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História | Os mouros e o Exército franquista durante a guerra civil espanhola

Esta resenha se propõe a investigar a relação entre os mouros, assim conhecidos muçulmanos do norte da África, mais especificamente de Marrocos, com o Exército Franquista na guerra civil espanhola e no processo revolucionário que decorre concomitantemente à guerra. Para tanto, essa investigação percorrerá alguns caminhos para, enfim, chegar a possíveis hipóteses e sínteses da razão pela qual a composição das tropas franquistas se deram em grande parte por marroquinos, bem como a posição dos republicanos e da Frente Popular sobre essa questão, e sua relação com a vitória dos fascistas.

terça-feira 20 de junho de 2023 | Edição do dia

De maneira geral, temos que, anteriormente a analisar essa relação em si, analisar o que se passou para que se chegasse a essa situação. Ou seja, como se deu a colonização espanhola no norte da África e o protetorado de Marrocos, a fase imperialista do capitalismo, o cenário internacional que levou à guerra civil espanhola, seus significados, e as disputas presentes na revolução.

A Espanha, durante os séculos das expansões marítimas e do mercantilismo, foi uma metrópole em que a nobreza e a Coroa acumularam grandes quantidades de capitais oriundos da colonização, da exploração de riquezas (principalmente prata, das colônias americanas), e do empreendimento da mão de obra escrava. Como assinala Marx n’O Capital, essa acumulação primitiva foi parte fundamental da constituição do capitalismo e dos Estados modernos:

“A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfrentamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marca a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato seque a guerra comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco.” [1]

A Espanha foi o primeiro grande império colonial da Europa moderna. A prata boliviana, que assentou as bases de sua dominação durante um longo período, criou uma burguesia acomodada em relação ao desenvolvimento produtivo no campo e na cidade dentro de seu próprio território ibérico. Tal desenvolvimento - que encheram os cofres dos distintos reinos do Estado espanhol - também propiciou que as diversas frações da classe dominante e desses reinos “não consolidassem uma centralização fiscal, política e administrativa”, nas palavras de Perry Anderson.

O Estado espanhol moderno só iria se centralizar pelos golpes de espada do exército, que nasceria durante as guerras napoleônicas e, ao decorrer do século XIX, parasitaria a renda nacional para sustentar sua casta de oficiais. Se alçando acima das distintas frações da classe dominante em crise e desagregadas econômica e territorialmente, os militares cumpririam a função centralizar com mãos de ferro o Estado espanhol, contra os “inimigos internos” que se colocavam contra a monarquia, o que reforçaria também diversas tendências separatistas. A perda das colônias na América do Sul até 1820 e a derrota da guerra pelo Caribe e Filipinas contra os EUA, apenas minaram mais ainda a dominação espanhola no terreno internacional. A industrialização viria, com um massivo investimento dos capitais franceses e ingleses, no final do século XIX, formando um forte proletariado urbano nas regiões da Catalunha e de Madri, que desde o início protagonizou greves e lutas contra a patronal e a monarquia.

Dessa forma, no início do século XX a Espanha era um dos países mais atrasados da Europa, com uma grande concentração fundiária - sendo praticamente dividia entre uma aristocracia rural e a Igreja Católica, esta última que era uma sustentadora ideológica da monarquia, e detinha um enorme poder econômico e político -, e uma população majoritariamente camponesa. O Estado espanhol, monárquico, era apoiado na nobreza fundiária, na Igreja e na casta militar do exército. Os movimentos republicanos não conseguiram até então mudar esse quadro praticamente estático, e tampouco cumpriram as tarefas históricas da revolução burguesa, como a reforma agrária radical, por exemplo.

