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USP | Trabalhadoras terceirizadas da USP dão exemplo e arrancam o pagamento dos salários com sua luta

Foram meses de sistemáticos atrasos de salários e benefícios. Para quem já ganha pouco, cada atraso de salário é menos dinheiro para comprar comida. Multa por atraso de pagamento de aluguel, cartão, contas. É pouco dinheiro no bolso e muito nos cofres da burguesia.

sexta-feira 21 de abril de 2023 | Edição do dia

Como Marx apontou no Manifesto Comunista, o trabalhador sofre com a exploração do empresário e, ao receber seu salário, ” torna-se presa de outros membros da burguesia: o senhorio, o varejista, o penhorista, etc."

A USP é apontada como a melhor universidade do país e de toda a América Latina, de acordo com rankings internacionais. A Faculdade de Medicina, que no ano passado completou 110 anos de existência, é a menina dos olhos da universidade. A concorrência para estudar nela é de 118 candidatos por vaga, a maior do vestibular da Fuvest, o filtro social criado pela burguesia para melhor aproveitar os grandes cérebros que se formam na USP. Nessa faculdade, que tomou as manchetes no começo do ano, após uma aluna ter embolsado quase um milhão de reais de um fundo que seria destinado à formatura da turma 106. Um milhão de reais para uma noite de festa.

Os alto escalão da Medicina, membros da diretoria e comissões, ganham, oficialmente, salários entre 30 e 40 mil reais pagos pela USP. Toda a estrutura da faculdade de medicina, assim como a USP toda, é mantida pelos impostos pagos pela população, através do ICMS, o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços. A conclusão é óbvia, quem sustenta a USP é a população, em especial os trabalhadores e trabalhadoras. No entanto, seja através do filtro social chamado vestibular, seja porque a pesquisa é direcionada aos interesses das grandes indústrias e dos dos capitalistas, o que a USP oferece de volta aos trabalhadores que a sustentam são novas formas de exploração, humilhação e escravidão.

Há mais de trinta anos a Universidade abriu seus portões para o trabalho terceirizado. Construção e manutenção predial, higienização e limpeza, segurança e vigilância, transporte, saúde, restaurantes universitários e agora até creches passaram a ser terceirizadas. A terceirização acelerou e aprofundou o projeto da burguesia de uma universidade voltada para a lógica do mercado. Nessa lógica, o dinheiro público é drenado para cofres de empresas privadas. E essa lógica não para por aí. As patentes, fruto das pesquisas feitas na universidade, utilizando mão de obra, espaço e equipamentos públicos, são disputadas por grandes empresas do esporte, da indústria alimentícia, farmacêutica e cosmética. A sociedade investe, o capitalista lucra, o trabalhador sofre. Para implementar esse projeto e gerar lucro é preciso impor a terceirização de forma acelerada, derrotar o funcionalismo público e retirar direitos que até então eram tidos como básicos. Para tanto, acordos com o empresariado, que hoje compõe a Frente Ampla do governo Lula-Alckmin, que se comprometeu a não revogar ataques como as reformas de Temer e de Bolsonaro que retirou direitos previdenciários e trabalhistas e a reforma administrativa começada pelo governo Dória e que segue acelerada pelo governo do bolsonarista Tarcísio que ataca o funcionalismo e os serviços públicos têm sido fundamentais.

A lei de terceirização que foi paulatinamente modificada para aprofundar a terceirização tomou mais amplitude nos governos FHC, que alterou e melhorou a lei para os patrões, facilitando o processo de entrada no mercado para as empresas terceirizadas de todo tipo, nos governos do PT, que fez saltar de 4 para 13 milhões o exército de trabalhadores precarizados, além da aprovação do marco legal da ciência que golpeou as pesquisas e universidades, e sob Temer que ampliou a terceirização para as atividades fins. A lei da terceirização irrestrita aprovada no governo do golpista Temer foi avaliada pelo STF, diga-se de passagem. Esse processo de precarização do trabalho foi seguido de perto pela USP que tem implementado cada um desses ataques, aprovando parâmetros de sustentabilidade para se adequar aos novos tempos de trabalho precário e ausência de direitos elementares como a saúde.

