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Debate | Sobre debate no PCB acerca da Rússia, China e a Plataforma Mundial Anti-imperialista

A guerra da Ucrânia catalisou uma crise na organização internacional da qual faz parte o PCB, a chamada EIPCO (Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários), frente a que Putin se utiliza dela para sua política reacionária. Decorrência natural de uma organização oportunista que reúne organizações de todo tipo que ficaram ligadas de alguma forma à velha URSS. O debate passa pelo caráter da guerra da Ucrânia, da chamada Plataforma Mundial Anti-imperialista, e se liga ao papel da Rússia e China, questões que vamos abordar neste artigo em polêmica com as duas alas em debate público no PCB.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

quarta-feira 21 de junho de 2023 | Edição do dia

Dentro dos debates que exibiram a crise política aberta no PCB, com a expressão de uma fração pública contrária à posição da direção majoritária, a Guerra da Ucrânia figura com destaque. O motivo central parece ter sido a “revelação” (já que os militantes dessa corrente de tradição stalinista depuseram desconhecer esse fato) de que membros da direção do PCB, como Eduardo Serra e seu secretário de relações internacionais, participam da chamada Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI). Tal Plataforma não é nada mais que um instrumento de propaganda do governo oligárquico de Putin em defesa de sua política em prol da burguesia russa. Mais uma expressão de como a tradição stalinista nunca rompe com a lógica de pensar a política internacional como geopolítica de “estado-nação” e não pelo enfoque do internacionalismo da luta de classes.

Ivan Pinheiro, ex-secretário geral do PCB, criticou a iniciativa da PMAI. Não apresentou uma alternativa clara de conteúdo, e reservou o artigo a críticas de método, sem responder o que seria uma política correta diante do conflito militar. Faz uma alusão favorável à posição do PCB na única declaração publicizada pelo partido em relação à guerra até agora, escrita há quase um ano e meio, e assume que seria “correto” preservar os princípios que o PCB desenvolveu nas resoluções de seu XVI Congresso, em que a China e o Partido Comunista Chinês (PCCh) são vistos com bons olhos.

Nesse artigo vamos nos concentrar especificamente nesse ponto do debate, que versa sobre a Guerra da Ucrânia. O objetivo é mostrar como as duas posições, a da direção majoritária do PCB e a de sua fração pública, estão absolutamente equivocadas. No demais, ambas revelam maneiras distintas de apoiar uma política ultraburocrática e antioperária, incapazes de enfrentar a política nefasta do imperialismo estadunidense, da OTAN sob comando de Washington, e dos países imperialistas europeus.

Guerra da Ucrânia, imperialismo e a política que continua por outros meios

Como desenvolvemos em várias elaborações e debates na esquerda (ver aqui), a guerra na Ucrânia é uma guerra reacionária. Para responder à política agressiva dos EUA e da OTAN em sua dinâmica expansiva ao Leste Europeu, que pretende militarizar a região e incorporar a Ucrânia à Aliança Atlântica imperialista, a Rússia de Putin executou uma invasão militar reacionária em território ucraniano. O governo capitalista ucraniano, chefiado por Zelensky, colocou o país sob lei marcial e, subordinado à política de Washington e tendo os membros imperialistas da OTAN como ponto de apoio em treinamento, armamento e logística, opôs resistência à ocupação russa. De fevereiro de 2022 até aqui, essa guerra reacionária se provou catastrófica para os interesses dos trabalhadores, com o aumento da miséria e da pobreza dos ucranianos, dezenas de milhares de mortos e desastres humanitário-ambientais como a destruição da barragem de Kakhovka, que devastou cidades e povoados, danificando permanentemente o ecossistema da região.

Trata-se de uma dura guerra de desgaste, e sendo a guerra a continuação da política por outros meios, como afirmava Clausewitz, é necessário compreender como a política reacionária de cada ator se continua em termos militares. A política dos EUA e das potências imperialistas ocidentais, que está sendo continuada na guerra na Ucrânia, é a política imperialista de “cercar” a Rússia por meio da expansão da OTAN para o Leste, sem chegar a um confronto militar direto, usando as tropas ucranianas como “bucha de canhão”. O crescimento de uma ala da extrema direita europeia é fruto da política de “otanização” do Leste Europeu. Junto com isso, a interferência dos EUA nas chamadas “revoluções coloridas”, busca capitalizar as revoltas contra regimes autoritários para expandir a influência imperialista dos EUA. O objetivo é desgastar e debilitar a Rússia, afastando as principais potências europeias de Moscou, e preservar a ordem mundial saída do final da Guerra Fria, em que os Estados Unidos subordinam a seu domínio o capital russo e chinês. A política anti-China do imperialismo dos EUA é evidente desde a ascensão de Trump, a guerra comercial e tecnológica continuada por Biden busca enfraquecer a competição de Pequim.