No processo de industrialização e das disputas estratégicas para o controle do Mar Mediterrâneo, a Espanha e a França viraram seus olhos para Marrocos. A Espanha saiu vitoriosa na conquista de Ceuta e da criação do protetorado em seu enclave em 1884. Em 1906, na Conferência de Algeciras, se definiram as zonas de influência francesa e espanhola em Marrocos, o que depois viriam a ser os protetorados. A Espanha ficara com apenas 5% do território, em uma faixa no norte de Marrocos, com uma população de 750 mil marroquinos, no qual governava um califado, com assistência jurídica, social, econômica, militar e administrativa da monarquia espanhola. No limite, o protetorado era uma zona dependente da burguesia espanhola, e servia para a sua acumulação de capitais. Entretanto, as tentativas de ocupação por parte dos espanhóis fora diversas vezes fracassada, devendo-se principalmente à forte resistência do povo marroquino que se negava a se submeter; além de uma resistência interna na própria Espanha, como a greve geral de 1909 contra o alistamento na guerra de colonização, que aumentou consideravelmente a influência das centrais CNT (dirigida pelos anarcosindicalistas da FAI) e UGT (dirigida pelos socialistas do PSOE) no movimento operário espanhol.

A derrota da greve e os preparativos para a Primeira Guerra estabilizaram o regime e dinamizaram a economia espanhola. O protetorado espanhol de Marrocos foi assinado em março de 1912 (Tratado de Fez), embora a Espanha não conseguira consolidar sua dominação efetiva no território até então. O território árido e rural, porém com diversos metais (como ferro, chumbo e magnésio), obrigou a Espanha a desenvolver a exploração de minas, concomitantemente à construção de ferrovias e empresas de energia elétrica e de exploração agrícola; esses fatores levaram a um crescimento urbano de cerca de 5% a 12%, e condicionou a formação de um forte e concentrado proletariado no país norte africano.

Com o desenvolver da Primeira Guerra (na qual a Espanha se mantém neutra) e a eclosão de diversos processos revolucionários (tendo como seu principal a Revolução Russa de 1917), a instabilidade política do país ibérico começa a crescer cada vez mais, com uma nova greve geral, e uma profunda polarização social. Em resposta, o Rei Alfonso XIII recorre ao exército, e em 1923 o General Primo de Rivera encabeça um golpe de Estado, suspendendo a Constituição e dissolvendo o parlamento.

A instabilidade política também se expressava em Marrocos: em 1920 teve início a Guerra do Rife, entre o exército espanhol e tribos rifenhas – caracterizadas por seus elementos pré capitalistas e com Caides (como se fossem chefes tribais) –, que formavam guerrilhas, e ao todo podem ter chegado a um contingente de 80 mil soldados (ainda que apenas 20 mil armados). Apesar de dispersas e com más condições militares, as guerrilhas protagonizaram diversas vitórias contra a ocupação colonial, chegando a proclamar a República de Rife em 1921, liderada por Abd el-Krim, como forma de resistência. De Rivera assumiria o comando do Exército espanhol em 1924, e em 1925 a aliança entre os franceses e espanhóis contra os rifenhos seria o ponto de virada da guerra. O Estado Espanhol apenas conseguiria alcançar sua dominação de fato até 1927, com a derrota da República do Rife e a entrega de el-Krim para os franceses, após cerca de 30 mil baixas marroquinas. Para a vitória, bombardearam povoados, queimaram plantações e chegaram a utilizar armas químicas.

As relações entre o Exército e o protetorado espanhol se deram desde cedo. Em primeiro lugar, era necessário uma dominação militar, principalmente nas cidades de Ceuta, Melilla e Larache, o que significa diversos generais espanhóis atuando na região, incluindo o General Francisco Franco (que viria a ser o futuro ditador fascista após sua vitória na guerra civil). Em segundo lugar, uma das principais atividades econômicas (junto à exploração das minas) era a comercialização de bens terciários (calçados, vestuários, alimentos etc), desenvolvida através de capitais madrilenhos e colonos locais e espanhóis, para abastecer a população espanhola e, principalmente, o Exército. Um terceiro elemento seria a subordinação, após a derrota da Guerra do Rife, dos chamados Caides às elites e aos generais espanhóis, conformando uma hierarquia interna que servia aos interesses da burguesia espanhola, e conteria as possíveis revoltas das massas marroquinas. Em suma, se foi criando uma casta militar ligada ao aparato do Estado do protetorado e das elites marroquinas. Como coloca o professor Francesc Tur no texto “Los Moros de Franco”:

