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LITERATURA E REVOLUÇÃO | O escritor periférico no caminho da literatura revolucionária

terça-feira 15 de março de 2016 | 00:00

Num berço de ouro as letras são dadas como o leite, o plano de saúde, as viagens e o carro do ano. A origem privilegiada é um traço que definiu por séculos a situação de classe do escritor. Dialeticamente, a tomada de consciência sobre as monstruosidades do capitalismo viabilizou a existência de autores que optaram politicamente pela classe operária: rompendo com a sua classe de origem, autores de esquerda colocaram a sua escrita a serviço da causa do proletariado. Porém, por muito tempo, esqueceu-se que o proletário também é um autor: a mesma mão que trabalha, que sofre com a exploração, é a mão que escreve e portanto expressa as dores e a revolta social. A carência educacional não impediu em vários casos a sede de conhecimento literário, estimulando inclusive uma postura autodidata. Hoje em dia no Brasil, a vigência da literatura periférica coloca o autor proletário como possível agente revolucionário das letras.

Já virou disco arranhado afirmar que a literatura periférica é um fato cultural da maior importância. Escrever é uma ação que permite ao trabalhador se defender e atacar o status quo. A escritora Jenyffer Nascimento deixa isto claríssimo no seu poema “Antítese”: “Quiseram uma mulher ignorante/eu já tinha lido o suficiente para me proteger”. No poema “Desensinamentos”, a mesma autora relaciona a condição proletária com as questões de gênero, tratando da realidade da mulher trabalhadora negra: “Corpos curvados encaram o chão/Como se olhar o céu ou o front /Não fosse algo permitido para negras, lavadeiras, cozinheiras, professoras, balconistas, cabelereiras e universitárias/Como nós”. Se faz necessário que a obra de autores como Jenyffer circule cada vez mais (quem quiser ler e saber um pouco mais sobre a autora procure na página Blogueiras Negras o interessantíssimo artigo “Vozes femininas da literatura periférica e a poesia de Jenyffer Nacimento”, assinado por Patrícia Anunciada).

É verdade que a produção literária periférica vem sendo analisada academicamente, tornando-se objeto de estudo num ambiente de classe média. Isto é altamente positivo do ponto de vista da teoria e da crítica literária, cujo dever é compreender o movimento e as especificidades estéticas e históricas da literatura. Porém, a obra literária periférica tende a encontrar eco/sentido no contexto periférico/proletário. Enquanto que leitores ideologicamente arraigados à classe média tendem a desdenhar obras em que a oralidade e as transgressões gramaticais profanam a prosa e o verso que “andam na lei”, jovens trabalhadores encontram na literatura periférica um canal de interpretação e ação sobre o real. É neste sentido que a literatura pode atuar hoje pelo avanço da consciência política dos trabalhadores. A maré conservadora, o desemprego, a crise política, as práticas de corrupção e o verde amarelismo da pequena burguesia que atingem o país colocam para a classe trabalhadora a necessidade de uma resposta política verdadeiramente à esquerda, embasada em seus interesses históricos; e a literatura precisa participar deste processo numa direção revolucionária.

Os hábitos de leitura possibilitados por saraus e encontros literários nas escolas, nos bares e nos centros culturais das periferias, além da circulação de livros realizada pelos próprios trabalhadores, geram uma relação progressista com a palavra escrita. O trabalho dos escritores periféricos agrega pessoas, nasce e se desenvolve com um montão de gente. Não estamos mais falando daquele escritor pequeno burguês em crise, no fundo do bar, bebendo whisky e refletindo sobre a morte da bezerra. Embora a solidão num bar possa gerar excelentes obras literárias (inclusive do ponto de vista político revolucionário), a crise intelectual não vai encontrar nenhuma saída (estética, inclusive) se os próprios intelectuais ignorarem as tendências literárias que surgem nas periferias do Brasil.

Ainda é cedo para afirmar que o conjunto da literatura periférica consiste em uma literatura revolucionária. A gama de autores heterogêneos que formam esta produção literária se caracteriza por uma vontade não conformista expressa na escrita que fotografa o cotidiano marcado pela miséria, pelo crime, pelo racismo, pelo machismo e outros aspectos presentes na vida da classe trabalhadora. Tais ingredientes são os pressupostos necessários para que o texto literário exprima a crítica social e a rebelião contra a classe dominante. Mas para que tal percurso se desenvolva num sentido revolucionário, é necessário uma formação política socialista e ao mesmo tempo a realização do debate estético que visa ampliar as técnicas literárias. O importante é escrever a partir de um desejo revolucionário. De que adianta expressar o sentimento de indignação e retratar as vivências dos bairros periféricos se o autor não reconhece que a sua obra é uma arma contra a sociedade burguesa?

No âmbito da literatura, o marxismo não representa nenhuma voz de comando. Seria o fim da picada se a crítica marxista tomasse para si a produção cultural realizada pelos trabalhadores. A contribuição marxista está em oferecer ao escritor periférico uma ferramenta teórica que lhe permita entender o processo histórico e o papel que a literatura desempenha em tal processo. Se a defesa de uma “literatura proletária” consiste num erro básico na concepção marxista da História (não cabe ao proletariado erguer uma cultura de classe mas sim desenvolver uma cultura liberta da divisão de classes), isto não retira a necessidade dos trabalhadores desenvolverem atividades literárias revolucionárias. A análise que o marxismo realiza é fundamental para os escritores de origem proletária: a consciência de classe de tais escritores tende a se fortalecer pelo tecido da sua escrita, fazendo da obra literária expressão do seu inconformismo político.

Uma coisa é certa: quem poderá acender o pavio da literatura revolucionária no Brasil de hoje é o escritor periférico.


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