A política que Putin continua através da invasão da Ucrânia é a de recriar um status de potência militar para a Rússia, apoiando-se na opressão nacional dos povos vizinhos, uma herança do tsarismo e do stalinismo. Putin realiza essa “missão histórica” do capitalismo russo insuflando outro segmento da extrema direita, dentro e fora da Rússia (com a atuação de tropas paramilitares como a Organização Wagner). Isso se viu na política repressiva de Putin contra revoltas antigovernamentais no Cazaquistão e no Quirguistão, ou auxiliando o regime sanguinário de Bashar al-Assad na Síria. Moscou atua como uma espécie de “imperialismo militar”, embora não se qualifique como um país imperialista no sentido exato do termo, pois apesar de uma potência agressiva em seus negócios capitalistas pelo mundo, foi drasticamente debilitada pela restauração capitalista na década de 1990 e não possui projeção internacional significativa de poder, e seus monopólios exportam capitais essencialmente direcionadas a matérias-primas energéticas (gás, petróleo e outras commodities, etc). Seu status no sistema de Estados dependerá do resultado da guerra. A política do governo Zelensky, que está sendo continuada durante a guerra, é subordinar a Ucrânia às potências ocidentais, dentro de uma trajetória pendular marcada pelo confronto entre as oligarquias capitalistas locais “pró-russas” e “pró-ocidentais”.

Dentro desse arranjo de forças em disputa, a China não tem um papel menor, embora não participe diretamente da guerra com tropas próprias. A política que a China sustenta dentro da Guerra da Ucrânia, através da Rússia, é o questionamento à ordem global unipolar hegemonizada por Washington, em busca de melhor posicionar seu agressivo capitalismo dentro do sistema de Estados, em especial na Ásia, em que militariza o Mar do Sul da China, assedia Taiwan e avança sobre as nações da Ásia Central previamente influenciadas pela Rússia. Por isso, Pequim e o PCCh sustentam financeiramente os esforços militares de Moscou, e Xi Jinping demonstrou em inúmeras ocasiões sua proximidade com Putin na política de conter os interesses dos EUA na Eurásia. Mundialmente, a China se apresenta como potência que poderia servir como encabeçadora de uma multipolaridade benigna capaz de realizar uma integração global não militarista, alternativa à unipolaridade beligerante dos Estados Unidos. Lula, em sua visita a Xi Jinping, assegurou o apoio de seu governo a essa visão de mundo, ainda que isso não implique ruptura com BIden e os EUA.

Nossa política desde o início do conflito, que expressamos em diversas elaborações dos grupos da Fração Trotskista, foi de oposição total a esta guerra reacionária, exigindo a imediata retirada das tropas russas da Ucrânia, a expulsão da OTAN da Europa do Leste, denunciando a política de rearmamento imperialista, e defendendo a unidade da classe trabalhadora internacional por uma política independente na Ucrânia, que enfrente a ocupação russa e a dominação imperialista lutando por uma Ucrânia operária e socialista. É por isso que, contra qualquer posicionamento por trás de um dos “campos” reacionários em disputa e contra as ilusões em uma solução de “paz” capitalista, seja ela vinda da Europa, da China ou de qualquer outra potência, a questão é formar um polo contra a guerra na Ucrânia com uma política independente dos trabalhadores. Como dizemos na declaração da Fração Trotskista, “Toda posição de esquerda ou anti-imperialista deve repudiar aberta e enfaticamente esta ocupação decidida pelo governo autocrático de Putin e exigir a retirada imediata das forças militares russas de todo o território ucraniano. Ao mesmo tempo, deve alentar entre a população ucraniana o surgimento de uma posição independente do governo pró-imperialista de Zelensky e das diferentes forças nacionalistas reacionárias, subordinadas às potências da OTAN. Deve incluir no seu programa o direito à auto-determinação para as populações de Donetsk e Luhansk, sem o qual é impossível superar a atual divisão da população, presa de direções burguesas rivais que disputam entre si a subordinação a Putin ou aos imperialismos ocidentais. Nas repúblicas separatistas do Leste ucraniano, também é necessário se opor à ocupação russa, enfrentando a demagogia de Putin que utiliza as justas demandas da população de origem russa para seus interesses.”