“A verdade é que tudo permaneceu em boas palavras e que o investimento do Estado na área, mesmo após a pacificação do território em 1927, continuou a beneficiar os militares. Além disso, a burocracia civil que começou a surgir nos anos trinta acabou se aliando ao exército colonial para compartilhar o poder e a participação nos negócios gerados pela mesma presença espanhola no protetorado. Não é à toa que se fala do complexo burocrático-militar em Marrocos. Este novo grupo destacou-se como o principal beneficiário da "proteção" concedida pela Espanha à colônia.” [2]

Da mesma forma, como analisa Lênin em seu estudo sobre o imperialismo, os países centrais se utilizam das populações de suas colônias em seus próprios exércitos para travar guerras por novas conquistas, ou, como vemos no caso da Espanha, para a contrarrevolução em uma guerra civil:

“No que se refere à segunda circunstância, Hobson diz: “Um dos sintomas mais estranhos da cegueira do imperialismo é a despreocupação com que a Grã-Bretanha, a França e outras nações imperialistas tomem este caminho. A Grã-Bretanha foi mais longe do que ninguém. A maior parte das batalhas com que conquistamos o nosso Império Indiano foram travadas por tropas indígenas; na índia, como ultimamente no Egito, grandes exércitos permanentes encontram-se sob o comando de britânicos; quase todas as nossas guerras de conquista na África, com exceção do Sul, foram feitas para nós pelos indígenas”.” [3]

A II República, a Guerra Civil e os marroquinos

A partir da crise de 1929, se abre no cenário internacional uma grande desestabilização política e uma polarização social em diversos países, especialmente na Europa. A definição de Lênin como uma época de “crises, guerras e revoluções” entra em cena novamente. Na Espanha, Rivera tentou uma tímida abertura no regime, porém, ainda mais desgastado com a derrota dos monarquistas nas eleições municipais e após uma onda de greves, ele foge em abril de 1931, e é proclamada a II República Espanhola, com uma coalização de republicanos burgueses e “socialistas”.

As principais demandas do povo espanhol, entre elas a reforma agrária radical e a separação entre Igreja e Estado (que estava umbilicalmente ligado à questão da terra, visto que a Igreja possuía grande parte das terras em detrimento dos camponeses pobres), bem como diversas outras reivindicações da classe operária e dos povos oprimidos da Catalunha e do País Basco, não foram atendidas pela República. A inquietação do movimento operário, liderado pela CNT por um lado, e sendo cooptado pela UGT por outro, gerava uma forte desestabilização no governo que não atendia às reivindicações.

O cenário internacional de conjunto levava a uma cada vez maior polarização social, e os choques entre revolução e contrarrevolução que antecederam a Segunda Guerra se colocavam aceleradamente na ordem do dia. Na Alemanha, Hitler tomara o poder, e diversas organizações de filiação fascista começavam a nascer: na Espanha, Primo de Rivera criara a Falange, e líderes clericais formaram a CEDA (Confederação Espanhola das Direitas Autônomas). A não resposta do governo às aspirações da classe operária e dos camponeses levou à uma maior insatisfação, que foi em grande parte canalizada pela direita, como se mostrou nas eleições de novembro de 1933 com uma forte vitória das coalizões de monarquistas e direita, e com a CEDA ocupando 3 ministérios em 1934. A resposta da classe operária é uma insurreição, organizada através das Alianças Operárias, derrotada em diversos lugares, mas que deu origem à Comuna das Astúrias, na região mineira do Norte da Espanha. Por duas semanas a comuna resistiu, até ser derrotada pela guarda civil e pelo exército da República, que nesse momento já contava com as tropas mouras em seu contingente, com as operações militares dirigidas por Franco a partir de Madri.