É importante lembrar que, como disse o professor de Direito da USP, Jorge Souto-Maior, a tercerização é a porta de entrada para escravidão. Os portões da USP estão escancarados.

No mesmo ambiente de trabalho que circulam os salários de mais de trinta mil reais, limpam a sujeira trabalhadoras terceirizadas que saem lá do fundão de São Paulo, de Parelheiros, Cidade Tiradentes, Itaquera, Jardim Rio Bonito, para ganhar, quando depositavam seus salários, R$ 1.300,00. Num local como a FM-USP, onde circulam corpos para serem periciados, patologias, animais de laboratório, doentes, a higienização e limpeza são ainda mais fundamentais. A covid nos mostrou isso. No entanto, o trabalho essencial para a manutenção dos cursos e das pesquisas, passava quase despercebido.

Agora não mais.

Trabalhar e não receber tem nome: ESCRAVIDÃO

Trabalhadoras da empresa Sector, que entrou na USP através de um processo licitatório, estavam sofrendo por quase um ano com atrasos de pagamento de salários, benefícios e até mesmo do décimo-terceiro salário. Além disso, faltava EPIs, material de limpeza para trabalhar, uniformes. Relatos contam que hipoclorito era diluído para além do aceitável para higienização e sacos de limpeza eram lavados e reaproveitados. Não bastasse as condições inseguras e inaceitáveis de trabalho, o atraso do pagamento punia as trabalhadoras que viviam sob insegurança constante.

Humilhações racistas e machistas saídas da boca de chefetes somavam-se às dores do corpo. Mãos machucadas e corpos cansados de tanta sobrecarga de trabalho decorrente da diminuição do quadro de funcionários.

Em abril essas trabalhadoras foram surpreendidas com a conta zerada no dia do pagamento. Além de trabalhar sem receber, agora estavam pagando do seu próprio bolso para ir trabalhar. Muitas dessas mulheres estavam sendo ameaçadas de despejo, pois o salário era esperado para pagar o aluguel. Outras estavam com filhos pequenos dentro de casa e sem comida, pois são mães e pais ao mesmo tempo e não tinham qualquer outra fonte de renda.

Poderíamos imaginar que isso tudo se tratava de uma cena do século XIX, ou que estava acontecendo em algum rincão isolado do país, mas se tratava da Faculdade de Medicina da USP, que desde o ano passado seguiu ignorando essa situação, a despeito da sua responsabilidade legal quanto a fiscalização do pagamento de salários e encargos da empresa contratada.

Nesta última segunda-feira, as trabalhadoras terceirizadas, depois de dez dias sem o pagamento dos seus salários ou benefícios, deram um basta e iniciaram uma paralisação contra a toda poderosa Faculdade de Medicina, e a reitoria da USP que, mesmo fazendo demagogia ao falar de “inclusão” dos negros e mulheres se recusou durante quase duas semanas a pagar os salários dessas trabalhadoras em sua maioria mulheres e negras. Em prol da empresa terceirizada e em detrimento até mesmo da lei diante de inúmeras irregularidades cometidas pela empresa Sector, a USP escolheu fortalecer o lucro ao invés de pagar o justo salário dessas trabalhadoras. Até que entenderam que as trabalhadoras não iriam aguentar caladas essa situação.

Essa luta aconteceu pouco depois de completados 100 dias de governo Lula-Alckmin e aponta um outro caminho para enfrentar a terceirização e a precarização do trabalho que abrem a porta para os escândalos de trabalho escravo que vemos explodir de norte a sul do país. Ao contrário da espera passiva de que a situação de miséria, fome e precarização possam ser solucionadas gradualmente e de forma pacífica através da administração do capitalismo com o governo de Frente Ampla ou de instituições como o Judiciário, essa luta mostrou o caminho da luta de classes como forma de dobrar a intransigência dos patrões e arrancar o pagamento dos salários e direitos.

A exemplar luta das trabalhadoras terceirizadas da Faculdade de Medicina da USP deixa lições preciosas, apontamos algumas que compartilhamos juntos com essas incríveis lutadoras.