O vergonhoso apoio da direção do PCB à política reacionária de Putin

A posição das duas alas do PCB, por caminhos distintos, se afastam integralmente de uma posição de independência de classe, cuja natureza apontamos acima.

A posição oficial do PCB passou a se subordinar à política reacionária de Putin na Rússia, como se revela na própria polêmica entre suas frações. A participação de membros da direção do PCB nos encontros da PMAI, desde 2022, é representativa dessa política em prol do soberanismo reacionário do capitalismo russo, que não à toa conta, nas reuniões da plataforma patrocinada por Moscou, com a presença de organizações nacionalistas de extrema direita, como Vanguardia Española e o Nazbol, denunciados pelos próprios PCs grego e mexicano. Não poderia ser diferente, já que Putin dirige um regime autoritário e despótico a serviço dos oligarcas de seu círculo íntimo, que impede a organização independente e democrática dos trabalhadores e persegue com prisão aqueles que se opõem à guerra na Ucrânia.

Essa é uma das quatro variantes políticas que podemos identificar dentro da centro-esquerda e da esquerda em relação à Guerra da Ucrânia (abaixo discorreremos sobre as outras três). Trata-se da posição de alguns partidos comunistas e setores do populismo latino-americano que apresentam Putin – e um bloco com a China – como uma espécie de alternativa ao imperialismo e argumentam que a invasão da Ucrânia pela Rússia é uma medida necessária de “defesa nacional” contra a OTAN. O PCB se torna, como o PCdoB, um apoiador acrítico dessa política, que se baseia no pressuposto vil de Putin de que a Ucrânia “era uma invenção de Lênin e dos bolcheviques”.

Ivan Pinheiro, uma das principais figuras da fração pública (que com suas heterogeneidades, inclui Jones Manoel, Gaiofato e outros), alude a uma suposta incoerência entre a plataforma política da PMAI e a única declaração que, em quase um ano e meio de guerra, o PCB publicizou acerca da Guerra da Ucrânia. Para comprovar essa suposta incongruência, Ivan Pinheiro cita uma sentença da declaração, “Os interesses das burguesias estadunidense e russa são evidentes nessa luta pela partilha do mundo capitalista e a guerra não interessa aos trabalhadores”.

Mas as principais características da posição oficial atual do PCB, em direção à qual se aproximou às pressas em suas participações das distintas reuniões da PMAI, já se encontravam disposta na própria estrutura daquela longínqua declaração de fevereiro de 2022. Em nenhum momento a declaração do PCB critica a ocupação militar criminosa de Putin na Ucrânia. Pelo contrário. Além de aceitar a nomenclatura hipócrita do Kremlin (“operações militares especiais na Ucrânia”, ao invés de invasão militar), o PCB ecoou a mesma cínica razão que o governo russo utilizou para justificar sua reacionária agressão militar, a saber, a suposta proteção de cidadãos russos na região do Donbass. A declaração diz que “o conjunto de operações militares especiais realizadas pela Rússia, desde a manhã do dia 24 de fevereiro, em território ucraniano, representa, nesse momento, o esgotamento das tratativas diplomáticas de resolução do conflito que envolve Rússia e Ucrânia […] As operações foram precedidas por uma declaração do governo russo de reconhecimento da independência das Repúblicas de Donetsk e Lugansk, na região do Donbass, como forma de proteger a população que vinha sendo bombardeada por nova onda de ataques do regime ucraniano”. Não houve qualquer artigo ou declaração oficial do PCB que desmentisse as razões apresentadas pelo Kremlin, ou que denunciasse a anexação forçada de Donetsk e Luhansk; nesse respeito, não existe qualquer divergência com a política da PMAI entre as alas do PCB.

Mais grave ainda, em nenhum parágrafo da única declaração publicada pelo PCB até agora sobre a guerra se exige a imediata retirada das tropas russas da Ucrânia. A política reacionária da burguesia russa se continua hoje, em meio à guerra, com a invasão do território ucraniano mediante tropas terrestres. Criticar os interesses da burguesia russa e calar diante da forma concreta em que esses interesses se expressam militarmente, contra os trabalhadores e os povos oprimidos da Ucrânia, significa ser conivente na prática com a política do Kremlin.