No que diz respeito às reivindicações do povo marroquino, tampouco foram atendidas. A República apenas concede direito à nacionalidade aos judeus, não deu aspirância aos movimentos nacionalistas em Marrocos que buscavam reformas jurídicas e sociais no protetorado; e muito menos deu a independência e a libertação nacional aos marroquinos. A República seguiu as obras iniciadas pela ditadura de Primo de Rivera em 1928 no Protetorado, continuou com a estrutura militar de dominação do Exército no protetorado e, como já mencionado, utilizou as tropas marroquinas para esmagar a Comuna das Astúrias em 1934. Além disso, a República ocupou militarmente a região de Ifni, no sul do Marrocos.

A partir desses elementos, é possível analisar que a República, primeiro com a coligação dos republicanos e socialistas no governo, e depois com a direita, inclusive com partidos fascistas e monarquistas, não atendeu às demandas mais sentidas da classe trabalhadora, dos camponeses e sobretudo da população marroquina. Em um momento de crescente polarização social e de choques entre revolução e contrarrevolução, a República, ao lado dos socialistas, abriram espaço para a direita fascista.

Em fevereiro de 1936, a coligação da Frente Popular (com o PSOE, PCE, partidos burgueses republicanos e tendo sua ala esquerda no POUM) venceu as eleições gerais. Em resposta, no dia 17 de julho do mesmo ano, generais liderados por Emilio Mola, e representantes dos interesses da grande burguesia espanhola que via a necessidade de uma radicalização para conter a revolução, articularam um golpe de Estado, dando início à guerra civil. As primeiras sublevações dos militares golpistas foram no protetorado.

Para mais sobre a Revolução Espanhola: Feminismo & Marxismo: As Mulheres na Revolução Espanhola

Em Marrocos, as relações intrínsecas da colaboração das elites locais aos militares do Exército colonial – somado à opressão e exploração que era sofrida pela população no protetorado francês, administrado pela República da França que apoiava a República espanhola –, fez com que tais elites apoiassem o golpe militar, e por isso iniciassem um processo de recrutamento dos mouros, com um valor de 4 pesetas (moeda da época), o que atraía sobretudo jovens (inclusive em regiões como Ifni, o Saara e o protetorado francês). Processo esse que já era comum pelo próprio desenvolvimento que o governo republicano propiciou nessa questão, por exemplo, com as tropas que derrotaram a Comuna das Astúrias anos antes. Como coloca Francesc Tur:

“No mesmo dia, 19 de julho, uma parte notável dos rifenhos coordenados por Suliman Al-Khatabbi, primo de Abd-el-Krim, reuniu-se com um grupo considerável de caídes da região em Adjir com a intenção de predispô-los em favor de Franco. A maioria das autoridades nativas simpatizava com os rebeldes (os golpistas) dos quais, pensavam, poderiam tirar mais proveito dos franceses. Alguns franceses, menos simpáticos aos nacionalistas em seu protetorado e que eram favoráveis ao governo republicano espanhol. Os rebeldes também foram responsáveis por vender muito bem a ideia de vermelhos ateus e inimigos da religião e, portanto, potencialmente adversários dos muçulmanos.” . [4]

A burguesia marroquina – apoiada nos elementos pré capitalistas da formação de Marrocos e nos elementos mais avançados do desenvolvimento capitalista exportados pelos capitais espanhóis –, estava umbilicalmente ligada à burguesia espanhola que levava o golpe fascista à frente. Por isso, o papel levado à frente era o de recrutar o povo marroquino para tais batalhas na Espanha. Diversos grupos nacionalistas marroquinos, que simpatizavam com o panarabismo crescente na época, apoiaram a sublevação dos militares. Isso se intensificou após o governo frentepopulista denunciar a ilegalidade jurídica internacional do recrutamento, e Franco, habilmente, tratou de alegar que isso se tratava de uma tentativa da República e da França de passar por cima da soberania do protetorado e do tratado de 1912. Os fascistas passavam a ter uma forte influência política na população marroquina que sofria com a crise. Ao todo, quase 100 mil marroquinos foram recrutados.