“A gente precisa de um grito de guerra”: confiar nas próprias forças da classe trabalhadora

A disposição de luta das trabalhadoras terceirizadas é uma inspiração para enfrentar a terceirização que a burocracia sindical, encastelada nas grandes centrais sindicais como a CUT, CTB, Força Sindical e a mafiosa UGT se recusa a enfrentar e, ao contrário chega ao cúmulo de convidar para o 1º de Maio uma figura como Tarcísio que quer generalizar ainda mais a terceirização no estado de São Paulo. É um caminho que deveria inspirar a batalha para que as centrais sindicais organizem um verdadeiro plano de lutas pela revogação da reforma trabalhista, contra a precarização do trabalho e em defesa de iguais salários e direitos para trabalhadores efetivos e terceirizados.

Essa é uma alternativa ao caminho da passividade defendido por setores da esquerda, como o PSOL, que estão fazendo parte do governo de Frente Ampla que tem como um de seus expoentes Alckmin que avançou enormemente na terceirização em São Paulo e Lula que foi responsável pelo avanço da terceirização a nível nacional. Esse processo nos ensina, mais uma vez, que é somente confiando nas forças da classe trabalhadora, na sua unidade e na sua mobilização e organização que conquistamos nossos direitos.

As reivindicações da classe trabalhadora não serão alcançadas alimentando a confiança no Judiciário ou em um “salvador da pátria”. Ao contrário, o Judiciário e o Congresso foram quem legitimaram e aprovaram as reformas trabalhista e da previdência. A justiça e a lei, como vimos, são usadas como papelada para nos enrolar. A saída para reconquistar os direitos e avançar por mais é confiando na força da luta da classe trabalhadora, mostrando que, sem os trabalhadores, nada funciona, nem na USP, nem em toda a sociedade.

"Vamos escrever nessa luta um capítulo dessa história": as próprias trabalhadoras precisam decidir todos os passos da sua luta

Essas mulheres, que até poucos dias andavam tristes, tomaram a avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo cantando palavras de ordem, dançando, sorrindo e chorando e tomando em suas mãos uma parte do seu futuro.

Nas conversas, comentavam como viram surgir uma força que não imaginavam que estava dentro dela, que aflorou, com toda a sua potência, quando as decisões de como seguir a luta foram tomadas de forma democrática e coletiva em suas assembleias. A contribuição de um sindicato combativo, classista e democrático como o Sintusp, que mantém a tradição das assembleias como espaços de decisão soberanas, foi muito importante e completamente distinta da atuação burocrática do SIEMACO, Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação no Estado de São Paulo, que é vinculado a central UGT, central sindical historicamente pró-patronal, que tentavam impor às trabalhadoras o que deveriam ou não fazer.

Ao contrário disso, as trabalhadoras foram sujeitas, protagonistas em suas assembleias, onde, todas juntas, decidiram por paralisar as atividades e debateram se aceitariam ou não os termos do acordo proposto, quando e em quais condições voltariam ao trabalho. Até mesmo quem usaria o microfone, diante do pedido debochado de um representante da patronal, foi decidido por elas. A decisão tomada foi clara: retornariam ao trabalho quando o pagamento do salário de todas fosse efetuado, sem acreditar nas falsas promessas de datas e na demagogia patronal. Se uma delas não recebesse a justa remuneração do seu trabalho, nenhuma voltava para seu posto.

As decisões tomadas em conjunto fortaleceram a luta. As trabalhadoras se sentiram escrevendo a sua própria história. A certeza de que não estavam sozinhas, da união entre todas e todos e de saber que a luta estava em suas próprias mãos, nas suas decisões, permitiu superar as inseguranças e medos de cada uma e garantir essa conquista. O sindicato deve servir para organizar a luta permitindo que os trabalhadores decidam como vão lutar. Ele deve ser uma ferramenta de luta dos trabalhadores em defesa dos trabalhadores e não o contrário, como é a prática do mafioso Siemaco.

Em meio a essa luta, as trabalhadoras terceirizadas tiveram contato com a teoria que resgata e conecta as experiências do passado com as lutas do presente através do livro "A precarização tem rosto de mulher”, organizado pela fundadora do grupo de Mulheres Pão e Rosas e dirigente do MRT, Diana Assunção..