Essas posições, se não chegam a ser idênticas com as atuais posições que o PCB defende na PMAI – defensora desbragada da agressão militar russa e da política de Putin – abriam caminho a elas e possuem todas as suas características essenciais. Há, portanto, ao contrário do que diz Pinheiro, uma coerência interna na evolução da posição do PCB. Caminhou de uma crítica “anti-imperialista” abstrata às burguesias norte-americana e russa, silenciando qualquer crítica à invasão militar de Putin, para uma postura de defesa acrítica da política do Kremlin.

O falso progressismo do “multilateralismo capitalista” chinês, defendido pela fração pública

Outras três posições são dignas de menção, para podermos identificar o lugar da fração pública do PCB.

A posição majoritária na centro-esquerda a nível internacional se curva à propaganda promovida pela grande maioria dos principais meios de comunicação ocidentais desde o início da guerra, que tenta usar o justo repúdio à invasão reacionária de Putin na Ucrânia para apresentar a OTAN como defensora da paz e da democracia. Boa parte da esquerda, com diferentes nuances e intensidades, se curvou a essa política (LIT/PSTU, UIT/CST, os mandelistas do Secretariado Unificado, etc.). Algumas dessas correntes fizeram da palavra de ordem “armas para a Ucrânia” uma bandeira, por fora de qualquer delimitação de classe, colocando-se de fato no campo otanista. Outra posição, bastante difundida, é a adotada pela maior parte da esquerda reformista na Europa (incluindo seções do Die Linke na Alemanha, do La France Insoumise de Mélenchon, do Syriza na Grécia, do Podemos no Estado espanhol etc.), que pede um cessar-fogo e a mediação da União Europeia para impor negociações de paz em termos imperialistas.

Por fim, uma variante dessa política pacifista baseia-se na ideia de que a China e a burocracia bonapartista do Partido Comunista Chinês seriam uma espécie de alternativa, se não progressista, pelo menos mais benevolente, à hegemonia do imperialismo norte-americano. Com base no cerco da Rússia pelas potências ocidentais e no avanço da OTAN, esse setor da esquerda considera que, como a China e a Rússia se opõem à hegemonia dos EUA e defendem uma “ordem multipolar”, adotariam certos traços “anti-imperialistas”. Nessa interpretação, a política externa do capitalismo chinês, que adquire cada vez mais traços imperialistas, estaria suficientemente destituída de “motivos violentos” para patrocinar um suposto “multilateralismo benéfico”, menos agressivo que a unipolaridade norte-americana. Intelectuais como Rafael Poch de Feliu, ou Maurizio Lazzarato, advogam cada um à sua maneira o multilateralismo capitalista encabeçado chinês.

Aqui se inscreve a fração pública do PCB. O entusiasmo pela alternativa do multilateralismo capitalista chinês na geopolítica mundial transparece em distintos matizes dentro dessa fração, desde Ivan Pinheiro a Jones Manoel. Este último, figura conhecida do PCB nas redes sociais, vai a extremos insólitos para defender como “experiência socialista” a severa estrutura bonapartista de disciplinamento e exploração da classe operária e do campesinato, e como “experiência socialista” a administração Xi Jinping, uma suposta “virada à esquerda” num país cuja, economia fundada na propriedade privada, nunca ofereceu uma tamanha galeria de bilionários capitalistas em sua história (“não está no horizonte da China acabar com os bilionários”, afirma serenamente Jones sobre sua “experiência socialista”). Mas essa simpatia não é privilégio exclusivo da fração. Forçoso é dizer que se trata de um valor comungado em maior ou menor medida pelo próprio PCB, como mostra o ponto 134 das resoluções do XVI Congresso do PCB, citado por Ivan Pinheiro como contraponto à direção partidária.

Vejamos a resolução que fundamenta essa visão lamentavelmente órfã de realidade. “Ponto 134 – Resoluções do XVI Congresso: A China assume uma importância regional cada vez maior na Ásia, com protagonismo mundial geopolítico e econômico. Nos últimos 40 anos, a redução da pobreza na China impactou em mais de 70% na redução da pobreza mundial. O país é dirigido por um partido comunista que se compreende fiel ao marxismo-leninismo, dirigindo um processo de longa duração histórica de transição socialista. Cabe ao PCB buscar maior estudo e aprofundamento sobre essas experiências, assim como intensificar intercâmbio cultural e político com o Partido Comunista Chinês, como forma de melhor compreendê-lo. A despeito da ausência de posição fechada sobre o caráter socialista ou não desses países, nosso Partido deve defender a China dos ataques do imperialismo e da propaganda orientalista, racista e anticomunista produzida pelos monopólios de mídia ocidentais”.