Um fundamento pelo qual a população marroquina ia para a guerra no exército franquista, além da questão econômica do pagamento de 4 pesetas – em uma situação de miséria no protetorado, que também fora atingido pela crise internacional –, era a questão religiosa, fortemente marcada pela propaganda franquista e das próprias elites marroquinas, que viam a República como uma ameaça ao islã, e a guerra, colocada por Franco e pela direita como uma “guerra santa” ou como uma Cruzada (como ficou conhecido em vários cartazes de propaganda fascista), como uma defesa de sua religião, mesmo que a Igreja Católica estivesse intimamente ligada ao bando fascista.

Entretanto, um elemento central para que os marroquinos passassem a defender com armas um exército e uma guerra que ia contra seus interesses (não era uma guerra de libertação contra a ocupação espanhola, contra a sua própria elite e que desse vazão às demandas mais sentidas do povo e da classe trabalhadora), era a falta de uma direção política que levantasse e se embaideirasse dessas demandas, levando à frente uma política revolucionária que confluísse com a situação de polarização social profunda. As direções nacionalistas das elites marroquinas iam no sentido contrário. Da mesma forma, nos cabe analisar o programa levantado pela Frente Popular para apontar que estes também não se colocaram a construir tal direção, que impulsionasse a base do movimento operário e camponês – que estava bem à esquerda de suas direções, tanto da Frente Popular, quanto dos anarquistas que haviam integrado o governo –, desenvolvendo as milícias de resistência e as ocupações de fábricas e terras que se formavam em diversos lugares do país, principalmente na Catalunha e em Aragão.

Dentre os dez pontos centrais no Programa de Aliança Eleitoral da Frente Popular em 1936, a independência marroquina ou demais demandas não constavam. Além disso, nas próprias palavras do programa, “Os republicanos não aceitam o princípio da nacionalização da terra e sua entrega aos camponeses”, “Os partidos republicanos não aceitam o controle operário exigido pelo Partido Socialista”, ambas as demandas mais ardentes e que já se fazia na prática nas revoltas camponesas e nas greves operárias; “Os partidos republicanos não aceitam as medidas de nacionalização dos bancos propostas pelos partidos operários.”. Essas medidas se fizeram na prática pelo governo da Frente Popular, não atendendo às principais demandas tanto da classe trabalhadora e dos camponeses interna e externamente (na Espanha e no protetorado); além de trabalhar continuamente para desarmar física e politicamente as bases organizadas em milícias operárias e em ocupações ou Conselhos operários e camponeses, como foram as medidas de integrar as milícias ao Exército estatal republicano, dissolvendo-as, ou diretamente a repressão, como foi na insurreição de maio de 1937 em Barcelona, e até mesmo na perseguição e assassinato da ala esquerda da Frente Popular, o POUM e os anarquistas, pela NKVD stalinista (polícia secreta soviética, ligada ao PCE) e pelo próprio governo. [5]

Não só a Frente Popular não pautava as demandas da população marroquina e muçulmana, tanto no seu primeiro governo (1931-34, ainda que não tivesse esse nome de “Frente Popular”) como no segundo (1936 e durante a guerra civil), como fazia propaganda diretamente contra. Diversos cartazes de propaganda republicana ficaram conhecidos por sua estereotipação dos mouros como “não civilizados” ou “desumanos”, o que certamente contribuiu para sua participação nas fileiras franquistas. Exemplo:

Todas essas questões estavam marcadas por uma questão central: a coalizão da Frente Popular estava marcada pelos interesses burgueses. A grande burguesia se armava com o fascismo para esmagar a revolução, e o papel dos partidos operários e de esquerda foi fazer uma frente com a sombra da burguesia republicana para assegurar seus interesses, opostos aos interesses antagônicos do proletariado que se levantava na revolução. A materialização disso foi a Frente Popular, que, como mostrou durante toda a guerra civil, foi incapaz de levar a frente as demandas da revolução, desatando uma força revolucionária que, inclusive, teria impacto direto na base das forças franquistas. Ela foi incapaz, justamente, pelo seu caráter de classe. E nessa questão entra também a responsabilidade da ala esquerda da Frente Popular que se adaptou, ou seja, o POUM e os anarquistas que integraram o governo em detrimento de fortalecer as milícias, os Conselhos, as ocupações etc.