Aqueles que mais sofreram com o velho lutam com mais força pelo novo: mulheres e negros na linha de frente

Ficou escancarado nesse processo o caráter racista, elitista e machista da Universidade de São Paulo. Quem estava sem receber salários, tendo que gritar para serem ouvidas, eram as trabalhadoras e trabalhadores terceirizados, a maioria negras e negros. Enquanto a reitoria da USP fala em inclusão e pertencimento e faz demagogia com a luta das mulheres, dos negros e do povo pobre, são as mulheres trabalhadoras, trabalhadores negros e negras, que estão trabalhando nas empresas terceirizadas, com menos direitos e menores salários, sujeitos à humilhação, assédio e inclusive ao descumprimento do mínimo da relação de contrato de trabalho, que é o pagamento do salário.

E quem mais sofre, quem está no dia a dia tendo que arrancar com seu suor o justo direito ao salário, aguentando toda sorte de humilhações é quem primeiro se levanta, e com força, contra as injustiças. E a força dos oprimidos, dos trabalhadores explorados, é uma força potente. Os patrões falam grosso, mas as mulheres trabalhadoras falaram mais alto.

A força da unidade entre trabalhadores efetivos, terceirizados e a aliança operária-estudantil

Os patrões e o governo nos dividem para nos explorar e oprimir. Entre trabalhadores brancos e negros, mulheres e homens, jovens e velhos, trabalhador efetivo e trabalhador terceirizado e entre diferentes categorias. Essa luta nos mostra que o trabalho de limpeza é essencial para o funcionamento da Faculdade de Medicina, uma unidade de saúde e que são as mãos da classe trabalhadora que faz tudo o que existe na sociedade se mover.

Sem o trabalho dessas mulheres não poderia haver aula, pesquisa, consulta médica, sem que o ambiente esteja limpo e organizado. Uma só classe e uma só luta. Por isso, não deve existir diferença de direitos e salários entre os trabalhadores. O trabalho terceirizado só serve para tirar direitos, diminuir os salários, aumentar o lucro dos patrões e impor mais exploração. Por isso, todos que hoje já estão trabalhando na USP deveriam ser efetivados, ter iguais direitos e iguais salários e essa é uma luta que o Sintusp defende historicamente, assim como os militantes do Movimento Nossa Classe, da Juventude Faísca e do grupo de Mulheres Pão e Rosas.

Para conseguir conquistar essa igualdade é fundamental o apoio dos estudantes que são a maioria na universidade e que bravamente estavam desde a primeira hora do dia incendiando as trabalhadoras e apontando que elas confiassem nas suas próprias forças. Na Universidade mais rica e elitista do país, a luta dos estudantes na defesa dos seus direitos, para que possam continuar estudando, precisa estar junto e fortalecer a luta dos trabalhadores.

“Nessa luta foi decisivo o apoio dos trabalhadores e dos estudantes, isso fez toda a diferença para a nossa vitória”.

O apoio de intelectuais e parlamentares

Em meio a essa luta, mais de mil intelectuais, juristas, parlamentares e entidades acadêmicas e de representação de trabalhadores impulsionam o Manifesto contra a terceirização e a precarização do trabalho e em defesa de iguais direitos e salários para os trabalhadores terceirizados.. Esse manifesto é uma verdadeira arma que fortalece lutas, seja para esta batalha parcial como a que as trabalhadoras terceirizadas encabeçaram, seja para as grandes lutas da classe contra essa fratura estratégica que os patrões impuseram. Ter o apoio desses intelectuais e parlamentares que colocam as suas ideias a serviço de fortalecer uma luta tão importante é fundamental.

Manter a organização da nossa classe de forma independente, para não começar sempre do zero

Infelizmente, essa situação, de trabalhar e não receber, não acontece pela primeira vez, e não será a última. Não, enquanto a terceirização, que divide os trabalhadores e permite um punhado de patrões lucrarem com a exploração de milhares, existir. A terceirização só serve para aumentar a exploração e tirar direitos dos trabalhadores. Derrotar essa divisão entre os trabalhadores depende de muita luta, entre todas as categorias. Por isso é necessário que as lições dessa luta sigam com cada companheira e companheiro nas próximas empresas em que trabalharem, para que a gente não precise partir do zero, mas possamos resgatar esse aprendizado para avançar ainda mais. É por isso, também, que é importante estarem unidas e organizadas frente a qualquer ameaça de punição, seja dos patrões ou da reitoria da USP.

"O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores"




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