Assim, o indispensável repúdio ao imperialismo, básico a qualquer um que se diga de esquerda, oficia de véu pouco sutil ao apoio do PCB (e sua fração pública) ao capitalismo chinês. Valeria bem lembrar ao PCB o que dizia o velho Marx n’O 18 Brumário, “assim como na vida privada se deve diferenciar o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais”. O que o Partido Comunista Chinês pensa de si mesmo como agente de uma “longa transição socialista” deve se curvar, lamentamos dizer, ao que faz na realidade.

Em primeiro lugar, a realidade adverte a Ivan Pinheiro e Cia. que a China de Xi Jinping é apoiadora da ofensiva militar do capitalismo russo. Xi colabora politicamente com Putin e não desperdiçou ocasiões para assegurar a “amizade sem limites” com Moscou, aliado insubstituível na disputa com os Estados Unidos. Pequim sustenta financeiramente a Rússia em meio aos embargos e sanções econômicas do Ocidente, e enriqueceu muito com isso. Segundo o Financial Times, o renminbi passou a ser usado como moeda especial de transação financeira e comercial nas exportações russas de gás e petróleo, tornando Moscou a quarta maior utilizadora de renminbi em fevereiro de 2023. Dessa maneira, o Partido Comunista Chinês, parceiro do PCB na chamada EIPCO (Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários, organização internacional do PCB), participa da “guerra econômica” e confere apoio político aos esforços de guerra da Rússia, da mesma maneira que outro parceiro do PCB na EIPCO, o Partido Comunista da Federação Russa, que sustenta a política autoritária de Putin.

Em segundo lugar, a projeção internacional do poder do capital chinês é incomensuravelmente maior que o da Rússia, não tendo qualquer relação com “experimentos socialistas”. Envolve a atuação dos grandes monopólios de Estado da China segundo as leis de mercado do capitalismo global, assim como de suas empresas privadas, cada vez mais poderosas. Não se poderia imaginar no século XXI a exploração do trabalho em diversos segmentos da produção energética, agrícola e mineral sem a participação do capital chinês nas últimas décadas da condição de receptor virtual unilateral de investimento dos monopólios imperialistas para a condição de competidor por nichos de acumulação de capital a nível global. A modernização de suas Forças Armadas, dentro da disputa industrial-tecnológica com os Estados Unidos, gera tensões militares cada vez maiores, e resulta num movimento de “militarização compartilhada” do Mar do Sul da China, em que as provocações de Washington buscando converter Taiwan numa espécie de “protetorado militar” são respondidos por movimentos crescentemente agressivos do governo chinês. Dentro da voragem pela preeminência das potências na região da Ásia-Pacífico, o poder projetado pela China não tem nada a ver com “socialismo”, e denota tendências à luta por hegemonia no horizonte histórico, diante de cujo fortalecimento qualquer paralelo mecânico com “tradições dinásticas não hegemônicas” do passado não conferem cláusula científica de análise.