A Frente Popular foi incapaz de apresentar uma saída política às massas marroquinas – unificando a revolução na metrópole e no protetorado –, que ficaram à mercê de suas direções nacionalistas e a integraram o exército franquista.

Um debate na historiografia

A Revolução Espanhola certamente é um tema de grandes estudos. Um deles é analisar o porquê da derrota dos republicanos. Diversas análises militares podem ser feitas, inclusive em relação à ajudas estrangeiras, como os regimes nazifascistas da Itália e Alemanha por um lado, e da URSS, França e Inglaterra por outro, seja em armas e suprimentos diretamente, ou em um mero apoio político. Entretanto, uma questão fundamental para se pensar na derrota é que, essa guerra, se tratava de uma guerra de revolução e contrarrevolução. A acumulação das tensões sociais advindas da crise desataram em uma onda revolucionária, bem como as tensões políticas do pré-Segunda Guerra desataram em uma luta física entre os Estados. Um desses questionamentos é feito pelo escritor Antony Beevor:

“A pergunta relevante, contudo, é: o que uma vitória republicana produ­ziria? Se o Exército Popular tivesse conseguido a vitória, digamos, em 1937 - 1938, que tipo de governo se seguiria: o governo liberal de esquerda de 1936 ou um regime comunista linha-dura? O desmoronamento acelerado do governo republicano na primavera de verão de 1936 e o início da guerra civil, que deflagrou a revolta revolucionária, seguiram um ca­minho diferente do caos decorrente da Primeira Guerra Mundial.” [6]

Esse questionamento entra em como será possível a vitória da revolução, que, ultrapassaria os limites de um governo liberal republicano, como propõe o autor, e teria força para barrar a Segunda Guerra Mundial – uma revolução na Europa faria com que todas as potências imperialistas se virassem contra ela, amedrontadas, assim como foi na Revolução Russa. Para isso, retomaremos um dos maiores pensadores da estratégia militar, Carl Von Clausewitz:

“A guerra é essencialmente uma luta, porque a luta é o único elemento eficaz nas inúmeras atividades geralmente denominadas guerra. A luta, por sua vez, é um teste de forças morais e físicas, por intermédio das últimas. A força moral não deve, evidentemente, ser excluída, porque as forças psicológicas exercem uma influência decisiva sobre os elementos envolvidos na guerra.” (CLAUSEWITZ, Carl Von. “Da Guerra”. >Da-Guerra-Carl-Von-Clausewitz.pdf (amigosdamarinha.com.br)<, pág. 137)

Ou seja, as forças morais têm um papel central e decisivo em uma guerra. Dessa maneira, o desenvolvimento de uma força moral – que seria, por exemplo, o impulso das milícias operárias, dos Conselhos de fábrica, a independência de Marrocos e das outras regiões oprimidas pelo Estado espanhol (como a Catalunha ou o País Basco) – traria uma força a mais no campo militar da revolução/em que lutavam os republicanos, e, da mesma forma, traria uma fraqueza nas bases sociais que sustentavam o exército franquista, incluindo aí, a população marroquina altamente recrutada. Essa tarefa dependia, entretanto, não da burguesia republicana que encabeçava a Frente Popular, mas das organizações operárias em ter essa estratégia, especialmente à sua ala esquerda, o POUM e a FAI (pois tanto o PSOE quanto o PCE vinham de tradições contrárias a essa estratégia e que tinham suas bases sobre uma aristocracia operária e uma burocracia, da UGT no primeiro caso, e da URSS e do Comintern no segundo).

