degradação estatal carioca. Foi o balão de ensaio para a construção de um novo regime político, onde os militares cumpririam um papel fundamental. Sob intervenção militar o assassinato de Marielle revelou um interesse de facções em empurrar ainda mais a situação a direita, habilitando o uso das milicias e do crime organizado como uma tropa de choque para-militar contra a esqquerda, o movimento negro e a classe trabalhadora. Se a situação não se aprofundou ainda mais nesse sentido, foi por que a grande comoção que percorreu o país ainda que não tenha sido forte o suficiente para iniciar uma contra ofensiva de massas, serviu para colocar limites pra que esse modelo fosse replicado para fora do Rio de Janeiro.

São públicas as relações da família Bolsonaro com setores milicianos e conhecidas as defesas abertas da milícia como método de controle social, se baseando no terror e numa ditadura não declarada, mas bem efetiva para paralisar a ação política no interior das comunidades cariocas. Isso e a coincidência dos Bolsonaro serem vizinhos de Ronie Lessa são motivos suficientes para as que sejam levantas suspeitas nesse sentido e para aí deveriam avançar as investigações, sobre a extrema direita que vê a combinação entre a repressão policial violenta (como vemos agora em São Paulo) e a ação política facistizante que vimos no caso Marielle como resposta para a crise social brasileira. A partir dessa ação, a milícia ganhou renovada força impôs no cenário politico carioca e se projetou a nivel nacional, mostrando para todo o país seu papel fascistizante (no sentido clássico, de tropa armada que pode se voltar contra a esquerda e os sindicatos). Ajudou a empurrar ainda mais a direita toda a situação. Ainda que pensada como uma ação consciente, tratou-se de um jogo extremamente arriscado. No entanto, é dentro dessa teia de relações promíscuas entre as milícias e a política, carioca e nacional que deve se mover as investigações, buscando não nos testas de ferro que controlam as milícias, nem somente em seus aliados na política local, mas entre os que concentram poder e influência suficientes na política e no estado para dar a ordem de um crime com tantas implicações e repercussões.

Frente Ampla, o controle social da pobreza e a nova fase da investigação

O que não podemos deixar de perguntar, e que a vontade em ver a investigação avançar não pode nos fazer deixar de questionar é: Por que agora? Por que depois de cinco anos Elcio Queiroz abriu o bico, mudando alguns pontos do seu primeiro depoimento? A versão dele é que houve uma quebra de confiança em relação ao amigo de infância e comparsa Ronie Lessa. Uma explicação muito circunstancial. Não é nenhuma coincidência que a delação de Elcio coincida com a posse do novo governo de Frente Ampla de Lula e Alckmin. Uma continuação, no plano econômico da ofensiva reformista, como estamos vendo com a não revogação da reforma da previdência, trabalhista e do novo ensino médio, com o novo teto de gastos chamado de arcabouço fiscal e com a ameaça do fim dos pisos constitucionais para saúde e educação, o novo governo precisa mostrar em algum lugar que é uma ruptura com o ciclo golpista e o fazer andar o caso Marelle carrega uma enorme simbologia.

Com a ofensiva neoliberal e o surgimento de um estrato social sem nenhuma perspectiva de integração ao mercado de trabalho, ou que estão condenados a viver de bicos e pequenos trabalhos temporários e precários, que não estão representados pelas estruturas tradicionais e instituições políticas, sindicais e pelos movimentos sociais que compuseram o pacto de 1988, novas formas de controle social se fortaleceram. As ONGs, as Igrejas evangélicas e o crime organizado cresceram e se fortaleceram entre estes setores. Também nesse sentido Bolsonaro representou a tentativa de um choque profundo nesas relações e as milicias cariocas uma mudança em relação ao tradicional crime organizado na medida em que não só controla o tráfico e os territórios, impondo uma própria lei, mas também controla o acesso aos serviços básicos e impõe um regime de terror nas comunidades.

Na medida em que o governo Lula se vê pressionado a avançar as investigações do caso Marielle, mas não pode tocar profundamente nas relações entre o Estado e o crime organizado já que passa longe de oferecer uma saída de fundo para os setores mais golpeados pelo neoliberalismo, também o que podemos esperar como cenário mais provavel é uma solução mediada para o caso Marielle, que golpeie as redes locais da milicia em alguma medida, sem tocar no problema estrutural.

Elcio de Queiroz, ao romper através da delação seu pacto de silêncio também parece ter buscado seu lugar em um novo arranjo que também está em curso nessas relações entre crime organizado e estado. Tudo indica que a cobertura que ele encontrou foi se associando a novos setores, justamente os que representam relações mais tradicionais de controle das periferias pelo crime organizado. Ligado às milícias de Rio das Pedras, que ficou famosa como o “escritório do crime”, no presídio federal de Porto Velho Elcio se aproximou ao PCC. Poderia ser esse um dos fatores por trás da mudança de postura do assassino confesso?

Seja como for e sejam quais forem os motivos e os acordos por trás dessa delação, dificilmente a investigação avançará para expor as conexões mais profundas entre as milícias e o estado e o mais provável é que servirá também para um novo choque nestas relações, no sentido inverso ao que buscava o bolsonarismo. A luta para encontrar os verdadeiros mandantes do assassinato de Marielle e Anderson, e desmantelr toda a rede de cumplicidade e acobertamento que envolvem esse crime não vai ser resolvida nos tribunais e delegacias. Por tudo que envolve é parte integrante de uma luta muito mais ampla, contra todas as heranças do golpe e de maneira independente do governo de Frente Ampla.




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