Tudo isso confere traços imperialistas cada vez mais marcantes na China, como se pode ver nos acordos financeiros e comerciais que realiza em troca de acesso privilegiado à pilhagem de matérias-primas; nos intercâmbios de créditos por direitos de exploração de recursos na África e na América Latina; e na sua incipiente vocação política de buscar ser um fator nas decisões internas em alguns países da periferia capitalista, através de projetos como a Nova Rota da Seda, que para alguns autores, como Nadège Rolland, é utilizado pela China como forma de explorar o trabalho de países de capitalismo atrasado da mesma maneira como o Ocidente havia explorado o trabalho chinês nas últimas quatro décadas, transformando continentes como a África em plataformas de mão de obra barata. Por exemplo, a Congo Dongfang International Mining (CDM), associada à chinesa Zhejiang Huayou Cobalt, exporta 90% do cromo da República Democrática do Congo, material essencial para a fabricação de telefones celulares, GPS e satélites. Cerca de 100.000 mineiros, 40% dos quais a Anistia Internacional acredita serem crianças, trabalham sob o comando de capatazes chineses em condições de hiperexploração. Esse tipo de relação de exploração capital-trabalho é evidente na Nova Rota da Seda, que dentro da morfologia do trabalho específico da China exibe a exportação de força de trabalho chinesa para os países destinatários dos planos de construção de infraestrutura. Com efeito, são infindos os relatos de pesquisadores sobre denúncias de tráfico de pessoas e superexploração do trabalho. Organismos de direitos trabalhistas denunciaram o tráfico de trabalhadores de Taiwan, da Malásia, da própria China e de outros países do sudeste asiático, em países preferenciais das obras da Nova Rota da Seda, como o Camboja. Muitos são recrutados por capitalistas privados e empresas de terceirização sob falsas promessas, deparando-se em sua chegada com a terrível condição de encarceramento nos complexos administrados por capitalistas chineses. Isso, em meio ao que Jones Manoel considera a “virada à esquerda” de Xi Jinping...

Assim, ao contrário das formulações, destituídas de dados, por parte de Jones Manoel – que afirma que Xi Jinping teria melhorado as condições de vida dos trabalhadores e reduzido o índice de acidentes de trabalho – basta observar os relatórios do China Labor Watch na última década para observar o inferno industrial na China (na indústria de brinquedos, na indústria gráfica, na indústria de celulares, ou em fornecedores para a Amazon). O símbolo disso se pôde enxergar com a greve dos trabalhadores da maior fábrica de iPhones do mundo, a Foxconn de Zhengzhou, contra a política da Covid-zero de Xi Jinping nas fábricas – cujas condições de exploração foram tratadas em livro “Dying for an iPhone”, de Jenny Chan, Ngai Pun e Mark Selden – ou com a greve dos trabalhadores da Tesla em Xangai, que são proibidos de ir ao banheiro e obrigados a dormir no chão da fábrica para não deter a produção. Não há dúvida que “não está no horizonte da China acabar com os bilionários”, quando falamos de Xi Jinping; essa tarefa está designada apenas aos trabalhadores urbanos e rurais, à juventude, às mulheres, aos imigrantes através da luta de classes na China.

Nem socialismo, nem progressismo, nem “giro à esquerda”. Quanto à suposta diminuição da desigualdade e da pobreza no mundo por colaboração da China, aparentemente não estamos falando do mesmo planeta. Internacionalmente, a restauração capitalista na China, dirigida pelo Partido Comunista Chinês, teve como motor indispensável a migração de força de trabalho rural para as cidades exportadoras, reintegrando uma massa de centenas de milhões de trabalhadores no interior do espaço global de acumulação capitalista. Isso foi fundamental para sustentação da ofensiva neoliberal e para o rebaixamento da renda real média em todo o mundo, incrementando os índices de desigualdade indissociáveis ao capitalismo ocidental. De fato, um estudo de Thomas Piketty aponta que na China, entre 1978 e 2015, a participação dos 10% mais abastados na riqueza nacional aumentou de 27% para 41%, enquanto a participação dos 50% mais pobres decaiu de 27% para 15%. As pessoas situadas na porção dos 20% mais ricos na China desfrutam de uma renda disponível mais de dez vezes maior do que as pessoas situadas entre os 20% mais pobres, de acordo com números oficiais. A renda disponível nas cidades é duas vezes e meia mais alta do que no campo. E os primeiros 1% possuem 30,6% da riqueza familiar, de acordo com o banco Credit Suisse (comparado com 31,4% nos EUA). Portanto, dois processos inconfundíveis ocorrem paralelamente, sendo misturados de maneira indevida. Enquanto a pobreza absoluta decresceu na China, a pobreza relativa aumentou exponencialmente. Isso desmistifica a afirmação de Domenico Losurdo (“Has China Turned to Capitalism? — Reflections on the Transition from Capitalism to Socialism”) sobre a suposta “diminuição da desigualdade mundial com a ajuda da China”, presente nas resoluções fantasiosas do XVI Congresso do PCB, reivindicadas por Ivan Pinheiro e a fração pública.