Pode Interessar: Documentário: Revolução e Guerra Civil na Espanha. Ideias de Esquerda, 2022

Referências bibliográficas:

1. ÁLVAREZ, María Rosa de Madariaga. “Las tropas moras en la Guerra Civil”. Revista de Prensa, 2009. Acesso em 02/12/22. >Las tropas moras en la Guerra Civil - Revista de Prensa (almendron.com)<
2. ANDERSON, Perry. As linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
3. BEEVOR, Antony. “A Batalha pela Espanha – A Guerra Civil Espanhola (1936-1939)”. Rio de Janeiro: Record, 2012, pp. 547-589.
4. CLAUSEWITZ, Carl Von. “Da Guerra”. >Da-Guerra-Carl-Von-Clausewitz.pdf (amigosdamarinha.com.br)<
5. CARRIQUE, Juan. “El imperialismo español, los enclaves coloniales y la lucha del pueblo saharaui”. La izquierda Diario.es, 2021. Acesso em 02/12/22. >El imperialismo español, los enclaves coloniales y la lucha del pueblo saharaui (izquierdadiario.es)<
6. CERVELLÓ, Josep Sánchez; AGUDO, Sebastián (orgs.). “Las brigadas internacionales: nuevas perspectivas en la historia de la guerra civil y del exílio”. Tarragona: Publicacions Urv, 2015.
7. DIEHL, Rafael de Mesquita. “Os mouros na Cruzada de Franco: a participação de muçulmanos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939)”. História Islâmica, 2020. Acesso em 02/12/22. >Os mouros na Cruzada de Franco: a participação de muçulmanos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) | História Islâmica (historiaislamica.com)<
8. FERRARI, Guillermo. “La represión estalinista en la revolución española”. La Izquierda Diario.es, 2016. Acesso em 02/12/22. >La represión estalinista en la revolución española (izquierdadiario.es)<
9. Fradera, Josep M. “La Nación desde los márgenes: ciudadanía y formas de exclusión en los imperios”. Illes i imperis, 2008, Num. 10/11, pp. 9-30
10. LENIN, Vladímir. "Imperialismo, estágio superior do capitalismo”. São Paulo, Boitempo, 2021.
11. MARX, Karl. “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” In O Capital, Volume I. São Paulo, Editora Ltda. 1996.
12. PRESTON, Paul. “Franco: Caudillo de España”. Barcelona: Debate, 2015.
13. TROTSKI, Leon. “A Revolução Espanhola - compilação”. São Paulo, Edições Iskra, 2014.
14. TUR, Francesc. “Los Moros de Franco”. ser histórico, portal de historia, 2018. Acesso em 02/12/22 >Los Moros de Franco – Ser Histórico (serhistorico.net)<
15. “Protectorado de España en Marruecos”. Biblioteca Nacional de España, 2012. Acesso em 02/12/22. >*Protectorado de España en Marruecos, 1912-1956 (bne.es)<


[1MARX, Karl. “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” In O Capital, Volume I. São Paulo, Editora Ltda. 1996.
pág. 370

[2TUR, Francesc. “Los Moros de Franco”. ser histórico, portal de historia, 2018. Acesso em 02/12/22 >Los Moros de Franco – Ser Histórico (serhistorico.net)<
Tradução minha.

[3LENIN, Vladímir. "Imperialismo, estágio superior do capitalismo”. São Paulo, Boitempo, 2021. pág. 129

[4TUR, Francesc. “Los Moros de Franco”. ser histórico, portal de historia, 2018. Acesso em 02/12/22 >Los Moros de Franco – Ser Histórico (serhistorico.net)<
Tradução minha.

[5Programa electoral del Frente Popular de 1936. Eco Republicano, 2022. Acesso em 02/12/22. >Programa electoral del Frente Popular de 1936 (ecorepublicano.es)<

[6BEEVOR, Antony. “A Batalha pela Espanha – A Guerra Civil Espanhola (1936-1939)”. Rio de Janeiro: Record, 2012, pág. 587





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