Quanto à condição de credor internacional alternativo às instituições financeiras hegemonizadas pelos EUA, a coisa não melhora para o “multilateralismo progressista” chinês. Até o momento, os empréstimos de Pequim não incluem nada parecido com as contrarreformas e os planos de ajuste associados aos do FMI. No entanto, a taxa de juros com a qual são concedidos é definida pelo mercado, e sobrecarregam como um pesadelo para os Estados devedores, com o aumento frequente das taxas pelos bancos centrais globais. Muitos dos países envolvidos na Rota da Seda, na África e na Ásia, são premidos por dívidas impagáveis, que por vezes se convertem em captura de ativos nacionais estratégicos por parte da China. Assim, a China pode capturar o Porto de Hambantota, no Sri Lanka, ou o Porto de Gwadar, no Paquistão. Ademais, o papel da China como credor para suas próprias empresas é um facilitador para a exportação de capitais chineses para explorar trabalho ultramar.

Isso influencia, como não poderia deixar de ser, sobre o suposto progressismo da tese do multilateralismo capitalista chinês, defendido pela maioria do PCB mas também esgrimido pela fração pública do PCB como contrapartida à plataforma putinista da PMAI. A tendência de embelezar a China como portadora de uma “integração mundial não militarista” ou uma multipolaridade benéfica não hegemônica, mais progressista que aquela dominada pelo imperialismo norte-americano, é uma ilusão que tenta converter o capitalismo chinês como modelo para o mundo. Essa posição reacionária, adotada pelas distintas alas do PCB, não resiste aos fatos, como mostramos, e tampouco na Guerra da Ucrânia. A China capitalista não busca subverter o sistema de Estados herdado do neoliberalismo, busca melhorar sua posição nele. Para Pequim, não se trata de acabar com o imperialismo, mas de desenvolver até o final os seus próprios traços imperialistas. Sua ascensão será tudo, menos pacífica, contendo potencialmente uma vocação guerrerista que não tardará em se concretizar.

O PCCh e Xi Jinping, dessa maneira, não são qualquer alternativa ao abominável imperialismo dos Estados Unidos. A luta contra o imperialismo não se pode levar adiante embarcando no barco do capitalismo chinês; precisa se dar de maneira completamente independente de todos os Estados capitalistas contendentes. A alternativa aos regimes capitalistas distintamente organizados em Pequim e em Washington está na luta da classe trabalhadora urbana e rural na China, junto à juventude, às mulheres e as minorias oprimidas.

A independência de classe anti-imperialista não está nem com Putin, nem com Xi Jinping

Não existe multilateralismo capitalista “de esquerda”, ou progressista. Enquanto a maioria da centro-esquerda e da esquerda se posicionam a favor do triunfo do campo da Ucrânia/OTAN, as posições em que se divide o PCB se colocam atrás de outros “campos” reacionários em disputa, seja postulando uma vitória de Putin (posição oficial), seja deixando implícitas ilusões em uma solução de “paz” articulada pela China (fração pública).

Contra a ilusão do “multilateralismo progressista” e as visões que depositam suas esperanças no equilíbrio entre as potências capitalistas e os blocos regionais de Estados, a luta para semear uma política internacionalista proletária é de primeira ordem. A jovem geração que admira o comunismo e que abomina os horrores dessa guerra reacionária não tem nenhum interesse em delegar a um dos “campos reacionários” estatais dessa disputa o atributo de “grande salvador” da situação. Essa juventude desconfia dos “Estados fortes” que se dizem “amigos do povo” enquanto vasculham as oportunidades de, nos bastidores, usar a guerra para avançar seus objetivos de exploração. Os Estados capitalistas são nossos inimigos, responsáveis por essa catástrofe, e embora as distintas alas do PCB queiram lançar areia nos olhos da juventude brasileira, não podem esconder que nenhuma das suas opções políticas pode enfrentar de fato o imperialismo dos EUA e da OTAN. Essas variantes devem ser combatidas por um anti-imperialismo e um internacionalismo que unam a classe operária e os povos oprimidos do mundo para acabar com o sistema capitalista.

Como dissemos acima, a tarefa dos revolucionários é formar um polo contra a guerra na Ucrânia, que apresente a unidade internacional da classe trabalhadora com uma política independente, pela retirada das tropas russas, contra a OTAN e o armamento imperialista, por uma Ucrânia operária e socialista na perspectiva dos Estados Unidos dos Socialistas da Europa. O PCB, em todas as suas variantes, vai na contramão desses objetivos, surfando na fixação por Estados fortes de herança stalinista, inimigos acérrimos da luta dos trabalhadores.




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